Brexit – David Cameron cai em sua própria armadilha
Sustentação do empresariado, apoio envergonhado dos trabalhistas, prováveis concessões dos parceiros europeus: na véspera do referendo sobre a saída do Reino Unido da União Europeia, tudo deveria tranquilizar o primeiro-ministro britânico. O crescente sentimento antieuropeu, contudo, ameaça inclusive David CameronBernard Cassen
“Me segurem, ou vou fazer algo errado”: essa foi, traduzida em linguagem não diplomática, a mensagem enviada por David Cameron aos seus 27 colegas chefes de Estado ou de governo reunidos no Conselho Europeu em 17 de dezembro de 2015 em Bruxelas. Inscrevendo-se na grande tradição das discussões-maratona desse tipo de reunião, o primeiro-ministro britânico tinha anunciado que estava disposto a “lutar a noite inteira” para arrancar de seus pares um acordo sobre uma renegociação das condições de adesão de seu país à União Europeia. Ele tinha dado a entender que, se não obtivesse o que queria, se veria na dura obrigação de recomendar a seus concidadãos que se pronunciassem pelo “Brexit”, ou seja, a saída do Reino Unido da União Europeia.
Na verdade, a reunião terminou cedo demais, à meia-noite, sem resultado, e qualquer decisão foi transferida para o Conselho Europeu seguinte, convocado para os dias 17 e 18 de fevereiro de 2016. Bons camaradas e preocupados em evitar que ele ficasse com cara de tacho, os parceiros de Cameron concordaram em deixá-lo afirmar logo depois diante das mídias britânicas presentes em grande quantidade: “A boa notícia é que há uma possibilidade de acordo”. Não seria possível ser mais vago, mas, assim que voltou ao país, isso permitiu que ele saísse com uma boa desculpa, já que não poderia seriamente gritar vitória…
O primeiro-ministro tinha anunciado suas exigências em uma carta dirigida no dia 10 de novembro de 2015 ao polonês Donald Tusk, presidente do Conselho Europeu. Elas estavam agrupadas em quatro capítulos: gerência econômica, competitividade, soberania e imigração. Por “gerência econômica”, Cameron compreende essencialmente a preservação dos interesses da City. Ele pede que seja inscrito nos textos que o euro não é a única moeda da União Europeia e que nenhuma discriminação deve atingir os países que não o utilizam. O capítulo relativo à competitividade visa desregular ainda mais o funcionamento do mercado interno e em particular, se lermos as entrelinhas, o direito trabalhista. Em matéria de soberania, Cameron é muito explícito e formula três reivindicações: suprimir dos tratados qualquer referência ao objetivo de uma “união cada vez mais estreita entre os povos europeus”; dar aos parlamentos nacionais o direito de bloquear qualquer proposta de ato legislativo comunitário que eles julguem indesejável; e aplicar estritamente o princípio de subsidiariedade: “A Europa, quando for necessário; o nacional, quando for possível”.
É no quarto capítulo, sobre a imigração, que figura, entre outras medidas restritivas desejadas, a obrigação, para um trabalhador vindo de outro país da União Europeia, de justificar quatro anos de presença e de pagamento de impostos no Reino Unido antes de poder se beneficiar do mesmo tratamento que seu colega britânico em matéria de prestações ligadas ao emprego ou à obtenção de uma moradia social. Isso seria atacar o princípio de não discriminação entre os originários dos Vinte e Oito, que, segundo os tratados – e, em certos casos, ao cabo de um período de transição –, têm o direito de se instalar e de trabalhar em qualquer outro dos Estados-membros. Em outras palavras, é uma das quatro “liberdades fundamentais” da União Europeia, a da circulação das pessoas, que estaria ameaçada.
Podemos nos questionar sobre o momento escolhido por Cameron para colocar sobre a mesa – apresentadas em forma de chantagem – propostas de reforma da União Europeia que não têm nada de particularmente novo do outro lado da Mancha. Na realidade, ele não escolheu nada. Ele se viu prisioneiro de uma dinâmica e de um calendário que ele mesmo tinha engatilhado. E isso não em nome de convicções profundas, mas por razões estritamente de politicagem: tratava-se simplesmente de ganhar as eleições legislativas de 2015! Em pânico com o crescimento do poder do eurofóbico Ukip (Partido pela Independência do Reino Unido),1 que disputa com o Partido Conservador uma parte de seu eleitorado tradicional, ele tinha decidido dar garantias para neutralizá-lo. O objetivo: assegurar um novo mandato de cinco anos no Downing Street n. 10, onde, nos dias seguintes à eleição de 2010, ele tinha se instalado na chefia de um governo de coalizão reunindo conservadores e liberais democratas.
Desde 2011, ele fez votar uma lei impondo a necessidade de um referendo – e não de um simples voto no Parlamento – para a ratificação de qualquer tratado transferindo novas competências significativas para as instituições europeias. Uma medida do tipo que desespera Bruxelas, para quem a ideia de dar a palavra diretamente aos povos provoca pesadelos… Em janeiro de 2013, Cameron foi ainda mais longe, comprometendo-se, na hipótese de que fosse mantido em suas funções após as próximas eleições legislativas, a organizar antes do fim de 2017 um referendo sobre a manutenção do Reino Unido na União Europeia. Essa consulta se daria com base nos resultados da negociação a ser feita entre Londres e o Conselho Europeu. Se o primeiro-ministro estimasse ter sido ouvido por seus parceiros, ele chamaria a votar “sim” para a questão: “O Reino Unido deve permanecer membro da União Europeia?”. Caso contrário, ele preconizaria o Brexit.
Euroceticismo variável
Em maio de 2015, o Partido Conservador, contrariando os prognósticos, ganhou as eleições legislativas com uma maioria absoluta das cadeiras, e Cameron se encontrou com a batata quente de uma promessa eleitoral a manter. Ele bem que teria deixado isso de lado no contexto europeu atual, dominado pelas questões dos fluxos maciços de refugiados e do jihadismo, que alimentam o crescimento da extrema direita na maioria dos países da União Europeia. Como o referendo se tornou inevitável, ele considerou que mais vale organizá-lo o mais cedo possível, para evitar que o debate degenere no interior do país – e primeiro no seio do Partido Conservador – e para que não provoque consequências imprevisíveis em outros países. Em particular na França, onde François Hollande, candidato não oficialmente declarado à reeleição em 2017, tem tudo a perder com a irrupção do debate europeu no meio de sua campanha. A lembrança do referendo francês de 29 de maio de 2005, que tinha levado os socialistas a abrir publicamente suas divisões, continua pungente… O melhor calendário seria um acordo unânime do Conselho Europeu em fevereiro e um voto em junho ou em setembro de 2016.
De intensidade variável segundo as circunstâncias, o euroceticismo de Cameron é cultural e ancorado na história, mais do que visceral – contrariamente ao de um grande número de deputados conservadores e alguns ministros, da maioria dos jornais londrinos e principalmente do Ukip e de seu dirigente, Nigel Farage, truculento deputado europeu. Ele se situa na linhagem do célebre discurso, pronunciado em Zurique em 1946, no qual Winston Churchill recomendou a criação dos Estados Unidos da Europa. Uma Europa federal, então, à qual o Reino Unido traria um apoio benevolente, mas de fora: “Estamos com vocês, mas não somos vocês”.
Ao se unir à Comunidade Econômica Europeia (CEE) em 1973, Londres voltou atrás sobre essa orientação estratégica, sem, para isso, renunciar a uma singularidade que se manifesta pela procura permanente de cláusulas de isenção (opt-out) às políticas comunitárias; procura que começou, mas sem sucesso, no dia seguinte à adesão. Hoje, o país não é nem membro da zona do euro nem engajado nos Acordos de Schengen, os dois totens que fazem o orgulho dos europeístas. Ele se beneficiou em 1984 de uma derrogação no módulo de cálculo da contribuição financeira de cada Estado-membro da CEE, o que se traduziu por um substancial desconto (o famoso “cheque britânico”). No seio dos Vinte e Oito, ele é um dos três Estados – junto com a Croácia e a República Tcheca – que não assinaram em 2012 o Tratado sobre a Estabilidade, a Coordenação e a Gerência (TSCG), também chamado Pacto Orçamentário Europeu.
Sem chegarem a adotar completamente a postura de um Estado terceiro – alguns diriam off-shore2 – em sua relação com a construção europeia, os governos britânicos sucessivos cultivaram as situações nas quais eles tinham um pé dentro e um fora, exceto nas áreas que realmente importavam para eles: em primeiro lugar, a realização do mercado interno europeu; depois, a livre circulação planetária dos capitais, das mercadorias e dos serviços, ou seja, três das quatro “liberdades fundamentais” da União Europeia (vimos anteriormente o pouco caso que é feito da quarta, a circulação das pessoas); e, enfim, a manutenção da posição dominante da City nos serviços financeiros, incluindo para as transações em euros.
Cameron pretende, assim, gravar no mármore as novas exceções britânicas às regras comunitárias, e até mesmo estendê-las ao conjunto da União Europeia. A questão é saber se sua carta a Tusk pode servir de base para um acordo entre todas as partes interessadas, tanto internas quanto externas. Cameron se compromete em sua partida de pôquer com um trunfo que não pode ser negligenciado: por diversas razões, nenhum dos outros governos da União Europeia deseja o Brexit. Angela Merkel, os dirigentes da Holanda, dos Estados nórdicos e da Europa central e oriental estão até mesmo dispostos a ir longe nas concessões para manter o braço neoliberal do qual Londres é um fiador de peso. Eles temem que este seja questionado pelo crescimento do poder relativo da França e dos outros países mediterrâneos, julgados como politicamente pouco confiáveis por seus parceiros.
No entanto, até mesmo para aliados fiéis existem linhas vermelhas que não devem ser ultrapassadas. Assim, para a Alemanha, a prioridade absoluta é a consolidação, por meio de uma integração crescente dos países-membros da zona do euro, do instrumento de dominação e imposição das políticas de austeridade que é a moeda única. Nem Berlim nem Frankfurt, sede do Banco Central Europeu (BCE), podem aceitar que esse processo seja entravado por vetos de Londres, como foi solicitado no capítulo sobre a gerência econômica. Sobre outra frente, os países do Leste se levantaram contra as medidas inscritas no capítulo sobre a imigração, que visam diretamente seus cidadãos expatriados no Reino Unido. Esse é o ponto mais sensível de todos, em particular para a Comissão e o Parlamento, pois, como vimos, coloca em questão uma das quatro “liberdades fundamentais” do projeto europeu, com o risco de criar um precedente e permitir a contestação das três outras. E assim reaparece o espectro do protecionismo…
Divisões internas
Para evitar o Brexit, parece haver apenas duas soluções: negociar um novo tratado ou, por meio de um instrumento jurídico apropriado (por exemplo, uma declaração dos chefes de Estado ou de governo), adotar cláusulas interpretativas dos tratados atuais sem modificá-los. Nos dois caos, a unanimidade dos Vinte e Oito seria necessária, mas a segunda solução permitiria economizar um procedimento de revisão, depois de ratificação, ao mesmo tempo longo e cheio de perigos – do que nem Merkel nem Hollande querem ouvir falar às vésperas dos períodos eleitorais de 2017. Para continuar no âmbito institucional atual, seria preciso que Cameron renunciasse às suas principais exigências e que, por sua vez, os juristas especialistas em construção semântica de Bruxelas concebessem um documento do Conselho Europeu com fórmulas pretensiosas que evitariam que o primeiro-ministro se retratasse completamente, sem ser incompatível com a ordem jurídica da União. Um caminho terrivelmente estreito…
Nessa hipótese, podemos já imaginar a fúria dos partidários do Brexit, como Daniel Hannan, deputado conservador no Parlamento Europeu, para quem Cameron já abandonou coisas demais no conteúdo de suas reivindicações, e isso antes mesmo de começar a negociação: “O Reino Unido finge exigir mudanças e a União finge estudar o assunto. […] É uma encenação, um enfrentamento falso para permitir que Cameron diga que ele conseguiu um acordo”.3
Em vez de se oferecer o repouso que imaginava em 2013, Cameron corre o risco de ver seu partido se dilacerar, e talvez até mesmo seu governo: ele deu antecipadamente liberdade de voto a seus ministros, entre os quais se conta uma meia dúzia de eurocéticos confirmados. Sua eventual e paradoxal salvação só pode vir dos eleitores do Partido Trabalhista, para os quais os elementos de direito social europeu, que ainda assim são bem atrasados, constituem, apesar de tudo, uma segurança contra a desregulação selvagem que desejam os conservadores – dessa vez de todas as tendências.
Cameron tinha anunciado que não lutaria por um terceiro mandato nas próximas eleições legislativas, que acontecerão no mais tardar em maio de 2020. Ele não tem nenhuma garantia de que poderá continuar na chefia de seu país até essa data, de tão imprevisível que é a situação na qual ele mesmo se enfiou, a qual pode terminar em um Brexit que seu sucessor terá de administrar.
Bernard Cassen é jornalista, ex-diretor geral de Le Monde Diplomatique e presidente de honra da Atacc França.