“Brexit” provoca mal-estar entre os trabalhistas
“O Reino Unido deve continuar membro da União Europeia?” Os britânicos respondem a esta questão no dia 23 de junho, sob o olhar preocupado dos dirigentes europeus.Renaud Lambert
Junho de 2015. Três meses antes de assumir o comando do Partido Trabalhista, Jeremy Corbyn declarou: “Uma Europa usurária que transforma as pequenas nações em colônias subjugadas sob o fardo da dívida” não tem “nenhum futuro”.1 A condenação não surpreende muito: em 1975, no quadro de um referendo, Corbyn tinha votado pela saída do Reino Unido daquilo que então se chamava Comunidade Econômica Europeia; em 1993, ele havia rejeitado o Tratado de Maastricht, prognosticando que o acordo impediria que os parlamentos nacionais “definissem sua própria política econômica em defesa de um punhado de banqueiros não eleitos”.2 Reviravolta inesperada: hoje, ele apoia o voto remain (“ficar”) no referendo do dia 23 de junho.
Ao contrário de Corbyn, David Cameron sempre batalhou em favor da União Europeia. Contudo, os bons resultados do Partido para a Independência do Reino Unido (Ukip) e o despertar da corrente eurocética em seu próprio partido o levaram a modificar seu discurso. Em 23 de janeiro de 2013, ele repreendeu severamente uma União Europeia que considera não suficientemente liberal: suas “regras muito complexas [que] entravam os mercados do trabalho”, seu enquadramento excessivo da atividade das empresas, sua incapacidade de desregular “os mercados de serviços, da energia e do digital”, sua falta de jeito para negociar “acordos de livre-comércio”. Prometendo um referendo em caso de vitória de seu partido nas eleições legislativas de 2015, ele anunciou que seu voto dependeria de negociações com Bruxelas, visando corrigir as disfunções da União Europeia.3 Quando, em 23 de janeiro de 2016, ele finalmente se assumiu na campanha contra o Brexit diante da Câmara dos Comuns, as aclamações se fizeram ouvir. Mas vindas da bancada trabalhista.
Será que os britânicos pretendiam misturar água e óleo? Tudo leva a crer que sim. Se, em seu discurso de 14 de abril de 2016 em defesa do remain, Corbyn inscrevia sua escolha estratégica na perspectiva da “construção do socialismo”, a identidade dos outros atores do campo da permanência desenhava um programa bem diferente. A campanha recebeu o apoio do Fundo Monetário Internacional (FMI), do Banco da Inglaterra, de grande parte das empresas do FTSE 100 (o equivalente britânico do CAC 40), de 80% dos membros da principal organização patronal (a Confederation of British Industry, CBI), assim como dos bancos JP Morgan, Goldman Sachs e HSBC. A principal preocupação destes últimos: a City, o imenso setor das finanças, que se beneficia de seu acesso aos mercados europeus.
É verdade que Bruxelas teve a indelicadeza de aumentar (ligeiramente) os bônus oferecidos aos banqueiros. Mas os piores passos falsos são perdoados quando se trata de uma questão de vida ou morte. Acontece que “o Brexit seria um desastre para a City”, retrucou com veemência Gina Miller, cofundadora da companhia de investimento SCM Private, em um debate organizado pelo Financial Times (23 fev.). Complexa para quem tenta estabelecer uma cartografia das posições em torno do voto, a posição “adversária” justifica a defesa do Brexit com o mesmo argumento: evitar um desastre para a City. Aos olhos de Howard Shore, fundador da companhia de investimento Shore Capital, seria preciso deixar a União Europeia para proteger os bancos. Além disso, a operação permitiria “acelerar a liberalização da economia”.
“Porta aberta aos agressores sexuais”
Eurófilos ou partidários da saída, os conservadores só divergem, portanto, quanto ao meio de responder a uma mesma prioridade: preservar a City e desregular ainda mais a economia. No seio de uma esquerda britânica que expressou sua rejeição ao social-liberalismo com a escolha de Corbyn para o comando do Partido Trabalhista, um objetivo como esse dificulta a identificação de um aliado “natural”… Alguns começaram então a buscar outros critérios para escolher seu lado. Sobretudo a questão da imigração.
A campanha conservadora para a saída da União Europeia surfa num contexto propício às instrumentalizações. Atentados de Paris e de Bruxelas, crise dos refugiados e, sobretudo, as agressões de Colônia… Os últimos meses inflaram as velas xenófobas: “Nada impede que os agressores sexuais venham ao Reino Unido, considerando que eles obtiveram a nacionalidade alemã”, insinuou Dominic Cummings, diretor da campanha Vote Leave (Vote pela saída), no Twitter. “Uma parte das pessoas de esquerda vai votar para denunciar o racismo”, conclui, com base nessa situação, Adam Klug, que apoia Corbyn.
Os eurocéticos conservadores não limitam suas análises aos critérios étnicos e culturais. O midiático candidato à direção do Partido Conservador, Boris Johnson, deseja retomar o controle das fronteiras britânicas para impedir os imigrantes de puxar “os salários para baixo e pressionar o sistema de saúde”.4 O argumento teve impacto inclusive entre os da esquerda. Enquanto o governo se ocupa em reduzir o financiamento do Sistema Nacional de Saúde (NHS, na sigla em inglês) e em minar a capacidade de negociação dos assalariados, os recém-chegados penetram numa arena concebida para colocá-los em concorrência com os trabalhadores locais. Se, como observa levemente envergonhado o Financial Times, a chegada da mão de obra estrangeira beneficiou as empresas, ela “não necessariamente contribuiu para a prosperidade da população britânica” (24 fev. 2016)…
“São os patrões, e não os imigrantes, que fazem baixar os salários”,5 retrucam os militantes trotskistas do Socialist Workers Party (SWP), que não dispõem da capacidade de impor sua análise. Nessas condições, “um terço do eleitorado de esquerda votará a favor do Brexit”, estima o jornalista Owen Jones. “E não será porque eles criticam Bruxelas ou a Europa neoliberal: será por causa da imigração…” Depois de ter batalhado por uma “saída pela esquerda”,6 Jones milita hoje pela permanência do Reino Unido na União Europeia: como o argumento anti-imigração convence, uma vitória do Brexit daria respaldo para as análises xenófobas.
No entanto, será trabalhoso demonstrar que a outra opção – a vitória do remain – pode ser interpretada como um sinal de boa vontade em relação aos estrangeiros. Qual foi uma das ambições principais de Cameron em suas negociações com Bruxelas? Impedir que “as nuvens de imigrantes que atravessam o Mediterrâneo […] alcancem o Reino Unido”.7 Missão cumprida, estima: um “freio de urgência” autoriza todo e qualquer Estado-membro a suspender o fornecimento dos benefícios familiares aos imigrantes europeus nos quatro primeiros anos. Apesar de sua inutilidade – já que a maior parte dos recém-chegados busca trabalho, e não benefícios sociais –, a medida questiona um dos princípios fundamentais da construção europeia: a liberdade de movimento. Mais recentemente, o governo britânico aprovou uma lei que permite expulsar qualquer imigrante não europeu que ganhe menos de 44 mil euros por ano após cinco anos de residência.
Revirar as mochilas conservadoras para tentar encontrar ali uma bússola política revelou-se, portanto, um exercício pouco fértil para a esquerda britânica. Melhor seria interessar-se por suas próprias prioridades. Assim como o Unite the Union, o maior sindicato do país, com 1,42 milhão de membros, a maior parte das organizações de assalariados se colocou no lado do remain. “A União Europeia são os empregos e os direitos sociais”, resume Simon Dubbins, responsável pelas relações internacionais da organização.
Empregos? Para alguns partidários da permanência, até 3 milhões estariam diretamente ligados ao acesso do Reino Unido aos mercados europeus. A CBI estima que as ligações entre a ilha e o continente impulsionariam o PIB entre 4% a 5% por ano. Contrário ao Brexit, o The Economist também não deixa de questionar esses números. Analisando as estimativas, a publicação liberal conclui: “Podemos sem dúvida considerar que o Brexit teria um impacto negativo na economia, mas pouco importante” (17 out. 2015).
E como ficam os direitos sociais nesse caso? Em seus documentos de campanha, o Unite the Union explica: “Existem dois tipos de modelo econômico: o desregulado, norte-americano; e o regulado, europeu”. Ao primeiro, descrito como “agressivo”, “neoliberal”, “antissindicatos”, se oporiam o intervencionismo e as regulamentações da União Europeia, seu reconhecimento das organizações sindicais e sua Carta dos Direitos Fundamentais. As diretivas da União Europeia garantiriam, assim, aos trabalhadores britânicos o direito à licença-maternidade, ao enquadramento do trabalho parcial ou a feriados remunerados… “A União Europeia representa uma muralha de proteção contra as políticas neoliberais dos conservadores”, considera o deputado George Kerevan, do Partido Nacional Escocês (SNP, na sigla em inglês) e da campanha pelo remain.
Muralha de proteção? O termo já havia sido utilizado no referendo de 1975. Mas pelos conservadores. Na época, estes últimos – Margaret Thatcher à frente – consideravam que a Comunidade Europeia os protegeria de sindicatos determinados a bloquear qualquer “reforma”. Trabalhistas e sindicatos desconfiam, por seu lado, de um “clube de capitalistas” europeus barrando a vida do socialismo. Quarenta anos depois, a Dama de Ferro e seus herdeiros transformaram o país; para a esquerda, a ameaça teria se convertido em um mal menor.
Um mal menor relativo, no entanto: a União Europeia não impediu a introdução do “contrato zero hora”8 nem evitou que Londres rejeitasse a diretiva que limitava a 48 horas a jornada de trabalho semanal. “Além disso, se Jeremy Corbyn chegasse ao poder, seu programa seria ilegal aos olhos de Bruxelas”, inflama-se Hannah Sell, do SWP. Intervenção do Estado para estimular a indústria britânica? Ilegal. Nacionalização dos correios? Ilegal. Nacionalização das ferrovias? Ilegal também, razão pela qual os dois principais sindicatos dos transportes ferroviários militam em favor do Brexit. Sem contar que os conservadores eurófilos esperam que uma vitória venha facilitar a assinatura do Tratado do Grande Mercado Transatlântico (em inglês, Tafta)… que os sindicatos não querem, já que significaria a morte do NHS. A “muralha de proteção” europeia assume por vezes ares ameaçadores; imaginemos que os conservadores percam um dia o poder, e isso já se parecerá com uma prisão…
Corbyn, prisioneiro no campo inimigo
“Ninguém à esquerda está encantado pela União Europeia do jeito que ela existe”, resume John Hilary, da organização War on Want. “A questão é saber se ela é reformável ou não. Em minha opinião, não.” A constatação do ex-ministro da Economia grego Yanis Varoufakis não é diferente: “Não é como se um déficit democrático tivesse surgido de repente na Europa”, explica. “As instituições europeias […] foram concebidas como zonas sem democracia.”9 No entanto, Varoufakis milita por uma mudança “vinda de dentro”, que implicaria a adesão de uma larga porção da esquerda britânica.
Teria ele convencido Corbyn? Podemos duvidar disso. Em seu discurso de 14 de abril de 2016, o dirigente trabalhista certamente desenhou uma linha estratégica similar: Remain and reform, permanecer na União Europeia para reformá-la. Contudo, ele fez um jogo com os pronomes pessoais. De um lado: “Cremos que a União Europeia trouxe investimentos, empregos, uma forma de proteção para os trabalhadores”; de outro: “Eu [sempre] critiquei muitas decisões da União Europeia”. De um lado: “Eles [os membros do partido e seus deputados] estão em sua maioria convencidos de que podemos fazer a diferença permanecendo na União Europeia”; de outro: “Eu continuo criticando [a] falta de transparência [da União Europeia] e a pressão que ela exerce no sentido da desregulação e da privatização dos serviços públicos”.
“Corbyn encontra-se em território inimigo no comando do Partido Trabalhista”, repetem seus ex-companheiros, que batalham majoritariamente por uma “saída pela esquerda”. As pessoas que o rodeiam deixam a entender que a pregação dos parlamentares trabalhistas em favor da União Europeia pareceria menos um convite para defendê-la… do que uma chantagem. Sobre a questão síria, Corbyn não hesitou em enfrentar a ala direitista de seu partido, favorável aos ataques, porque ele podia contar com uma base determinada. Mas a Europa não é a Síria: “Nem todos os nossos militantes, quase sempre politizados de maneira recente, refletiram sobre a questão europeia”, confia-nos alguém próximo a Corbyn. “O tempo para convencê-los era limitado; o risco de perdê-los, considerável.”
“Ninguém considera que sair da União Europeia resolveria todos os nossos problemas”, sublinha Hilary. “Isso seria apenas o começo da batalha.” Com a esperança, estima o eurocético, de que em escala nacional pelo menos “a transformação social continue possível”. Empreender esse combate contra a elite britânica e a direita do Partido Trabalhista no período de turbulência econômica e sem a segurança de um apoio maciço da base seria sem dúvida um sinal de suicídio político.
Corbyn não ignora isso. Duas opções são, desse modo, oferecidas a ele: defender suas convicções em um contexto favorável ou deixar o Partido Conservador se dividir quanto à questão europeia, ao mesmo tempo recusando uma campanha comum. Ele fez sua escolha. Daí a imaginar que choraria por muito tempo uma derrota de seus novos aliados…
Renaud Lambert é jornalista.