Brasil Paralelo tenta censurar debate

RÉPLICA

Brasil Paralelo tenta censurar debate

por Diego Martins Dória Paulo
21 de julho de 2020
compartilhar
visualização

Em maio, publiquei no Le Monde Diplomatique Brasil um artigo sobre a produtora gaúcha Brasil Paralelo. Em poucas palavras, o texto demonstrava o modus operandi da iniciativa, questionava a narrativa sobre seu financiamento, denunciava sua estreita colaboração com Olavo de Carvalho e avaliava seu papel no projeto de país idealizado pela extrema-direita nacional. Mais de dois meses depois, a produtora julgou ser necessária uma resposta àquelas palavras. Talvez precisem de alguma publicidade. Talvez o resultado alcançado pela matéria tenha incomodado. O fato é que a pretensa resposta permitiu que eu voltasse ao tema. Mais: como se sorte pouca fosse bobagem, o texto assinado pela organização (e que pode ser conferido aqui) na prática serviu de oportunidade para ratificar a substância da minha análise. Vejamos.

Na ocasião, discuti as fontes de financiamento da produtora. Expliquei como o contrato da Brasil Paralelo com a TV Escola, vinculada ao MEC, ajudou a produtora gaúcha a alcançar um objetivo que, segundo a própria empresa, não foi atingido por crowdfunding.[1] Com efeito, em 2019, a empresa lançou uma vaquinha virtual com diversas metas. As duas mais ambiciosas pretendiam arrecadar dinheiro suficiente para levar o conteúdo de A última cruzada: o filme para as escolas.[2] O fracasso assumido por Filipe Valerim em setembro daquele ano contrasta com os termos do contrato celebrado em 28 de novembro de 2019, pelo qual a TV Escola garantiu o direito de transmissão do filme em questão.[3] Como se sabe, dentre os usos da emissora, constam:

desenvolvimento profissional de gestores e docentes (inclusive preparação para vestibular, cursos de progressão funcional e concurso público); dinamização das atividades de sala de aula; preparação de atividades extraclasse, recuperação e aceleração de estudos; utilização de vídeos para trabalhos de avaliação do aluno e de grupos de alunos; revitalização da biblioteca e aproximação escola-comunidade.[4]

Em outras palavras, a TV Escola disponibiliza aos professores brasileiros conteúdo que auxilia na sua formação continuada e/ou na sua prática docente, podendo inclusive ser utilizado em sala de aula. No texto publicado em maio neste Le Monde Diplomatique Brasil, indiquei que a televisão vinculada ao Ministério da Educação então gerido por Weintraub (que participou de documentário da produtora gaúcha atacando… o MEC) tornou possível o que o financiamento coletivo não conseguira. Exatamente assim se passou.

O exposto acima tinha recebido menos destaque do que deveria. À época da primeira publicação, o interesse mais amplo de investigação impediu exposições relativamente mais detalhadas. Assim, o retorno ao tema, propiciado pela ação da Brasil Paralelo, é bem-vindo. Trata-se de oportunidade de conhecer melhor as formas de financiamento da iniciativa. De acordo com o texto veiculado sob abrigo do direito de resposta, a empresa se financia unicamente a partir de recursos privados seus, quais sejam: “(i) a monetização do conteúdo disponibilizado no Youtube, (ii) a venda de cursos na modalidade online em seu portal (iii) a assinatura da modalidade premium com acesso a conteúdos exclusivos também no website da empresa, além de outros meios menores e privados de fomento econômico empregados pela empresa no fito de promover a efetivação de seu objeto social”. (grifos meus)

Temos aqui uma novidade em si mesma eloquente – menos no que diz respeito às formas de financiamento, mais sobre o conceito de verdade detido pela Brasil Paralelo. Eis um trecho retirado do canal de YouTube da empresa:

“dependemos de você para continuarmos com o nosso trabalho. Não aceitamos nenhum real de dinheiro público, muito menos do Youtube. Tudo, absolutamente tudo que produzimos é financiado por nossos Membros Assinantes”.[5]

O item (i) contradiz diretamente o dito na plataforma de vídeos. Antes negado, agora assumem receber dinheiro do YouTube. Poderão se esquivar, alegando se tratar de uma jogada de marketing. Um apelo que reforce a importância da membresia para a produtora. Mas se é admissível uma informação falsa com o fito de se alcançar um objetivo específico, cabe à sociedade perguntar em nome de que outros interesses a Brasil Paralelo mente.

Meu texto anterior defendeu ainda que a produtora participa de uma frente de extrema-direita com objetivo de transformar a realidade brasileira. Para tanto, inclusive violenta a documentação utilizada como fundamento das teses desenvolvidas em seus documentários. Prova-o o uso de uma fotografia de Sebastião Salgado, feita em 1986, no garimpo de Serra Pelada, sul do Pará, como se fosse um registro da Guerrilha do Araguaia, travada entre 1967 e 1974. O fato de o processo não ter ainda se encerrado não anula o argumento então formulado, sendo um fato circunstancial. A substância do que foi dito segue rigorosamente a mesma: a evidente incorreção documental foi denunciada, e o Google, gestor do YouTube, retirou o referido vídeo do ar. O conteúdo voltou à plataforma com a remoção da fotografia, graças a processo (Nº 2224880-77.2019.8.26.0000, da comarca de São Paulo) no qual a Brasil Paralelo reconheceu a autoria de Sebastião Salgado e o uso indevido do documento – escoltando-se em suposta imperícia, haja vista que feito “sem má-fé”.[6]

Para quem se arroga o direito de educar, aliás, tanto pior o reconhecimento do trato inadequado do material que utiliza para construir suas narrativas. Ao admitir que usou indevidamente a fotografia do autor, a Brasil Paralelo põe em dúvida todas as fontes apresentadas em seus documentários. O erro percebido foi apontado por ser grosseiro. Quais outras falsificações mais sutis não passaram despercebidas por mim e outros analistas? Eu mesmo apontei outras que não foram comentadas no direito de resposta da empresa. E nem poderiam.

Em resposta a esta análise, a Brasil Paralelo se refugia em dita função jornalística, cujo objetivo seria meramente informativo. Busca, assim, desassociar-se da intenção de intervir e transformar a realidade nacional, o que por si só invalidaria qualquer pretensão à “imparcialidade”, reivindicada pela empresa na resposta à minha publicação. Uma vez mais os fatos caminham em direção oposta. Claro, qualquer pretensão à neutralidade é necessariamente débil, indício de profundo desconhecimento das coisas da política, da função da imprensa, do sociometabolismo cultural. Aqui, porém, trata-se de demonstrar que eles sabem disso – o que implica novo recurso consciente à mentira.

A tarefa não é difícil. Voltemos ao grupo oficial da empresa no Facebook. O intitulado “Conselho Brasil Paralelo” é “só para membros”, mas aceita outras pessoas, possivelmente para hipertrofiar o número de assinantes. A descrição do espaço é bem mais sincera quanto às pretensões à imparcialidade. Diz a Brasil Paralelo, por meio dos administradores do ambiente virtual:

“O Conselho Brasil Paralelo é um grupo de debate exclusivo para os Fundadores Conselheiros do Brasil Paralelo, um projeto com 100% de capital privado com o objetivo de mudar o Brasil”.[7] (grifos meus)

Como é possível ser “imparcial” e “mudar o Brasil” ao mesmo tempo? A resposta talvez esteja nas aulas de Olavo de Carvalho. O ideólogo foi apontado por mim como um dos líderes da frente de extrema-direita que tem na Brasil Paralelo um de seus peões. Não é uma tese original, mas a empresa a considerou lesiva – o que é compreensível – e desprovida de bases fáticas – o que é falso. Além dos dados que o meu texto levantou e inúmeros outros autores também, temos aqui outro indício. Uma representante da produtora, administradora do grupo privado oficial da Brasil Paralelo no Facebook, confidenciou em post o seguinte aos “conselheiros”, após uma reportagem da Folha de S.Paulo sobre a trilogia Pátria Educadora:[8]

“Tamo na Fôia, pessoal! Apesar do artigo ser completamente enviesado e obviamente querer nos prejudicar, a propaganda está feita! Rsrsrs. Como diz o professor Olavo: ninguém nos déte!”[9]

O “professor” Olavo é o astrólogo, e a comunhão de esforços está evidente no uso pronominal. Nós quem, se não a empresa e o guru dos reacionários? Outros exemplos são abundantes, mas não quero cansar o prezado leitor demonstrando que o céu é azul.

Com suas acusações, a produtora tenta amedrontar os analistas independentes preocupados em melhorar os níveis do debate público. Trata-se de pretensão à censura, evidente em nota emitida pela empresa e corretamente publicada pelo Le Monde Diplomatique Brasil. Nela, somos, eu e o veículo, acusados de exceder os limites da liberdade de imprensa. Ao que parece, para a Brasil Paralelo, a liberdade de imprensa se encerra onde começa um suposto direito à mentira. São traços de personalidades autoritárias, que recorrem aos instrumentos repressivos quando se percebem incapazes de produzir algo que resista ao teste da crítica.

 

Diego Martins Dória Paulo é doutorando em História pelo Programa de Pós-graduação da Universidade Federal Fluminense e membro do GTO, grupo de pesquisas coordenado pela Prof. Dra. Virginia Fontes.

[1] https://www.youtube.com/watch?time_continue=2&v=2YzEx4XAgFQ&feature=emb_title (acessado em 20/07/2020 às 12h24)

[2] https://www.brasilparalelo.com.br/a-ultima-cruzada-o-filme#donation-buttons (acessado em 20/07/2020 às 12h45)

[3] https://www.oantagonista.com/brasil/contrato-da-brasil-paralelo-com-tv-escola-e-de-tres-anos/ (acessado em 20/07/2020 às 12h39)

[4] http://portal.mec.gov.br/tv-escola (acessado em 20/07/2020 às 13h07)

[5] https://www.youtube.com/watch?v=EU5sAWPKgMc (acessado em 20/07/2020 às 12h27)

[6] https://www.jusbrasil.com.br/diarios/267141655/djsp-judicial-2a-instanc-ia-17-10-2019-pg-752?ref=feed (acessado em 20/07/2020 às 13h22)

[7] https://www.facebook.com/groups/1027514054061283/?post_id=2119705138175497 (acessado em 20/07/2020 às 12h14)

[8] https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/04/trilogia-sobre-educacao-mostra-nova-trincheira-do-bolsonarismo-contra- esquerda.shtml?fbclid=IwAR3_NPrXh_5aF8YECccxTkV2ePinSzdlHLfF5dDWeEg0jC_R37MgE8ndo6I (acessado em 20/07/2020 às 14h54)

[9] https://www.facebook.com/groups/1027514054061283/?post_id=2119705138175497 (acessado em 20/07/2020 às 12h04)



Artigos Relacionados

TRANSFORMAÇÕES DA ÚLTIMA DÉCADA

O Chile na guerra comercial entre EUA e China

Séries Especiais | América Latina
por Libio Pérez
O PLANO ESTRATÉGICO 2023-2027 DA PETROBRAS

Um cenário de incertezas

por José Sérgio Gabrielli de Azevedo
JUSTIÇA

Voz do preso: Presente!

Online | Brasil
por João Marcos Buch
A CANNABIS COMO UM PRODUTO

Maconha: mercados, regulações e impostos

por Emilio Ruchansky
CORRUPÇÃO

Conflitos e fragmentação da ordem internacional tornam mais complexo o combate à corrupção

Online | Ucrânia
por Bruno Brandão e Klei Medeiros
ENTREVISTA IVAN SEIXAS

Relatos de resistência

Online | Brasil
por Sérgio Barbo
MÍDIA E JUSTIÇA

Enquanto isso, na Sala de Justiça... Pautas antigas voltam a rondar o Judiciário que agora é pop

Online | Brasil
por Grazielle Albuquerque
UMA REFLEXÃO SOBRE CENÁRIOS DO PASSADO E O PRESENTE

O “evidente” na política chilena

por Gonzalo Rovira Soto