Bruna Mitrano: “quis reconstruir a história da minha avó e voltar para as memórias da minha infância”
Através da poesia panfletária, Bruna conta a vida da sua família e explora a opressão dos marginalizados
Bruna Mitrano nasceu em 1985, no Complexo Senador Camará, periferia do Rio de Janeiro. Além de escritora, também é professora e, em 2016, publicou o seu primeiro livro Não, pela editora Patuá. A autora já é considerada uma das grandes revelações da poesia brasileira contemporânea, e também é uma das convidadas da Festa Literária Internacional de Paraty de 2024.

“Antes, eu tinha medo de fazer uma poesia panfletária, mas eu perdi esse medo e percebi que é o que eu quero fazer. Então juntei essa ideia com uma outra. O meu livro surgiu de uma promessa que eu fiz para minha avó, tanto que é dedicado a ela. Quando minha avó estava quase morrendo, falei que iria contar a sua história.” Assim que Bruna começa a falar sobre a sua nova obra, Ninguém quis ver, publicada pela Companhia das Letras em 2023.
Bruna conta que sua avó foi uma mulher grandiosa, mas não deixa de destacar que a maioria delas são, mas que não tiveram suas histórias escritas. “Minha avó criou sete filhos num barraco de madeira, sem banheiro, e passou muita necessidade. O marido dela não ajudava em nada, ele chegou a tentar matar ela e os filhos, foi quando os vizinhos mataram ele. Isso aconteceu antigamente, esse tipo de violência era comum aqui na periferia, algo bem mais escrachado.”

Através de cada estrofe, a autora mostra a opressão de corpos que são marginalizados e esquecidos, honra a linguagem feminina e descreve a precariedade dessas famílias. “Eu acho que quem não acredita no papel transformador da poesia e da literatura, ou não acha que existe nada para mudar e não quer a mudança, é porque está num lugar de privilégio.”
Bruna explica que passou a conhecer essas histórias mais de perto quando sua avó as contava e, ao trazer isso para a poesia, conseguiu perceber a questão opressora do corpo feminino. “Quando eu comecei a falar da minha avó, eu percebi também que existia uma certa atualização da opressão. Eu sabia que a minha avó foi muito oprimida, mas passei a ver que isso também aconteceu com a minha mãe e comigo, mas de outra forma. E aí, contando a história da minha avó, eu fui encontrando a minha própria história.”
a minha avó roubava leite//pra dar aos filhos//porque seus peitos empedraram/porque a sequidão é a sina/das mulheres da família/a minha avó roubava leite/por culpa/pela maternidade/que seu corpo descumpria/a minha avó até bem velha/dizia olha a minha língua/não tem saliva/por isso não consigo engolir/e eu via/o rosto da minha avó empedrar/a boca seca/a sua a dos filhos/punição pelos peitos vazios/a vida da minha avó}/esvaindo/e na boca do poço rosto/de pedra/uma voz fraca/vinda do mais fundo/onde uma mulher pode ser/mas nunca em excesso/– nunca o excesso/pra quem foi mãe/aos treze anos em 1934 –/líquida: /vai roubar leite minha neta/seus filhos vão chorar um dia.
Na poesia de Bruna, também existe a identificação, como na questão do abuso sexual cometido pelo pai ou familiar; muitas mulheres se idenficam com esse tipo de situação. “Eu cheguei a falar numa entrevista recente que eu só fui saber que eu tinha sido abusada pelo meu pai com 22 anos. Duas outras grandes mulheres, a minha primeira namorada e a minha irmã de consideração, que é a minha melhor amiga de infância, falaram que as coisas que ele fazia comigo não eram coisas que um pai devia fazer. Mesmo sendo uma mulher bem informada, que já estava na universidade, eu não percebi isso até os 22 anos. De alguma forma, o seu inconsciente vai jogando essas verdades indesejadas para debaixo do tapete. Para mim, elas não sabiam o que é amor de pai. Eu estava tentando me defender da verdade. Eu acredito que é assim que acontece a identificação, porque, quando uma pessoa está lendo e vê um personagem num conto, romance ou a voz poética, começa a entender que está passando por aquilo ali, o que não deve ser aceito. É nesse momento que a literatura também cumpre o seu papel de transformação. Eu acredito no papel transformador da literatura, da poesia.”
Por fim, a autora falou sobre o novo projeto que tem em mente – mas ainda não dá certeza de que vai acontecer. Com uma pegada diferente, Bruna quer trazer a poesia para as crianças, falando sobre a sua própria infância e o lugar onde cresceu. “É sobre as crianças do lugar onde eu vivo e também a criança que eu fui. Existe esse projeto que a princípio vai se chamar “As Crianças Daqui”, mas que ainda está bem vago. Fico pensando nesse lugar que pode ser qualquer lugar periférico do mundo, porque as periferias se aproximam de alguma forma. Falar de hábitos muito simples que eu tinha, e que as crianças aqui ainda têm, porque eu me vejo nessas crianças. Brincar na rua, subir na árvore e vivenciar a violência diária. Isso também é sintomático, você pensar que é quase a mesma coisa, pouca coisa mudou nas periferias. Eu tô desenvolvendo uma voz poética, penso em como eu quero falar, para quem eu quero falar, e acabou que eu acho que eu tô indo pra um caminho mais de falar com a infância. Acabei mudando até a minha forma de escrever, de falar poesia. Se sair, vai ser um livro infantil juvenil.”