Brumas, silêncio e mito
A forte atração que a Ikea exerce sobre certos setores do jornalismo contrasta com uma empresa opaca: ninguém sabe quem a controla, seus funcionários são submetidos ao silêncio e procura-se construir uma imagem sobre-humana para seu fundadorOlivier Bailly, Jean-Marc Caudron, Denis Lambert
A Ikea não é cotada na Bolsa. A empresa move-se num nevoeiro jurídico onde nada transparece. Impossível saber quem é o proprietário do conceito Ikea, obter em detalhe a contabilidade, um balanço consolidado, conhecer os patrimônios e investimentos da sociedade… A Stichting Ingka Foundation, na Holanda, detém nominalmente a sociedade anônima Ingka Holding, que agrupa todas as empresas da Ikea. Mas a Inter Ikea Systems, encabeçada pela Inter Ikea (Waterloo, Bélgica).detém o “conceito ikeano” Manejando a marca, garante sua perenidade. Controla a imagem, os nomes, as normas que fazem com que uma Ikea chinesa não seja diferente de uma Ikea norte-americana, ou kwaitiana.
Quem dirige a Inter Ikea Systems? Quem possui o conceito e os direitos de licenças? Formalmente, é impossível dizer. Stellan Björk, um jornalista sueco que investigou o sistema, indica: “Pelo que sabemos, a Inter Ikea Systems pertence a diversas fundações e sociedades offshore. Algumas delas têm sede no Caribe” [1]. Em outras palavras, não se sabe de nada? Mas a família Kamprad não deve estar longe.
Esta montagem opaca ilustra bem a “transparência” de geometria variável que a empresa utiliza. Durante sua campanha sobre a Ikea, a Oxfam – Magasins du Monde pediu para “traçar” origem e componentes de cinco produtos, que seriam escolhidos em conjunto com a direção internacional. Um ano mais tarde, apesar de inúmeros contatos, a resposta nunca apareceu. Em seu diálogo com a organização não-governamental belga, a IKEA nunca responde por escrito.
Funcionários proibidos de falar à imprensa
Como mencionado em “Os limites da responsabilidade empresarial”, nesta edição, as auditorias “independentes” são realizadas por sociedades que não podem informar nada de suas constatações, nem comentá-las em público. E quando, em maio de 1998, um acordo foi assinado entre a multinacional e a a Federação Internacional dos Trabalhadores em Construção e Madeira [2], ele obrigava este sindicato, em caso de convulsões sociais, a prevenir a multinacional… Ela “estudará o caso e proporá medidas apropriadas” [3]. Nada sai. Sempre na lógica de manter sigilo, nenhum empregado na Bélgica pode responder às nossas perguntas. Eles não podem falar com a imprensa.
Por outro lado, se seus erros são revelados, a Ikea parte para a comunicação, com peso. Segundo um esquema, sempre idêntico: ela reconhece o erro, minimiza o caso, reage e traz “soluções”. Desde os anos 1990, em resposta aos ataques das organizações ambientais em relação à madeira, a Ikea estabeleceu laços com a WWF e o Greenpeace. Quando é acusada de fazer crianças trabalharem, parcerias com o Unicef e a Save the Children são imaginadas. Sem preconceito sobre a pertinência destes projetos, podemos fazer duas constatações: a política da Ikea em matéria ambiental e social é exclusivamente reativa. Não se trata de compromissos “filantrópicos” (para quem ainda acreditasse nisso), mas de proteger os negócios. Estas colaborações não garantem nada. Nenhuma das ONGs “parceiras” controla a produção. Nenhuma delas faz visitas aos fornecedores.
Nesta lógica de comunicação, a maneira pela qual a Ikea geriu o “maior fiasco” do fundador Ingvar Kamprad é particularmente reveladora. Em 1994, um jornal sueco revelou nove anos de amizade (entre 1941 e 1950) entre o chefe da Ikea, então jovem, e um líder sueco de extrema direita. Contra a parede, Kamprad reconhece o erro e rejeita, em seguida, todas as idéias fascistas e racistas. Chora na televisão sueca. Sugere a todos seus colaboradores que “esta amizade foi a coisa mais idiota que havia acontecido em sua vida”. Em sua biografia autorizada, ele culpa sem reservas seu pai anti-semita, antes de concluir: “eu sempre me perguntei quando um velho poderia enfim esperar ser absolvido de seus pecados de juventude. Era um crime ter sido criado por uma avó e um pai alemães?”. Revisitando o erro de um adulto de 24 anos, falando sobre “erro de juventude”, de “desorientações políticas de criança e de adolescente” e de “garoto” [4], desculpando-se em abundância, Ingvar Kamprad está em coerência com a comunicação da Ikea. Ocupando o terreno da crítica, a corporação monopoliza todas as versões do discurso sobre si mesma. Chega a reinterpretar os fatos?
Quando as mídias amam o mito
De uma certa maneira, esta revelação sobre o passado de Kamprad teria reforçado, ao extremo, uma imagem que a Ikea deseja passar de seu fundador. A de um ser sensível, buscar a perfeição e estar próximo do “povo”. E com histórias de fazer chorar. Dos primeiros fósforos vendidos pelo garoto de cinco anos às “sovinices” do velho milionário, que compara os preços dos cartões postais, a comunicação da Ikea e o próprio Ingvar criaram um personagem temível, que impõem a máxima economia ao menor operário da sociedade. Estas histórias encantam as mídias. Ingvar trata os funcionários com intimidade, Ingvar dirige um carro velho, Ingvar espera o fim da feira para comprar os legumes mais baratos, Ingvar viaja em classe econômica para estar próximo do povo…
Acontece que o povo nunca teve dois Porsches aos trinta anos, não possui uma vinha de 17 hectares, nem tem casa na Suíça com 435 metros quadrados. É de fato um ermitão este bilionário? Pouco importam estas incoerências entre o discurso e a prática: várias mídias amam o mito Ikea.
Exemplo entre outros: a entrevista que Kamprad concedeu em março de 2006 no programa “Me perdoe” (sob medida para a Ikea…) na televisão suíça-romanche. O jornalista não parece ter excesso de respeito, diante do velho milionário. A célebre “parcimônia” é tratada longamente, quase que estigmatizada (“O senhor viaja na classe econômica? Escreve dos dois lados do papel? O senhor tem há muito tempo aquele velho Volvo? O senhor pechincha as verduras no fim da feira?”). O jornalista fala abertamente do passado nazista. Em suma, uma entrevista educada, mas direta. Missão cumprida? Em mais de 18 minutos, nenhuma pergunta sobre as questões ambientais, as condições sociais e sindicais dos 90 mil empregados da Ikea e de centenas de milhares de operários das empresas terceirizadas.
Sob sua aparente inquisição, o jornalista suíço respondeu perfeitamente à expectativa da Ikea, precipitando-se nas portas deixadas entreabertas pela empresa. A agenda das questões é pilotada pelo gigante mobiliário. Sem forçar a mão, mas cobrindo todos os discursos autorizados da Ikea. Simples.