Brexit, a xenofobia não explica tudo
Analistas enfatizaram as características racistas do voto em favor do Brexit, como uma afirmação anti-imigrantes. Mas nada foi dito sobre os determinantes sociais do resultado: austeridade, desemprego em massa, aumento da pobreza etc. Flagelos que levam os menos favorecidos a lutar entre siPaul Mason
Abilheteira de uma pequena estação de trem do País de Gales passava o tempo, absorvida por uma conversa com um colega. Este se lamentava: “Não é mais possível comprar brinquedos cor-de-rosa para meninas, é preciso que eles sejam cinza”. Ela respondeu: “É semelhante ao que acontece com a palavra golliwog…”.1 Os dois agentes de uma grande companhia ferroviária, de uniforme, defendiam seu ponto de vista diante dos clientes, sem o menor constrangimento.
Durante a campanha em torno do referendo pela permanência ou não do Reino Unido no seio da União Europeia,2 ouvia-se por toda parte esse tipo de discussão, por menos que se prestasse atenção: breves e incoerentes manifestações de racismo, súbitas revoltas contra o “politicamente correto”. Eu mesmo, oriundo de uma cidade operária, compreendia o que essas pessoas queriam exprimir, para além das propostas xenófobas. Uma falsa rebelião dos marginalizados se armava contra os valores de uma elite socialmente liberal e seu projeto de sempre: o pertencimento à União Europeia.
Nessa conversa, como em milhões de outras, ninguém precisava usar a palavra “Europa”. O referendo representava apenas uma ocasião de manifestar seu desagrado, de dizer “Estamos fartos”. Fartos da morosidade, fartos das ruas comerciais decrépitas, fartos dos baixos salários, fartos das mentiras dos políticos e da maneira pela qual eles governam baseados no medo. No dia da consulta, 56% dos eleitores desse reduto do Partido Trabalhista votaram a favor da saída da União Europeia.
Sinais anunciavam isso. Nas eleições gerais de maio de 2015, o Partido para a Independência do Reino Unido (Ukip) irrompera nos antigos vales mineiros do País de Gales, fiéis ao Partido Trabalhista desde sua criação em 1901. Em âmbito nacional, nas eleições europeias de 2014, o Ukip conquistou 25% dos votos, concentrados no mesmo tipo de cidade: pequena, sem graça, com empregos mal remunerados no setor privado e com uma quantidade de imigração apenas suficiente para lembrar a todo mundo as afirmações dos economistas – a chegada de pessoas do Leste Europeu puxa para baixo os salários em razão da entrada na concorrência dos trabalhadores orquestrada pelas diretivas europeias.
Sensação inexorável de desastre
Compreender o Brexit é medir a irrupção dessa xenofobia por longo tempo subjacente em regiões trabalhistas empobrecidas e constatar sua fusão com o nacionalismo conservador tradicional nas periferias e nas zonas rurais. Basta observar o mapa dos resultados: as grandes cidades inglesas e o conjunto da Escócia votaram pela permanência na União Europeia, enquanto as cidades e vilarejos pobres da Inglaterra e do País de Gales preferiram sair. Mesmo a presença de duas universidades, de uma importante comunidade asiática e de uma economia urbana florescente não conseguiu fazer cidades como Nottingham e Birmingham se bandearem para o campo eurófilo. Ao votarem contra a Europa, esses municípios fizeram de uma revolta que amadurece há anos um evento histórico decisivo, e isso em razão de três fatores principais.
Primeiramente, o neoliberalismo, do qual o reino foi um dos laboratórios, está se fragmentando. No início dos anos 1980, a primeira-ministra Margaret Thatcher conduziu uma política que transformou uma recessão em colapso industrial e social a fim de prejudicar a coesão dos bastiões operários. Por décadas, a margem de negociação dos assalariados foi largamente reduzida. Durante os anos 1990 e 2000, tanto aqui como no mundo ocidental, o recurso ao crédito serviu para preencher o fosso entre os rendimentos que se estagnavam e o crescimento econômico.
O trabalhista Tony Blair (1997-2007) manteve a ilusão de que a riqueza iria escoar dos centros urbanos abastados, globalizados e bem munidos de pessoas economicamente ativas. Ao constatar que essa profecia não se realizara, Gordon Brown, então chanceler do Tesouro Público (ministro das Finanças), aumentou as despesas públicas, sobretudo benefícios ligados ao emprego e à contratação de funcionários. Com a privatização de porções inteiras do serviço público, como o recolhimento do lixo, a ilusão foi total. Na véspera da crise de 2008, era possível ver cidades galesas sem o menor emprego produtivo, prisioneiras da delinquência e de males gerados pela pobreza, onde circulavam caminhões de lixo tinindo de novos conduzidos por empregados que recebiam salário mínimo. Essas cidades mantinham a cabeça fora da água unicamente graças a diversos benefícios sociais, ligados à guarda de crianças, aos problemas mentais etc.3
Em seguida, a crise de 2008 estourou. Mal tendo chegado ao poder, o governo conservador de David Cameron (2010-2016) começou a cortar despesas. A falta de crédito desfechou um golpe severo nos pequenos comércios, que se viram desertos, ou substituídos pelos três símbolos nacionais da pobreza urbana: Poundland (onde tudo custa 1 libra esterlina), Cash Converters (loja de penhores moderna) e os escritórios de Citizens Advice (“conselho de cidadãos”), onde se pode entrar na fila de manhã a fim de obter ajuda para renegociar a dívida, evitar o despejo ou lutar contra pensamentos suicidas.
Nem todas as cidades compartilham a mesma sorte: Londres, Manchester, Bristol e Leeds parecem prosperar à primeira vista, inclusive na cena mundial. Mas, na base da escala econômica, a empregada mal paga da Zara compra seu almoço no Subway, cujo empregado mal pago compra sua camisa na Zara. Para eles, o problema está menos no salário que na habitação. Inflados por 375 bilhões de libras esterlinas (cerca de R$ 1,612 trilhão) de amortização quantitativa (quantitative easing), os preços dos imóveis atingiram tal nível que, em Londres, vários jovens economicamente ativos dividem o mesmo quarto. A configuração tradicional do apartamento de estudantes, em que o menor cômodo serve para dormir, tornou-se comum mesmo entre jovens advogados…
Ainda que a crise do neoliberalismo tenha assombrado as perspectivas de futuro dos jovens, fortemente endividados, existe outro fator determinante da revolta. Ela foi desencadeada em lugares que ignoram a vida trepidante das cidades multiculturais, esse paliativo do neoliberalismo. Ou, pelo menos, não o bastante para compensar a impressão dominante de desastre econômico inexorável.
Em janeiro de 2004, quando oito países do Leste Europeu passaram a integrar o espaço de livre circulação da União Europeia, o governo de Blair não impôs nenhuma restrição temporária. Um ministro trabalhista previu com segurança que não mais de 30 mil migrantes viriam. Mas o recurso a uma mão de obra europeia mais mal paga e que conhece menos seus direitos, de fato, ocorreu. Hoje em dia, 3 milhões de pessoas originárias da União Europeia vivem no Reino Unido; 2 milhões têm um emprego. Contando a chegada regular de não europeus, os trabalhadores nascidos no estrangeiro representam cerca de 17% da mão de obra.
Enquanto alguns ocupam cargos no serviço público (55 mil estrangeiros europeus trabalham no serviço de saúde pública, o National Health Service), a maior parte tem empregos mal remunerados no setor privado. Eles fornecem 43% dos efetivos nas fábricas de embalagem e de conservas. Se subirmos na cadeia de valor até as indústrias manufatureiras, eles representam 33%. No sul de Londres, encontrei um fabricante de protetores labiais que recrutava toda a sua mão de obra na Lituânia.
A classe política compreendeu o impacto social da imigração maciça de um ponto de vista teórico, mas nunca visceralmente. O mito segundo o qual os trabalhadores britânicos eram “muito estúpidos” para ocupar esses postos, ou “não queriam trabalhar”, adequava-se bem à retórica neoliberal. O discurso não dava lugar à possibilidade de que esse fenômeno tivesse a ver com os salários atrozmente baixos e com os encargos suplementares descontados para levar o salário líquido ao mínimo permitido por lei.
A chegada repentina de lojas polonesas e de cafés portugueses às cidadezinhas britânicas soava aos olhos das elites metropolitanas como um toque de magia trazido pela globalização para a vida pacata dos moradores. Os jornalistas, em contrapartida, viam crescer um profundo ressentimento.
Acrescente-se a isso o terceiro fator, a austeridade, e o quadro estará completo. Quando as supressões de cargos dizimam os serviços públicos, não é de admirar que alguns se perguntem se a crise não seria mais suportável com menos imigrantes. Os que ousavam fazer essa pergunta eram tidos como xenófobos.
Cameron tinha prometido reduzir a imigração a “dezenas de milhares”. No ano passado, o saldo migratório líquido atingiu 330 mil pessoas,4 cuja maioria vinha da União Europeia e o resto do sistema de admissão por pontos dependente das necessidades do empregador. O movimento em favor do Brexit concentrou-se nesse dado, brandindo a ameaça de que a população poderia aumentar em 1 milhão a cada três anos sob o efeito da imigração europeia, de que os baixos salários não poderiam melhorar e de que mesmo um governo conservador não teria vontade de agir.
O governo recusou-se a adotar medidas para desencorajar a imigração de europeus no nível macroeconômico. Nas negociações de fevereiro de 2016, Cameron não se deu nem mesmo ao trabalho de solicitar formalmente ajustes nas regras de livre circulação.
Todas as condições se encontravam reunidas para que a imigração chegasse ao cerne do debate, em torno do qual se articulariam todas as outras questões. Ao longo dos últimos dias da campanha, uma vez que o assassino da deputada Jo Cox5 forçou uma diminuição na retórica antimigratória, o povo britânico foi confrontado com a mensagem clara do campo eurófobo: deixar a Europa e controlar a imigração ou ficar e lidar com uma imigração sem limites, com a redução dos salários e as tensões culturais.
A elite política, aí incluída a ala esquerda do Partido Trabalhista, supunha que a adesão a essa mensagem não passaria de um patamar de 40%. No fim, como 30% dos eleitores de origem asiática e 22% dos eleitores negros votaram pelo Brexit, a maioria antieuropeia atingiu 52%.6 Os jovens, entre os quais 75% apoiavam o pertencimento à União Europeia, foram o único grupo a se abster em quantidade. Menos da metade dos britânicos com menos de 24 anos foi votar, contra 75% das pessoas de idade.
Assiste-se ao colapso dos pilares da centro-esquerda desde os anos 1970: o pertencimento à União Europeia, a ênfase colocada sobre seu capítulo social e sobre a aproximação com os outros membros. Por enquanto, a classe política e a sociedade britânicas parecem divididas em dois campos: um simbolizado pelo white van man (literalmente, “o homem da van branca”), estereótipo do trabalhador manual que estudou pouco e exibe a bandeira nacional no vidro do carro; o outro representado por um hipster de barba, cujas viagens artísticas a Berlim e as férias da moda em Ibiza poderiam se revelar mais difíceis de organizar.
O Partido Trabalhista devia antes encontrar o meio de reunir essas duas tribos sociológicas no seio das quatro nações que compõem o Reino Unido. Ele deve agora elaborar uma proposta de justiça social e democracia para uma população desestabilizada por tantas incertezas.
Paul Mason, jornalista, é autor de PostCapitalism: A Guide to Our Future [Pós-capitalismo: um guia para nosso futuro], Allen Lane, 2015. Uma versão deste artigo foi publicada na edição inglesa do Le Monde Diplomatique.