Boric na América do Sul
Leia o quarto artigo sobre a política do novo governo para a América do Sul, do especial “Novos rumos no Chile”, feito em parceria com a edição chilena do Le Monde Diplomatique.
Antes mesmo de ter acabado de assimilar sua vitória nas urnas e de montar sua equipe de governo, o presidente eleito se vê prematuramente questionado sobre sua política para a América do Sul. E já definiu duas coisas: não acompanhará Sebastián Piñera em sua viagem para não endossar o Prosurmas apoiará a Aliança do Pacífico[2]. O que está por trás dessas primeiras definições? Que constelação política espera Boric na região?
À primeira vista, o cenário parece pouco acolhedor para o jovem presidente chileno: metade dos países tem governos de direita, incluindo os dois maiores (Brasil, Colômbia), um de médio porte (Equador) e dois pequenos (Uruguai e Paraguai). Os que se identificam com a esquerda têm problemas: dois deles apresentam economias falidas, com fortes déficits fiscais e inflação alta (Venezuela e Argentina); e os outros dois estão passando por fortes crises políticas (Peru e Bolívia). Apenas Boric se apresenta como um líder de esquerda com economia equilibrada, amplo consenso e sólidas bases políticas.
De qualquer forma, esse cenário mudará rapidamente porque os dois maiores países da América do Sul escolherão um novo presidente este ano: em 29 de maio haverá eleições na Colômbia e em 2 de outubro no Brasil. De acordo com as pesquisas, em ambos os casos a esquerda venceria, respectivamente com Gustavo Petro e Luís Inácio Lula da Silva. Dessa forma, Boric teria dois aliados de primeira linha, representantes de países grandes, com sensibilidades semelhantes e projetos políticos compartilhados. Nessa tríade, cada parceiro terá um papel diferente: o mais velho, Lula (76), será o conselheiro, o homem de experiência; ele dividirá parcialmente esse papel com Petro (61), enquanto Boric (35) será a novidade, o frescor e a renovação. Se os dois mais experientes resolverem apoiá-lo, Boric poderá se tornar um líder renovador para toda a região.
De qualquer maneira, ainda falta muito tempo para tudo isso acontecer. Entrementes, Boric terá de se adaptar ao ambiente sul-americano, recolher suas armas, ganhar experiência e se preparar para seu momento de brilhantismo.
Em seu entorno imediato, no Cone Sul, Boric poderá apoiar-se no prestigiado ex-presidente do Uruguai, Pepe Mujica, símbolo de austeridade, na reivindicação das questões emergentes (economia verde, mudanças climáticas, respeito às minorias), e com a capacidade de articular melhorias sociais com equilíbrios fiscais. Nessa área, Boric também encontrará uma referência no atual presidente da Bolívia, Luis Arce, que foi ministro da Economia e Finanças de Evo Morales por 13 anos e alcançou o objetivo que Boric agora tem no Chile: redistribuir riqueza sem destruir a moeda, sem déficit fiscal e sem inflação. Essas experiências podem se mostrar decisivas para as equipes de Boric e espera-se que sejam realizadas rodadas de consultas para transferir esses conhecimentos para o Chile.
Em relação à Argentina, a situação é mais complexa. O modelo kirchnerista tem sido fonte de inspiração para vários líderes da esquerda radical que apoiam Boric; mas os economistas mais experientes, muitos deles ligados à antiga Concertación[3], desconfiam desse modelo e o consideram uma má influência: o cerne do método de construção do poder estabelecido pelo peronismo após o golpe de Estado de 1943, centrado no gastos fiscais indefinidos, apresenta fortes sintomas de esgotamento: a economia está estagnada há mais de dez anos; a expansão dos gastos fiscais gerou uma inflação muito alta, com recordes oficiais de 51%, apesar do congelamento das tarifas e dos preços do serviço público; a moeda argentina deixou de cumprir sua função essencial (reserva de valor); a pobreza aumentou para 50%, o que lembra a situação no Chile durante a ditadura de Pinochet. Um resultado desses fracassos é o governo de Alberto Fernández. Nele, pela primeira vez desde 1946, o peronismo perdeu o controle do Senado, além de ser derrotado em quase todas as províncias. A deterioração socioeconômica sofrida pela Argentina após quase 80 anos de um modelo de gastos fiscais expansivos incentivado pelo peronismo constitui uma distopia, ou seja, o caminho que os adversários de Boric gostariam de vê-lo percorrer para garantir o rápido fracasso de seu projeto político.
Na Bolívia, a situação econômica é melhor, mas o ambiente está deteriorado. O presidente Luis Arce, depois de exibir boas habilidades como economista durante o governo de Evo Morales, agora mostra limitações como político. Ele tem dificuldade em lidar com as tempestades. As tensões com sindicatos, associações empresariais e comitês cívicos ressurgiram com notável virulência nos últimos meses. A situação é ainda mais complicada no Peru, onde Pedro Castillo também se declarou inimigo do neoliberalismo em sua campanha eleitoral, mas, uma vez no poder, deparou-se com a complexidade da administração e ainda não conseguiu montar uma equipe de governo estável. A isso se somam falta de experiência, pouco treinamento e carência de redes e de apoios políticos importantes. Pedro Castillo ainda tem a tarefa de formar uma coalizão de governo que dê estabilidade a sua administração, e ao que parece isso poderá levar vários meses.
Nesse contexto, a estratégia de Boric parece a mais sensata: sem aliados à vista e sem chance imediata de liderar políticas de renovação em âmbito regional, o presidente eleito opta por manter um perfil discreto e colaborar com o único bloco regional estável da América do Sul, a Aliança do Pacífico, para tentar melhorá-la por dentro.
É um grande desafio porque essa organização foi originalmente concebida como um espaço regional muito vocacionado para os negócios das grandes empresas. Seus idealizadores foram os economistas e estrategistas neoliberais dos quatro países, liderados por governos dessa tendência.
Para esses ideólogos, as pequenas e médias empresas eram atores menores, com pouca visibilidade e relevância. Portanto, se Boric se junta à Aliança do Pacífico, é para preenchê-la com conteúdos sociais e econômicos favoráveis às PMEs. Outro objetivo de Boric na Aliança do Pacífico é ampliar seus efeitos, do plano econômico ao sociocultural. Esses aspectos são mencionados nos regulamentos do bloco regional, mas sua aplicação tem sido muito menor. Um bom exemplo é a integração profissional, acadêmica e científica entre os países membros: teoricamente, esse objetivo foi anunciado, mas seus efeitos são desprezíveis. O Chile continua enviando seus jovens profissionais para fazer cursos de pós-graduação na Europa e nos Estados Unidos, mas não em universidades da América Latina; esses cérebros voltam ao Chile pensando nos problemas do mundo desenvolvido, publicam seus artigos em revistas do norte e permanecem isolados dos ecossistemas intelectuais regionais, atuando como enclaves e sem gerar cadeias produtivas em seu ambiente. Isso poderia ser melhorado significativamente se, em vez de ir estudar no primeiro mundo, os jovens chilenos aprofundassem sua formação em países com problemas socioeconômicos e culturais semelhantes aos do Chile. E para isso, a Aliança do Pacífico pode ser um bom campo de testes. Para atingir seus objetivos, Boric precisará mudar a Aliança do Pacífico por dentro, em três fases. No primeiro quadrimestre, ele construirá pontes com Pedro Castillo, para encontrar pontos de acordo para o setor, o mesmo que com AMLO[4] no México. E aguardará pacientemente as eleições na Colômbia. No segundo quadrimestre, já com Gustavo Petro na presidência da Colômbia, Boric poderá avançar seu ideário, com vistas a modelar um bloco regional mais ambicioso e inclusivo, capaz de impulsionar as relações econômicas internacionais com novos atores e a diversificação de funções, estratégias e objetivos.
A Aliança do Pacífico perderá muitas de suas notas neoliberais e assumirá uma identidade latino-americana mais clara. Nessas condições, Boric aguardará as eleições no Brasil. E a partir de outubro, quando Lula se tornar presidente, Boric estará esperando para avançar em projetos mais ambiciosos.
Pablo Lacoste é aluno da Universidade do Chile (Usach)
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[1] O PROSUL é um Sistema de Cooperação cujo objetivo principal é a colaboração técnica entre os Escritórios de Propriedade Industrial da América Latina, baseado na igualdade dos direitos e obrigações e na tomada de decisões por consenso. A cooperação entre as partes compreenderá as áreas de Marcas, Patentes de Invenção e de Modelos de Utilidade e Desenhos Industriais, Indicações Geográficas e demais matérias que guardem relação com a Propriedade Industrial.
[2] A Aliança do Pacífico é um bloco de integração econômica entre os países latino-americanos: Peru, México, Colômbia e Chile. O acordo que deu origem ao bloco foi assinado em 28 de abril de 2011 em Lima, no Peru. No entanto a formalização do bloco foi efetivada em 6 de junho de 2012, quando foi publicado documento oficial denominado Acordo Marco da Aliança do Pacífico.
[3] A Concertación de Partidos por la Democracia (em português: Coalizão de Partidos pela Democracia, conhecida popularmente como Concertación ou Concertación Democrática) foi uma coalizão eleitoral de partidos políticos chilenos de centro-esquerda onde confluem social-democratas e democratas-cristãos.
[4] Acrônimo pelo qual é conhecido Andrés Manuel López Obrador, o atual presidente do México, eleito em 2018