Em maio, publiquei no Le Monde Diplomatique Brasil um artigo sobre a produtora gaúcha Brasil Paralelo. Em poucas palavras, o texto demonstrava o modus operandi da iniciativa, questionava a narrativa sobre seu financiamento, denunciava sua estreita colaboração com Olavo de Carvalho e avaliava seu papel no projeto de país idealizado pela extrema-direita nacional. Mais de dois meses depois, a produtora julgou ser necessária uma resposta àquelas palavras. Talvez precisem de alguma publicidade. Talvez o resultado alcançado pela matéria tenha incomodado. O fato é que a pretensa resposta permitiu que eu voltasse ao tema. Mais: como se sorte pouca fosse bobagem, o texto assinado pela organização (e que pode ser conferido aqui) na prática serviu de oportunidade para ratificar a substância da minha análise. Vejamos.
Na ocasião, discuti as fontes de financiamento da produtora. Expliquei como o contrato da Brasil Paralelo com a TV Escola, vinculada ao MEC, ajudou a produtora gaúcha a alcançar um objetivo que, segundo a própria empresa, não foi atingido por crowdfunding.[1] Com efeito, em 2019, a empresa lançou uma vaquinha virtual com diversas metas. As duas mais ambiciosas pretendiam arrecadar dinheiro suficiente para levar o conteúdo de A última cruzada: o filme para as escolas.[2] O fracasso assumido por Filipe Valerim em setembro daquele ano contrasta com os termos do contrato celebrado em 28 de novembro de 2019, pelo qual a TV Escola garantiu o direito de transmissão do filme em questão.[3] Como se sabe, dentre os usos da emissora, constam:
desenvolvimento profissional de gestores e docentes (inclusive preparação para vestibular, cursos de progressão funcional e concurso público); dinamização das atividades de sala de aula; preparação de atividades extraclasse, recuperação e aceleração de estudos; utilização de vídeos para trabalhos de avaliação do aluno e de grupos de alunos; revitalização da biblioteca e aproximação escola-comunidade.[4]
Em outras palavras, a TV Escola disponibiliza aos professores brasileiros conteúdo que auxilia na sua formação continuada e/ou na sua prática docente, podendo inclusive ser utilizado em sala de aula. No texto publicado em maio neste Le Monde Diplomatique Brasil, indiquei que a televisão vinculada ao Ministério da Educação então gerido por Weintraub (que participou de documentário da produtora gaúcha atacando… o MEC) tornou possível o que o financiamento coletivo não conseguira. Exatamente assim se passou.
O exposto acima tinha recebido menos destaque do que deveria. À época da primeira publicação, o interesse mais amplo de investigação impediu exposições relativamente mais detalhadas. Assim, o retorno ao tema, propiciado pela ação da Brasil Paralelo, é bem-vindo. Trata-se de oportunidade de conhecer melhor as formas de financiamento da iniciativa. De acordo com o texto veiculado sob abrigo do direito de resposta, a empresa se financia unicamente a partir de recursos privados seus, quais sejam: “(i) a monetização do conteúdo disponibilizado no Youtube, (ii) a venda de cursos na modalidade online em seu portal (iii) a assinatura da modalidade premium com acesso a conteúdos exclusivos também no website da empresa, além de outros meios menores e privados de fomento econômico empregados pela empresa no fito de promover a efetivação de seu objeto social”. (grifos meus)
Temos aqui uma novidade em si mesma eloquente – menos no que diz respeito às formas de financiamento, mais sobre o conceito de verdade detido pela Brasil Paralelo. Eis um trecho retirado do canal de YouTube da empresa:
“dependemos de você para continuarmos com o nosso trabalho. Não aceitamos nenhum real de dinheiro público, muito menos do Youtube. Tudo, absolutamente tudo que produzimos é financiado por nossos Membros Assinantes”.[5]
O item (i) contradiz diretamente o dito na plataforma de vídeos. Antes negado, agora assumem receber dinheiro do YouTube. Poderão se esquivar, alegando se tratar de uma jogada de marketing. Um apelo que reforce a importância da membresia para a produtora. Mas se é admissível uma informação falsa com o fito de se alcançar um objetivo específico, cabe à sociedade perguntar em nome de que outros interesses a Brasil Paralelo mente.
Meu texto anterior defendeu ainda que a produtora participa de uma frente de extrema-direita com objetivo de transformar a realidade brasileira. Para tanto, inclusive violenta a documentação utilizada como fundamento das teses desenvolvidas em seus documentários. Prova-o o uso de uma fotografia de Sebastião Salgado, feita em 1986, no garimpo de Serra Pelada, sul do Pará, como se fosse um registro da Guerrilha do Araguaia, travada entre 1967 e 1974. O fato de o processo não ter ainda se encerrado não anula o argumento então formulado, sendo um fato circunstancial. A substância do que foi dito segue rigorosamente a mesma: a evidente incorreção documental foi denunciada, e o Google, gestor do YouTube, retirou o referido vídeo do ar. O conteúdo voltou à plataforma com a remoção da fotografia, graças a processo (Nº 2224880-77.2019.8.26.0000, da comarca de São Paulo) no qual a Brasil Paralelo reconheceu a autoria de Sebastião Salgado e o uso indevido do documento – escoltando-se em suposta imperícia, haja vista que feito “sem má-fé”.[6]
Para quem se arroga o direito de educar, aliás, tanto pior o reconhecimento do trato inadequado do material que utiliza para construir suas narrativas. Ao admitir que usou indevidamente a fotografia do autor, a Brasil Paralelo põe em dúvida todas as fontes apresentadas em seus documentários. O erro percebido foi apontado por ser grosseiro. Quais outras falsificações mais sutis não passaram despercebidas por mim e outros analistas? Eu mesmo apontei outras que não foram comentadas no direito de resposta da empresa. E nem poderiam.
Em resposta a esta análise, a Brasil Paralelo se refugia em dita função jornalística, cujo objetivo seria meramente informativo. Busca, assim, desassociar-se da intenção de intervir e transformar a realidade nacional, o que por si só invalidaria qualquer pretensão à “imparcialidade”, reivindicada pela empresa na resposta à minha publicação. Uma vez mais os fatos caminham em direção oposta. Claro, qualquer pretensão à neutralidade é necessariamente débil, indício de profundo desconhecimento das coisas da política, da função da imprensa, do sociometabolismo cultural. Aqui, porém, trata-se de demonstrar que eles sabem disso – o que implica novo recurso consciente à mentira.
A tarefa não é difícil. Voltemos ao grupo oficial da empresa no Facebook. O intitulado “Conselho Brasil Paralelo” é “só para membros”, mas aceita outras pessoas, possivelmente para hipertrofiar o número de assinantes. A descrição do espaço é bem mais sincera quanto às pretensões à imparcialidade. Diz a Brasil Paralelo, por meio dos administradores do ambiente virtual:
“O Conselho Brasil Paralelo é um grupo de debate exclusivo para os Fundadores Conselheiros do Brasil Paralelo, um projeto com 100% de capital privado com o objetivo de mudar o Brasil”.[7] (grifos meus)
Como é possível ser “imparcial” e “mudar o Brasil” ao mesmo tempo? A resposta talvez esteja nas aulas de Olavo de Carvalho. O ideólogo foi apontado por mim como um dos líderes da frente de extrema-direita que tem na Brasil Paralelo um de seus peões. Não é uma tese original, mas a empresa a considerou lesiva – o que é compreensível – e desprovida de bases fáticas – o que é falso. Além dos dados que o meu texto levantou e inúmeros outros autores também, temos aqui outro indício. Uma representante da produtora, administradora do grupo privado oficial da Brasil Paralelo no Facebook, confidenciou em post o seguinte aos “conselheiros”, após uma reportagem da Folha de S.Paulo sobre a trilogia Pátria Educadora:[8]
“Tamo na Fôia, pessoal! Apesar do artigo ser completamente enviesado e obviamente querer nos prejudicar, a propaganda está feita! Rsrsrs. Como diz o professor Olavo: ninguém nos déte!”[9]
O “professor” Olavo é o astrólogo, e a comunhão de esforços está evidente no uso pronominal. Nós quem, se não a empresa e o guru dos reacionários? Outros exemplos são abundantes, mas não quero cansar o prezado leitor demonstrando que o céu é azul.
Com suas acusações, a produtora tenta amedrontar os analistas independentes preocupados em melhorar os níveis do debate público. Trata-se de pretensão à censura, evidente em nota emitida pela empresa e corretamente publicada pelo Le Monde Diplomatique Brasil. Nela, somos, eu e o veículo, acusados de exceder os limites da liberdade de imprensa. Ao que parece, para a Brasil Paralelo, a liberdade de imprensa se encerra onde começa um suposto direito à mentira. São traços de personalidades autoritárias, que recorrem aos instrumentos repressivos quando se percebem incapazes de produzir algo que resista ao teste da crítica.
Diego Martins Dória Paulo é doutorando em História pelo Programa de Pós-graduação da Universidade Federal Fluminense e membro do GTO, grupo de pesquisas coordenado pela Prof. Dra. Virginia Fontes.
[1] https://www.youtube.com/watch?time_continue=2&v=2YzEx4XAgFQ&feature=emb_title (acessado em 20/07/2020 às 12h24)
[2] https://www.brasilparalelo.com.br/a-ultima-cruzada-o-filme#donation-buttons (acessado em 20/07/2020 às 12h45)
[3] https://www.oantagonista.com/brasil/contrato-da-brasil-paralelo-com-tv-escola-e-de-tres-anos/ (acessado em 20/07/2020 às 12h39)
[4] http://portal.mec.gov.br/tv-escola (acessado em 20/07/2020 às 13h07)
[5] https://www.youtube.com/watch?v=EU5sAWPKgMc (acessado em 20/07/2020 às 12h27)
[6] https://www.jusbrasil.com.br/diarios/267141655/djsp-judicial-2a-instanc-ia-17-10-2019-pg-752?ref=feed (acessado em 20/07/2020 às 13h22)
[7] https://www.facebook.com/groups/1027514054061283/?post_id=2119705138175497 (acessado em 20/07/2020 às 12h14)
[8] https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/04/trilogia-sobre-educacao-mostra-nova-trincheira-do-bolsonarismo-contra- esquerda.shtml?fbclid=IwAR3_NPrXh_5aF8YECccxTkV2ePinSzdlHLfF5dDWeEg0jC_R37MgE8ndo6I (acessado em 20/07/2020 às 14h54)
[9] https://www.facebook.com/groups/1027514054061283/?post_id=2119705138175497 (acessado em 20/07/2020 às 12h04)