Brasil: dois projetos em disputa
Para a corrente desenvolvimentista, os progressos recentes, embora positivos, não apagaram as marcas profundas da crônica desigualdade social brasileira, que tem raízes históricas herdadas do passado escravocrata, do caráter específico do capitalismo tardio e da curta experiência democrática do século XXEduardo Fagnani
Vivemos a disputa entre dois projetos antagônicos. O liberal versus o desenvolvimentista. O mercado versus o Estado. A focalização exclusiva nos mais “pobres” versus a universalização dos direitos da cidadania. Os valores do Estado mínimo versus os do Estado de bem-estar. Os direitos sindicais e laborais versus as relações de trabalho flexíveis.
Essa disputa tem implicações contraditórias tanto na interpretação da política social no governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010) como na identificação dos rumos a serem trilhados no futuro.
Na primeira década do século XXI, o Brasil logrou importantes progressos sociais (distribuição da renda, diminuição das desigualdades sociais, mobilidade, aumento do consumo das famílias e redução da miséria extrema). Para a corrente desenvolvimentista, o fato determinante foi o crescimento da economia, que após 25 anos voltou a ganhar espaço na agenda governamental, o que teve consequências na impulsão do mercado de trabalho e do gasto social, potencializando os efeitos redistributivos da Seguridade Social instituída pela Constituição de 1988.
O programa Bolsa Família teve papel destacado na mitigação da fome e das vulnerabilidades associadas à miséria extrema. A estratégia para enfrentar a questão social não pode prescindir de ações focadas naqueles que estão submetidos à fome ou precariamente inseridos (mais de 70% dos adultos beneficiários do Bolsa Família trabalham).
O caso brasileiro guarda similaridades com o que ocorreu na América Latina e no Caribe. Estudos realizados pela Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) em 2012 apontam que, na década passada, o comércio internacional favorável impulsionou a atividade econômica no continente. Como consequência, houve geração de emprego assalariado, elevação do salário médio, valorização real do salário mínimo, queda na taxa de desemprego e elevação do gasto social. Com isso, “pela primeira vez em várias décadas, um subconjunto considerável de países da região obteve resultados positivos em termos distributivos”.
Na experiência brasileira, destaca-se inicialmente que, entre 1999 e 2002, o Partido dos Trabalhadores havia elaborado um projeto “social-desenvolvimentista” (Mercadante e Tavares, 2001). A eleição de 2002 renovava a esperança por mudanças. Mas, em plena campanha eleitoral, esses ímpetos foram contidos. Em grande medida porque os agentes financeiros passaram a apostar contra o Brasil. “Era uma verdadeira chantagem que os mercados faziam com os eleitores brasileiros”, afirma Luiz Gonzaga Belluzzo.1 Nesse cenário, entre 2003 e 2005 a política macroeconômica seguiu, em essência, os parâmetros adotados anteriormente.
Entretanto, a partir de 2006 o projeto “social-desenvolvimentista” pôde ser parcialmente resgatado. O crescimento voltou a ser contemplado na agenda macroeconômica e foram adotadas políticas fiscais e monetárias menos restritivas. Essa postura foi reforçada em 2007, quando foi lançado o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Com a crise financeira internacional de 2008, foram adotadas medidas anticíclicas, e os bancos públicos lançaram uma estratégia agressiva de ampliação do crédito, que praticamente dobrou entre 2003 e 2010 (de 24% para 49% do PIB).
A economia voltou a crescer, abrindo espaço para a expansão do gasto social, a geração de empregos formais, a redução da taxa de desocupação e a elevação real do salário mínimo e da renda do trabalho. Entre 2003 e 2010, mais de 18 milhões de empregos formais foram criados, e a taxa de desemprego caiu pela metade (de 12,3% para 5,5%). O valor do salário mínimo aumentou mais de 70% acima da inflação.
A ativação da atividade econômica também fez crescer as receitas tributárias, melhorando as contas públicas e abrindo espaços para a expansão do gasto governamental. Em valores reais, o Gasto Social Federal (GSF) per capitaaumentou quase 60% entre 2004 e 2010 (passou de R$ 2.100 para R$ 3.325); e, em relação ao PIB, subiu de 13,2% para 15,5% (Castro e outros, 2012).
O principal item de ampliação do gasto social consistiu nas transferências de renda da Seguridade Social (previdência rural e urbana, assistência social e seguro-desemprego), sobretudo em razão dos impactos da valorização do salário mínimo sobre o piso dos benefícios. Em 2012, foram concedidos mais de 37 milhões de benefícios (70% equivalem ao piso do salário mínimo). As transferências de renda via Bolsa Família também cresceram, atingindo 0,45% do PIB.
Além da transferência de renda para as famílias, a expansão da oferta dos serviços foi impulsionada. Os gastos federais com educação, por exemplo, dobraram (valores constantes) entre 2000 e 2010 (passando de R$ 21,2 bilhões para R$ 45,5 bilhões).
Esses fatores foram determinantes para a redução das desigualdades sociais entre os assalariados. Observe-se que na década passada o rendimento médio real mensal do conjunto dos trabalhadores subiu cerca de 30%, enquanto para os 20% mais pobres o crescimento foi superior a 70%. Para o Ipea (2012), o mercado de trabalho e a Seguridade Social responderam por 87% dessa redução.
Em suma, na década passada foram engendradas alternativas ao modelo econômico que vinha sendo colocado em prática desde 1990 que resultaram na melhoria dos padrões de vida da população. A economia cresceu e simultaneamente distribuiu renda, fato inédito nos últimos cinquenta anos.
O reconhecimento desse fato não implica endossar a ideia de que teria sido introduzido um “novo padrão de desenvolvimento”. Na verdade, caminhou-se no sentido da construção de um modelo econômico menos perverso que o padrão histórico.
Também parece questionável a visão de que os governos progressistas eleitos no Brasil e em diversos países da América Latina seriam “pós-neoliberais” (Sader, 2014). É verdade que foi aberta uma nova etapa de lutas contra a doutrina neoliberal. Mas, apesar dessa marcha, o continente está muito aquém de “superar e virar a página do neoliberalismo”.
Como sinaliza o historiador Perry Anderson, neste início de século o neoliberalismo “segue aprofundando seu poder no mundo”. Nesse contexto, com os governos progressistas da América do Sul, o continente passou a ser portador de “uma esperança que não existe em nenhum outro lugar do mundo hoje”. Em sua visão, o Brasil está “na linha de frente” desse processo de abrir frestas para caminhar no “contrafluxo da ideologia mundial dominante”.
Essa avaliação choca-se com a hegemônica interpretação liberal acerca da política social do governo Lula. Essa corrente difunde o dogma de que os progressos sociais foram frutos exclusivos do Bolsa Família. Essa miragem é repetida como mantra pelos organismos internacionais.
Apenas como ilustração, observe-se que, para a diretora-gerente do FMI, as “melhoras notáveis” dos indicadores de pobreza, desigualdade e desenvolvimento dos países da América Latina devem-se ao papel desempenhado pelos chamados conditional cash transfer programs (CCT) – núcleos da estratégia internacional orquestrada há mais de três décadas para os países subdesenvolvidos –, com destaque para os programas Bolsa Família (Brasil) e Oportunidades (México), “que conseguiram interromper a transmissão da pobreza de geração para geração e agora servem como modelo para o resto do mundo”.2
Muitos no campo progressista não percebem que a inspiração dos programas CCT tem caráter liberal clássico. A “garantia de renda mínima” foi proposta inicialmente por Hayek (1944). Posteriormente, Friedman (1962) popularizou a defesa do “imposto de renda negativo” como “o procedimento mais recomendável” para “combater a pobreza”, embora preferisse a caridade.
Com o neoliberalismo, nos anos 1980 e 1990 a América Latina serviu como “um campo de provas” para aperfeiçoar essas experiências. Depois do Chile (1981), foi no México (Oportunidades) e no Brasil (Bolsa Escola) que esses programas foram estendidos pela primeira vez em grande escala nos anos 1990. Sua propagação foi intensa na década seguinte. Em 2007, o Banco Mundial informou que “praticamente todos os países” da região haviam adotado algum tipo de CCT, bem como mais de trinta países em outros continentes (Lavinas, 2013).
Para a doutrina neoliberal, ao Estado cabe somente cuidar da educação básica (“igualdade de oportunidades”) e da população que se encontra “abaixo da linha de pobreza”. Os que “saíram da pobreza” devem buscar no mercado privado a provisão de bens e serviços sociais de que necessitam, abrindo-se as portas para a privatização e mercantilização da oferta.
Assim, os CCT são funcionais para o ajuste macroeconômico. A doutrina liberal transformou a “política social” em compartimento dissociado da estratégia macroeconômica. As almas caridosas do mercado reservaram 0,5% do PIB para os ditos progressistas se divertirem na promoção do “bem-estar”. Além disso, os critérios arbitrados internacionalmente são extremamente baixos para classificar as situações de indigência (indivíduo que recebe até US$ 1,25 por dia) e pobreza (até US$ 2,5 por dia). Não é moralmente aceitável afirmar que um indivíduo que passou a receber pouco mais de US$ 2,5 por dia tenha “saído da pobreza”.
A importância desses programas foi reforçada após a crise internacional de 2008. A resposta das lideranças globais foi introduzir a chamada iniciativa do Basic Social Security Floor (OIT, 2011). Formou-se uma ampla coalizão global em sua defesa, que reúne as principais lideranças mundiais (G-7 e G-20), FMI, Banco Mundial, ONGs e dezenove agências da ONU.
Mas a grande vedete do novo consenso liberal é o programa brasileiro. A apologia desmedida que tem sido feita ao Bolsa Família pelas agências internacionais parece ser ação ideológica deliberada para elevar o statusdo programa brasileiro a um case global de sucesso a ser seguido por outros países pela via do Basic Social Security Floor.
Diante da vitória da ideologia, é preciso escancarar o óbvio: programas dessa natureza aliviam as situações críticas de vulnerabilidades e fome. Exatamente por essa razão, são necessários e devem fazer parte de uma estratégia mais ampla de enfrentamento da questão social. O equívoco é transformá-los em estratégia única.
É compreensível que instituições multilaterais defendam essa visão minimalista. O que causa surpresa é que setores e governos populares e progressistas na América Latina abracem acriticamente os dogmas neoliberais. No caso brasileiro, essa visão reduz o legado dos governos do PT.
Essa disputa entre projetos antagônicos também tem implicações contraditórias quanto aos rumos a serem trilhados no futuro. Cada um dos projetos aponta para agendas e opções com consequências políticas diametralmente opostas.
O projeto liberal conduz, inevitavelmente, para o aprofundamento da focalização exclusiva nos “pobres”. Crescimento, emprego, salário mínimo e políticas universais são “ineficazes” para combater a pobreza. Para que consolidar o Sistema Único de Saúde se a “nova” classe média egressa da miséria pode comprar planos de saúde no mercado privado?
A focalização é funcional para a gestão ortodoxa do chamado “tripé” macroeconômico. Por ser barata, essa política compensatória não conflita com a adoção de “medidas impopulares” reivindicadas pelo capital financeiro: redução da meta de inflação, ampliação do superávit fiscal e fim da regra de reajuste do salário mínimo são apenas alguns exemplos do que está sendo cogitado nos bastidores das campanhas eleitorais.
Para a corrente desenvolvimentista, os progressos recentes, embora positivos, não apagaram as marcas profundas da crônica desigualdade social brasileira, que tem raízes históricas herdadas do passado escravocrata, do caráter específico do capitalismo tardio, da curta experiência democrática do século XX e do acelerado processo de urbanização, na ausência da reforma agrária e de políticas urbanas e sociais.
Entre 2001 e 2011, a concentração da renda recuou aos padrões de 1960. Não obstante, o Brasil permanece entre as vinte nações com maior desigualdade de renda do mundo. A secular concentração da riqueza no campo brasileiro continua intocada, e o tema da reforma agrária ainda é atual.
As desigualdades se refletem na apropriação física do espaço urbano – “não basta distribuir renda”; é preciso “distribuir cidade”, afirma Maricato (2013) –, bem como no sistema tributário que não incide sobre a renda e o patrimônio. A estrutura do mercado de trabalho ainda guarda traços e características de economias subdesenvolvidas ou periféricas.
As iniquidades também estão presentes no acesso aos serviços sociais básicos. As políticas sociais universais apresentam lacunas de oferta entre classes sociais e regiões do país. Assegurar a universalização da cidadania – inclusive para os mais pobres – requer esforços no sentido de ampliar a oferta de serviços para as regiões e populações não atendidas. A oportunidade de transformar os brasileiros pobres em cidadãos portadores de direitos não pode ser perdida, pois o Brasil é um dos poucos países subdesenvolvidos que, no contexto da competição capitalista sob a dominância das finanças, conseguiu preservar o núcleo de seus sistemas públicos universais (Fagnani e Fonseca, 2013).
Em suma, ainda vivemos graves níveis de concentração de renda e de riqueza que implicam miséria, pobreza, baixos salários e acesso precário aos bens e serviços sociais básicos. São traços marcantes do subdesenvolvimento que precisam ser superados, se queremos um país justo e civilizado.
Esse enfrentamento repõe o conflito redistributivo entre capital e trabalho no centro do debate nacional. A superação desse embate em favor da sociedade e da cidadania depende da capacidade dos cidadãos de se apropriar dos recursos que têm sido capturados pelo poder econômico nos ganhos especulativos sobre a dívida pública e por inúmeros mecanismos de transferências tributárias.
Será preciso desbravar caminhos para construir uma agenda de transformação que priorize a justiça social. Essa tarefa requer que se façam complexas mudanças estruturais: reforma tributária, revisão do pacto federativo, enfrentamento dos processos de mercantilização e fortalecimento da gestão estatal.
A tarefa também exige o reforço do papel do Estado e a revisão dos pressupostos que dão substrato ao chamado “tripé” macroeconômico (câmbio flutuante, superávit fiscal e metas de inflação). Mas nada será possível sem uma reforma política que resgate a democracia e a esfera pública plural e inclusiva. Nesse sentido, a reforma política é a mais importante de todas as reformas.
A tarefa é complexa, tanto pelo caráter estrutural do fenômeno quanto pelo conservadorismo das elites, num contexto em que a correlação de forças favorece as finanças globalizadas. Mas não há outro caminho a seguir caso se queira, de fato, enfrentar as diversas faces da crônica desigualdade social, pano de fundo do mal-estar contemporâneo exposto pelas recentes marchas populares.
Eduardo Fagnani é professor do Instituto de Economia da Unicamp e pesquisador do Cesit (Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho).