Brasil, outros 500: a Marcha dos 2000 vinte anos depois
Em 2000, a contrapelo, a causa indígena se reuniu para marchar contra a versão oficial do “Descobrimento”. Uma contra comemoração. Com ampla agenda e envolvendo negros, sem-terra, quilombolas e sindicalistas, o manifesto que está na origem do movimento afirma que “para os povos indígenas, a conquista da América não foi o começo de sua história. Eles chegaram a este continente há aproximadamente 40 mil anos”
Às vésperas do dia 22 de abril, há vinte anos, mais de três mil indígenas, representantes de 140 povos de todo o país, se reuniram em Coroa Vermelha, no extremo Sul da Bahia, para a Conferência Indígena 2000. O evento colocava em perspectiva a situação dos diferentes povos no final do século passado, demarcando uma posição narrativa sobre a história (se contrapondo ao “descobrimento”) e buscando formas de concretização de pautas para o futuro.
Enquanto o presidente Fernando Henrique Cardoso empreendia um festejo oficial destinado a celebrar a chegada dos portugueses às Américas, os indígenas contestavam a versão do “Descobrimento”. Com o lema “Brasil: outros 500”, os participantes se negaram a aceitar a proposta do governo federal de fazê-los participar das festividades de Estado.
Submetida a muitas releituras e objeto recorrente de disputas políticas, a chegada dos portugueses em terras brasileiras, em 1500, foi problematizada durante a conferência realizada pelos indígenas, reunidos em uma região cheia de simbolismos, que tem a marca de ser o ponto geográfico de desembarque das frotas de Pedro Álvares Cabral.
Chamamos de “Descobrimento” o que foi um verdadeiro genocídio. Muitas pesquisas estimam que as populações da costa pereceram quase na ordem de 93% após 1500.
A versão do “Descobrimento” e a reprodução da chegada dos portugueses como um grande feito ganhou relevo sobretudo a partir do Império. Uma das primeiras instituições criadas no Período Regencial foi o Instituo Histórico e Geográfico Brasileiro, no ano de 1838, que lançava, em 1846, o seu primeiro concurso, sobre “Como se deve escrever a história do Brasil”. A competição teve como ganhador o naturalista bávaro Carl Philipp Von Martius, conhecedor do país pelas expedições que havia feito.
Na sua obra, Von Martius conta a história do Brasil pela via da mestiçagem de três raças. Para ele, o grande rio brasileiro era composto de três afluentes: o rio branco, caudaloso, significando os europeus; o rio negro, mais estreito, representando os africanos; e o terceiro, menor deles, os indígenas. Assim, sua narrativa afirmava a mestiçagem, mas não sem construir uma hierarquização entre as raças. Essa história tomou força, sobretudo nos anos de 1930, e chega até mesmo aos nossos dias.
O filme O Descobrimento do Brasil (1936), de Humberto Mauro, retrata o trajeto dos ultramarinos em direção às Américas, tendo como ponto de partida a Carta de Pero Vaz de Caminha. Em encontro pacífico de brancos e índios, o Brasil era “descoberto” por navegadores, padres, soldados e comerciantes integrantes da esquadra de Cabral. Na terra de Vera Cruz, a primeira missa foi encenada filmicamente, tal qual sugere a pintura de 1860 feita por Victor Meirelles, famosa por representar a centralidade dos católicos rodeados por indígenas que olham para os signos do sagrado cristão.
Muitos dos elementos dessas narrativas foram assumidos pelo governo brasileiro na virada do século passado para o XXI. Durante as comemorações dos 500 anos, realizadas na Escola Naval, no Rio de Janeiro, o então presidente FHC participou da cerimônia “Chama do Conhecimento”, em que encenou-se a fusão de três fogos simbólicos encaminhados por representantes de indígenas, negros e brancos. A terceira chama era oriunda de Portugal. Em discurso feito nessa cerimônia, FHC rendia homenagens aos “formadores da nossa civilização”, que seriam os “brancos europeus, de fala portuguesa e fé em Cristo; índios autóctones com dezenas de falas e crenças; e negros africanos, também diversificados na língua e na cultura”. Para ele, essa base que se firmou na mestiçagem de raças deu identidade ao povo brasileiro, distinguido pelos valores da tolerância.
Programada para ser uma celebração apoteótica da nacionalidade e uma confraternização com os “descobridores”, a festa de Estado dos 500 anos do “Descobrimento”, em Porto Seguro (BA), foi marcada por enfrentamentos entre a polícia, indígenas e outros manifestantes.
Na praia de Coroa Vermelha, uma missa e uma solenidade oficial aconteceram com a presença dos presidentes do Brasil, FHC, e de Portugal, Jorge Sampaio.
Sem povo, a festa apelou para um forte compromisso simbólico com a exaltação dos feitos portugueses. Uma réplica da Nau Capitânia, da frota de Cabral, foi encomendada para ilustrar a cena dos festejos. Figurantes representavam colonizadores portugueses, com vestimentas de navegadores e de tripulantes da frota de Cabral. Uma muda de pau brasil foi plantada conjuntamente pelos chefes políticos do Brasil e de Portugal. Foi também inaugurada uma cruz, de 13 metros de altura, edificada no espaço onde teria sido realizada a primeira missa católica em 1500.
A cidade de Porto Seguro contempla ainda hoje inúmeros lugares de memória que compactuam com essa versão oficial da história, potencializada pelo Estado e suas intervenções no município para celebrar os 500 anos. Espaços comuns nas avenidas litorâneas ocultam a violência a que se submeteram indígenas massacrados e violentados, muitos deles fazendo referência a uma convivência harmoniosa e integradora entre colonizadores e colonizados. Outros fazem explícita menção apoteótica à chegada dos portugueses, caso do Memorial da Epopeia Portuguesa – um museu à beira-mar na principal via que liga a cidade de Porto Seguro à orla norte – e da praça do Cabral – ponto de referência para moradores e turistas que conta com traçados em pisos portugueses formando o desenho da cruz de malta.
Em 2000, a contrapelo, a causa indígena se reuniu para marchar contra a versão oficial do “Descobrimento”. Uma contra comemoração. Com ampla agenda e envolvendo negros, sem-terra, quilombolas e sindicalistas, o manifesto que está na origem do movimento afirma que “para os povos indígenas, a conquista da América não foi o começo de sua história. Eles chegaram a este continente há aproximadamente 40 mil anos”.
O documento final da conferência menciona o compromisso de refazer os caminhos da grande invasão sobre os territórios, que perdura 500 anos. Como forma de resistir, era preciso rever a história: “Confirmamos, mais do que nunca, que esta sociedade, fundada na invasão e no extermínio dos povos que aqui viviam, foi construída na escravidão e na exploração dos negros e dos setores populares. É uma história infame, é uma história indigna.”
“Revoltas, insurreições, movimentos políticos e sociais marcaram também nossa história, estabelecendo uma linha contínua de resistência. Por isso, voltamos a recuperar essa marca do passado para projetá-la em direção ao futuro, nos unindo aos movimentos negro e popular e construindo uma aliança maior: a Resistência Indígena, Negra e Popular” – registra ainda o documento.
As pautas da marcha
A programação do evento foi ampla e heterogênea. Com a Marcha, iniciada na Amazônia (onde vivem 51% dos indígenas do país), manifestantes pretenderam chamar a atenção das diversas localidades por onde passavam dizendo que “os índios continuam sendo explorados e excluídos”.
Fazendo uma “rota da intrusão do país ao contrário”, do interior para o litoral em que chegaram os portugueses, os indígenas acenavam para um caminho inverso ao dos bandeirantes, garimpeiros e rapinadores que invadiram seus territórios. Em sentido inverso ao dos trilhados pelos ultramarinos no início do processo colonizador, percorreram diversas localidades em 14 dias. Ao chegarem a Porto Seguro, após dias de manifestações e de atos públicos, os indígenas se reuniram numa grande Conferência, na qual aprovaram um documento encaminhado ao governo e à sociedade, ainda em Porto Seguro, com as principais reivindicações e posições políticas.
Olhando para o futuro, a história não-escrita dos “Outros 500” foi representada em pautas concretas e simbólicas, reunidas no documento, que afirmavam a necessidade de uma reorientação das práticas e da postura da sociedade e do Estado brasileiro em face dos indígenas. No espaço da resistência, entre danças e cantos, faixas davam os sentidos do movimento em relação ao horizonte de futuro desejado.
“Raposa Serra do Sol: homologação já” – reivindicações como essa, vindas de muitas localidades do país, estavam estampadas por todos os lados.
O evento coletivo colocava em questão a definição e a efetividade de direitos, das leis e da violência no Brasil, país marcado pela concentração da riqueza e da terra, pela violência, pela injustiça e pela exclusão.
Uma espécie de denúncia e de manifesto, o documento final da marcha escancara a inoperância do Estado em fazer valer a Constituição, principalmente quanto à demarcação e à regularização de terras indígenas. Exigências como essa e a da retirada dos invasores de todas as terras demarcadas, da indenização e da recuperação das áreas e dos rios degradados (como o Rio São Francisco) e da paralisação da construção de hidrelétricas, hidrovias, ferrovias, rodovias, gasodutos em andamento foram adensadas.
Sem a terra em que vive e que viveram todos os seus, um indígena não tem condição de existência. Não há vida. Pesquisa realizada em 2014 com os integrantes da etnia Guajajara, em Barra do Corda – Maranhão, pelo Departamento de Saúde Indígena (DSEI-MA), demonstrou que o mero contato com a sociedade externa tem intensificado taxas de morbidade e mortalidade de indígenas, principalmente com a insurgência de doenças antes não identificadas, como a diabetes, a hipertensão e as doenças que abalam o estado emocional desses indivíduos. Dentre estas, está a depressão, o alcoolismo, o uso de drogas e o suicídio.
Permeando também questões relativas à terra, a mobilização articulou a necessidade de aprovação do Estatuto dos Povos Indígenas, que tramita no Congresso Nacional conforme aprovado pelos povos e organizações indígenas (PL 2.057/91). Infelizmente, esse reclame nunca foi tomado a sério pelo parlamento, que por décadas se recusa a atualizar e a revisar o Estatuto do Índio, um diploma do ano de 1973.
A invasão aos territórios é um dos sintomas de uma cultura predatória e alicerçada na acumulação de capital. A terra é condição de existência, mas não a única. Por isso o manifesto conclamou a todos os brasileiros para lutar pelo fim de todas as formas de discriminação, expulsão, massacre, ameaça às lideranças, violência e impunidade; pelo fim de todos os crimes cometidos contra as suas culturas, tradições, línguas e religiões.
Interessante mobilização do movimento se deu para exigir a imediata aprovação da Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que versa sobre Povos Indígenas e Tribais. Fundamental para a consideração política desses povos, a Convenção, ratificada pelo Brasil no ano de 2004, durante o governo Lula, passou a determinar que todas as medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetar as comunidades diretamente devem contar com consulta prévia e apropriada aos povos interessados.
Pauta que sempre foi adiada no Brasil do século 20, a das cotas, estava nos gritos e nas letras articuladas no movimento. Esse debate só existe porque há preconceitos de raça e há espaços que apenas foram usufruídos pelos brancos no país. A universidade foi um deles. São lugares que reproduziram, nas suas entrelinhas, a tônica de que os indígenas são os estrangeiros que ocupam um mundo de brancos.
A reserva de vagas para indígenas nas universidades públicas só se tornaria uma realidade na segunda década dos anos 2000, mediante a Lei nº 12.711/2012. Espaços mais afinados com as comunidades indígenas foram criados no sistema educacional, a exemplo da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), criada em 2015 e com um dos campi funcionando no município de Porto Seguro. Localizada na região sul e extremo sul da Bahia, a UFSB contou, até 2018, com 135 estudantes indígenas, atuando em um local onde muitas comunidades existem e resistem em suas formas de organização comunitária. A universidade, que tem como uma das marcas estéticas de seus prédios o Painel Indígena, conta com programas de permanência criados e direcionados ao segmento de estudantes indígenas.
No ano de 2002, a Igreja Católica reconhecia a necessidade de reflexão acerca da pauta dos 2000. A campanha da fraternidade daquele ano convocou os povos indígenas a uma luta semelhante à dos trabalhadores-sem-terra. Com o título “Fraternidade e Povos Indígenas – por uma terra sem males”, a CNBB reconhecia as lutas do MST, dos zapatistas no México e dos indígenas no Brasil, fazendo menção expressa a movimentos como o de abril de 2000 em Porto Seguro.
Com sua forma de ação política, a Marcha mobilizou a atenção pública, os holofotes do campo político nacional, e fez-se uma caixa de ressonância das pautas indígenas, chamando a atenção social para suas demandas por direitos e por uma vida que parte de contornos específicos, que demandam outros olhares, diversos daqueles da política de massacre que opera por séculos.
A Marcha forjou os atores, a cena e o público, desencadeando novos fatos. Idealizada em contexto de neoliberalismo, de ameaça de entrega do território ao estrangeiro, de criminalização do MST, de prisões de líderes e de campanhas negativas nos meios de comunicação, em seu percurso, ela permitiu visibilidade aos indígenas e deu um tom de conflito de resistência a um evento oficial que prometia celebrar o encontro pacífico de raças desde 1500. Esse impacto momentâneo foi seguido por impactos mais imediatos ao longo dos anos 2000. Sucessivas marchas e protestos deram continuidade ao intento de 2000, direitos significativos foram conquistados no interregno 2002-2015.
Resistindo ao governo FHC em pautas mais particularizadas em nome dos seus direitos, os indígenas atuavam também em nome dos direitos de todos os brasileiros. Nesse contexto, eles eram contrários a um campo político ligado ao retrocesso e à negação do Brasil em muitos níveis, como ocorria com a política internacional, as concessões ao FMI, a implantação da agenda neoliberal, o não reconhecimento de minorias e de movimentos sociais e o pacto com os setores industriais e os segmentos ruralistas afinados com o capital globalizado.
“A nossa luta é para nossos filhos e netos, povos livres numa terra livre.” Terminava o manifesto.
O simbolismo da repressão ao movimento
Uma das pautas reivindicatórias da manifestação era a do fortalecimento do impedimento da entrada das polícias Militar e Civil nas áreas indígenas sem autorização das lideranças comunitárias. As cenas de repressão policial à Conferência de 2000 já falavam por si sobre a necessidade dessa pauta e do redimensionamento da postura do Estado em face dos indígenas e dos territórios por eles ocupados.
Às vésperas do dia 22 de abril de 2000, policiais haviam destruído um monumento indígena, edificado para ilustrar as suas resistências à noção de “Descobrimento”.
Após a derrubada, a tensão entre indígenas e agentes do Estado se acirrou. Com caráter nitidamente cerceador da manifestação pacífica e coletiva dos indígenas, a polícia baiana atuou para o dispersamento dos manifestantes do local em que se daria um dos pontos chaves do festejo oficial, a praia de Coroa Vermelha, no município de Santa Cruz de Cabrália.
O resultado da ação militar foi de cerca de cento e quarenta presos e sessenta e cinco feridos – dos quais, vinte e quatro indígenas e um missionário. Enquanto o helicóptero presidencial sobrevoava a cidade, disparos de balas de borracha, lançamentos de bombas de gás e uso de cacetetes dispersavam os manifestantes, que deixavam a área da reserva indígena em Coroa Vermelha na direção de Porto Seguro.
No entorno da cidade, cerca de 200 homens da PM fizeram uma barreira na BR-367, principal via de acesso, bloqueando completamente a passagem e no intento de isolar Porto Seguro, exceto para aqueles que chegavam de helicópteros e aviões. Dias após os protestos, nove pataxós quedaram desaparecidos após invasão de pistoleiros à Fazenda Boa Vista, na aldeia barra do Cahy, localizada no Sul da Bahia.
Com repercussão na mídia nacional e estrangeira, o atentado policial ao direito à livre manifestação de indígenas, sem-terra, mulheres, quilombolas, estudantes, sindicalistas e tantos outros escancarou as faces de um Estado opressor, pautado pelo silenciamento e pela negligência na promoção da causa indígena no país. Como destacou Frei Betto, em Como deixar-se moldar pelo sistema (2000), “o que aconteceu em Porto Seguro, em abril de 2000, foi algo muito mais grave do que a imprensa fala. Não nos assumimos como nação brasileira, com as nossas raízes”.
A fala do líder indígena Matulauê representa a dor e o peso da atuação policial sobre esses povos. Segundo ele, tratou-se de um massacre, pelo qual os indígenas estavam em luto. “Até quando isso vai durar? Vocês não se envergonham?”, perguntava. De peito nu e cocar amarelo, com tanga azul e saiote de piaçava, o líder, com dedo em riste contra o vice-presidente da República, Marco Maciel, ocupou o microfone do altar-mor da missa dos 500 para denunciar o atentado violento contra os povos indígenas.
“Nós não estamos mandando mais nem em nossa casa” – essa foi a impressão de Nailton Pataxó Hã-Hã-Hãe, então vice-cacique da aldeia Posto Indígena Caramauru Catarina Paraguaçu, em relação à derrubada, pelo governo federal, do monumento indígena construído em Coroa Vermelha para dar lugar a uma grandiosa cruz de aço, ainda hoje representada no local.
O indígena também menciona, em entrevista ao Jornal do Brasil do dia 16/04/2000, o papel truculento da polícia baiana durante a gestão do governador Antônio Carlos Magalhães, que, segundo ele, foi responsável por inúmeras mortes e ataques aos indígenas. Ainda nesse compasso, ACM teria garantido títulos de posse a fazendeiros dentro de terras das comunidades, espremendo ainda mais o direito à terra e à vida desses povos.
Na entrevista, Nailton revelou, ainda, que estava jurado de morte por um coronel da polícia baiana e por lideranças do Sindicato dos Fazendeiros de Pau Brasil, mas que não desistiria da sua luta pela reconquista das terras pataxós no território baiano, ocupadas por fazendeiros. Durante a Marcha, o indígena se reuniu com o presidente da República, FHC, do Senado, ACM, e da Câmara, Michel Temer, cobrando mais compromisso do Estado com os seus povos. Nas palavras de Nailton, o presidente, “cacique” de branco, vive em Palácio, o que o faz desconhecer a morte por violência, realidade comum para os líderes indígenas.
Dias após, o presidente da Funai, Carlos Marés, renunciava ao cargo acusando a ação governamental de “anti-indigenista”, “omissa” e de “direita”. Ex-presidente da Funai, o sertanista Orlando Villas Bôas afirmava que o presidente FHC deveria se desculpar aos indígenas pelos conflitos na região de Porto Seguro.
A violência da repressão ao movimento reivindicatório, o desprezo pelos direitos indígenas, a discriminação racial, o horror das condições carcerárias, a criminalidade da polícia são práticas e realidades explícitas e reiteradamente executadas pelo governo brasileiro. O Brasil de todos os tempos estava também representado no ataque ao movimento de reivindicação dos 2000.
Recentemente, são consideradas cada vez mais relevantes as reivindicações por políticas de reparação apresentadas por grupos que sofreram experiências traumáticas, como violências, opressões ou derrotas, em algum momento de sua história. Reivindicações desse tipo têm implicado não apenas direito a reparação, mas também o que se passou a chamar de “dever de memória”: a garantia, por parte do Estado e da sociedade, de que determinados acontecimentos não serão esquecidos, que continuarão lembrados e registrados em narrativas históricas, inclusive as elaboradas pelos segmentos oficiais.
A prática da repressão policial escancara a postura do Estado de atropelar, sacrificar e ocultar a memória dos povos explorados e massacrados. Um “antidever de memória” foi comemorado pelo Estado brasileiro. E para isso, bombas e cacetetes implodiram o direito à livre manifestação e associação, garantido pela Constituição de 1988.
20 anos depois de 2000
Vinte anos depois, as causas da mobilização da Marcha dos 2000 parecem ser ainda mais atuais para o povo indígena.
Uma inflexão no avanço dos seus direitos tem sido fortemente densificada no Brasil dos últimos anos. A transmutação do público para o particular, em proveito dos interesses privados de exploração da terra e dos recursos naturais no país, é o que está em questão nos nossos dias.
Em sua campanha presidencial, Jair Bolsonaro afirmou que não demarcaria nenhum palmo de terra indígena caso se elegesse. E tem cumprido fielmente a promessa. Mais do que a inércia, disse que tentaria diminuir as áreas já demarcadas. Para ele, “temos uma área maior que a região Sudeste demarcada como terra indígena. E qual a segurança para o campo? Um fazendeiro não pode acordar hoje e, de repente, tomar conhecimento, via portaria, que ele vai perder sua fazenda para uma nova terra indígena”.
Pertencentes à União, as terras indígenas demarcadas são de uso exclusivo dos indígenas, sendo proibida a venda. No entanto, Bolsonaro já sinalizou para o desejo de conceder os títulos das terras para as comunidades para que elas possam livremente transacioná-las no mercado – a medida, no entanto, demandaria a aprovação de uma PEC.
Até 2020, já foram finalizados 440 processos de demarcação de terras indígenas no país, de acordo com a Funai. Esses territórios equivalem a 12,6% do território nacional.
Em 2010, a estimativa era de 817,9 mil integrantes no Brasil, o que corresponde a 0,4% da população total do país, segundo dados do IBGE. É por isso que Bolsonaro alega haver “muita terra para pouco índio”. No entanto, apesar de várias etnias de fato contarem com amplas áreas demarcadas, muitas tiveram pequenos territórios assegurados ou ainda aguardam a regularização de suas terras. Não são casos isolados. Os Guarani, Guarani-Kaiowá, Terena, Kaingang, Pataxó, Pataxó-Hã-Hã-Hãe, Tupinambá, Tapeba, Tremembé, Potiguara, Fulni-ô, Gamela, Munduruku, Anacé, Tuxá e Pankararu são povos que ocupam áreas diminutas, superpovoadas e altamente invadidas e degradadas.
A Constituição de 1988, no seu artigo 231, diz que “são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”.
Também a Constituição instituiu um prazo de cinco anos para a demarcação de todas as terras, o que não foi executado. A agilidade do Estado para atuar em muitas frentes, como nas de interesse do grande capital econômico, contrasta com a morosidade histórica com que lida com pautas como essa.
Dados recentes do IBGE informam que 42,3% dos indígenas vivem fora de terras indígenas.
Os setores minerário e agropecuário atuam incisivamente contra o movimento demarcatório. Representando-os, Bolsonaro já afirmou por diversas vezes que os indígenas não podem “continuar sendo pobres em cima de terras ricas”, em referência aos depósitos minerais e às terras ociosas localizadas nas reservas.
Ao se aproximar de indígenas abertos à entrada da mineração e do agronegócio em seus territórios, Bolsonaro disse que enviaria ao Parlamento um projeto legislativo para regular a atividade. Segundo ele, o projeto melhoraria as condições de vida das comunidades e possibilitaria o acesso a créditos e a novas tecnologias mais avançadas.
Os setores da mineração e do agronegócio executam práticas predatórias ao meio ambiente e à sociedade, com uso de substâncias contaminadoras e de alto potencial de risco, com nítido prejuízo à biodiversidade. Ao impactar o modo de vida dos integrantes das comunidades, teme-se o enfraquecimento de tradições e a maior propensão ao individualismo. Além disso, o ingresso contínuo de forasteiros e de trabalhadores externos às comunidades impõe riscos à saúde local, por meio da introdução de novas patologias e de práticas sociais como a da prostituição.
Atualmente, a prática de uma agricultura tradicional compõe a maior parte das comunidades indígenas, orientada ao consumo para a subsistência e para os mercados locais.
Se um dos levantes do movimento de 2000 foi para resistir no plano cultural contra a hegemonia da visão branca e europeia, essa pauta ainda é emblemática de uma luta que faz todo o sentido para o tempo presente.
Em discurso similar ao dos militares da ditadura de 1964, Bolsonaro defende a integração dos indígenas à sociedade nacional. Em fevereiro de 2020, falando a indígenas representantes de trinta etnias, o presidente da República afirmou que “o índio não pode ficar dentro da terra como um ser pré-histórico. Ele é igual nós”.
A visão que se constrói dos indígenas a partir de falas como essa dificulta a compreensão das diversidades socioculturais inerentes às relações interétnicas e o reconhecimento de direitos às sociedades indígenas no Brasil. Ela reflete ainda uma ideologia dominante e retrógrada, de viés colonialista, eurocêntrico e evolucionista.
Esses discursos enfraquecem políticas afirmativas e específicas para segmentos historicamente subalternizados. Mais recentemente, até mesmo o direito às cotas dos indígenas nas universidades públicas tem sido objeto de críticas e ameaças. No dia em que anunciou sua saída do Ministério da Educação, Abraham Weintraub revogou uma portaria de 2016 que determinava cotas para negros, pardos, indígenas e pessoas com deficiência em cursos de pós-graduação nas universidades e institutos federais, o que inclui programas de mestrado e doutorado.
Uma outra pauta urgente se relaciona à condução dos órgãos indigenistas nos últimos anos. Já nos primeiros dias de exercício, Bolsonaro editou uma medida provisória que esvaziou as funções da Funai. Por meio dessa medida, passou a ser do Ministério da Agricultura, chefiado por Tereza Cristina, até então líder da bancada do agronegócio na Câmara, a missão de identificação e demarcação de terras indígenas no país. Essa era uma das principais atribuições da Funai nas últimas décadas. A nova medida é um antigo desejo do agronegócio e da bancada ruralista do Congresso.
Após intensa resistência e protestos por parte dos indígenas, o Congresso reverteu a decisão presidencial. Na sequência, mais uma vez Bolsonaro lançou uma nova medida provisória com o intento de retirar da Funai a competência de demarcação de terras indígenas, mas foi barrado pelo Supremo Tribunal Federal.
Duas nomeações são elucidativas da composição desses órgãos. Em julho de 2019, foi nomeado para a chefia da Funai Marcelo Augusto Xavier da Silva, ex-delegado da Polícia Federal e próximo de deputados da chamada “bancada ruralista” do Congresso. Já para a chefia da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), Bolsonaro nomeou a indígena Silvia Nobre Waiãpi, que não tem, segundo muitas lideranças indígenas, histórico de atuação e representatividade.
Essas são algumas das muitas questões que representam violências reais e simbólicas à vida indígena. O processo de compreensão e de luta por elas envolve toda a sociedade brasileira. Por causa dos povos indígenas? Me parece que seria motivo mais do que suficiente. Mas não somente.
Um golpe na Constituição, um a cada dia, um a cada fala, um a cada ato, ameaça o projeto de país que nos constitui. O massacre a esses povos é representação da violência real simbólica a cada um de nós, aos biomas e às diversidades, ao reconhecimento da diferença, ao pluralismo, à vida. A perversidade do ataque aos indígenas é a perversidade contra cada um de nós, representada no passado e no não acesso a um futuro que com ele rompe.
O grito de guerra lançado em 2000 revolve essas questões, ao procurar por um tempo histórico que seja diverso de tudo o que até aqui foi implantado para denegrir a vida. Esse grito interessa a cada um de nós. A indígenas, negros, ribeirinhos, trabalhadores, mulheres, estudantes… A todos os brasileiros. A outros 500 anos.
Victor Hugo Criscuolo Boson é professor do Centro de Formação em Ciências Humanas e Sociais da Universidade Federal do Sul da Bahia.