Cabôco Mamadô traz o irmão Henfil de volta
O cartunista Henfil completaria hoje 77 anos. Como será que ele leria e desenharia o Brasil de Jair Messias Bolsonaro?
Em tempos de retomada do autoritarismo, de governo civil-militar, de um renovado e sofisticado sentimento “cucaracho”, a saudade dos combativos e rebeldes vem em forma de nostalgia. Apesar dos tempos difíceis vividos no Brasil da censura e da falta de liberdade (1964-1985), a resistência por meio das artes e da comunicação era um mecanismo criativo e salutar que atenuava os desgostos de viver sob um regime de exceção. Neste contexto, se destacou o cartunista Henfil.
Henrique de Souza Filho, o Henfil, nasceu em 5 de fevereiro de 1944, em Ribeirão das Neves (MG) e faleceu em 4 de janeiro de 1988, no Rio de Janeiro, aos 43 anos. Iniciou sua carreira como cartunista e foi colaborador de O Pasquim (1969). Um multiartista e criador de personagens icônicos do cartum brasileiro, era uma espécie de reflexo catalizador do interesse das massas. Respondia à realidade com a irreverência do artista, a habilidade do jornalista e a sagacidade de um ativista antirregime.
Henfil colocou as torcidas dos times de futebol do Rio de Janeiro em destaque nas suas tirinhas. Flamenguista-roxo, são atribuídos a ele os episódios nos quais a torcida do flamengo levava urubus aos estádios. Já na política, foi a alma de esquerda de um dos principais tabloides da imprensa alternativa que lutava por democracia no Brasil, O Pasquim.
O Brasil nunca foi para amadores e Henfil, em uma carta ao amigo de Pasquim, relata que sua vida pessoal não existia. Seus projetos de férias incluíam terminar livros e editar filmes. Não era somente competente e irreverente, ele adorava o trabalho. Henfil era um gênio em decodificar o poder atrás das informações. Um sujeito popular que compreendia bem a cultura, as formas de linguagem e a comunicação do seu povo.
Era a alma d’O Pasquim e empurrava para a esquerda, e para o confronto, a redação e o povo ao mesmo tempo. Com um humor ácido, fazia a história se mover passando um pouco por sua ótica jornalística e política. Sempre criando desafetos e fãs, uma mente de esquerda antirregime que não deixava passar nada. Perdoar, nem pensar. Junto com seu irmão Betinho, ameaçado pela ditadura, travava lutas permanentemente. Alguns dizem que a hemofilia não o deixava ficar parado. Foi ele que cunhou a expressão “Diretas Já!”, ao final de uma célebre entrevista com Teotônio Vilela. Tratou de inventar o final dela adicionando a pergunta e a resposta: “Diretas quando? Diretas já!”, criando assim a palavra de ordem mais conhecida na luta pela abertura do regime e por eleições diretas no Brasil.
Onde estaria “Os fradim”, “a Graúna”, “O Bode Orelana” e “Zéferino”, personagens infalíveis que outrora deram cara à luta pela democracia? Certamente serviriam ao povo, ajudando a exorcizar os fantasmas que rondam o assassinato brutal de Marielle Franco; desnudando as tentativas torpes de derrubar a frágil, recente e insuficiente democracia brasileira; transformando, ao menos no quadrinho, a revolta da perda de Moa do Katendê, dos mais de mil mortos diariamente em virtude da negligência com a pandemia da Covid-19 e outros em ativismo e luta por dias melhores.
Imaginar Ubaldo paranoico se mijando de medo tentando sair do país no episódio onde o presidente Bolsonaro, ainda em campanha, ameaça a esquerda com a cruel escolha “cadeia ou exílio”. Ver ressurgir o bode Olerana como intelectual que come os livros e hoje debocharia das falas ignorantes de um despreparado no poder. Ao lado de Olerana, o que comeria o mito? Zéferino enaltecendo a cultura política “a culpa não foi do Nordeste”, se referindo ao pleito de 2018, quando a região demonstrou seu repúdio às posições retrógradas do capitão conservador.
Seria libertador assistir os Fradins ironizando o azul e rosa de Damares, na afirmação hipócrita que relaciona gêneros a cores. Aliás, cumprido e baixinho eram a personalidade de seu criador. O conflito entre o tabu religioso e a demanda por liberdade, encarnados no sadismo dos personagens davam o tom do humor que colocava o dedo na ferida e cutucava o sistema.
Um de seus personagens mais intrigantes, Cabôco Mamadô, enterrava no “cemitério dos mortos-vivos” os desafetos do autor, que de alguma forma colaboravam com a ditadura. Num desses velórios esteve a figura de Elis Regina – que depois viraria sua amiga. A cantora quando viu seu nome no cemitério de Henfil ficou uma fera, esculhambou o cartunista. Esse desabafo não teve o efeito esperado por ela: em outro cartum, Elis reencarnava como o francês Maurice Chevalier, que em 1945 cantara na Alemanha a convite de Hitler, de acordo com Arthur de Faria, em Elis – uma biografia musical. Henfil só se arrependeu de enterrar no cemitério dos mortos-vivos uma outra pessoa: Clarice Lispector. Corajosa a atitude de Henfil de enterrar, pelo menos nos jornais, figuras como Roberto Carlos, Pelé e Marília Pêra.
Supostos laranjas, vendedores de açaí, Jesus em um pé de goiaba, 15 milhões em leite condensado e 3 bilhões para comprar deputados no meio de uma pandemia. Assunto não falta.
O sentimento cucaracho, tão bem diagnosticado na própria vivência do Henfil, refletia a sociedade brasileira já em 70, com o “complexo de vira-lata”, expressão sinônima cunhada por Nelson Rodrigues. No Brasil de hoje, ninguém melhor que ele, com seu humor ácido e talento inconfundível dos quadrinhos, para decodificar as fake news que nos levaram a mais uma página sombria de nossa história. Seria inevitável seu deboche peculiar ao atual sentimento de subalternidade visto na continência prestada pelo presidente brasileiro à bandeira dos Estados Unidos.
Henfil faleceu no Rio de Janeiro em 4 de janeiro de 1988. O cartunista contraiu o vírus HIV em uma das transfusões que realizava com frequência por conta da hemofilia.
Hoje são 228.883 mil mortos da pandemia da Covid-19 no Brasil, vítimas do despreparo, do negacionismo e da necropolítica que dá continuidade a seu recorte, sendo cruel e implacável com os mais pobres e vulneráveis. A falta do traço rebelde de nosso artista é ainda mais perturbadora quando o tema é a perda precoce e a negligência do Estado.
Precisamos também do retorno da resistência lúdica e das mensagens que ignoram os limites do bom mocismo. A esquerda perdeu e colecionará derrotas se não compreender que precisa recriar a linguagem de comunicação com o povo, e nisso o Henfil era o melhor.
Acostumado a lidar com a ditadura strictu sensu, certamente não hesitaria em dizer que a compra do planalto é um ato ditatorial que dispensa a necessidade das armas para atacar o povo com vestimentas republicanas. Por outro lado, também não perdoaria a esquerda e os progressistas que não tiveram sequer a habilidade para unificar forças contra o neofascismo brasileiro. Mas, isso são hipóteses tolas. A comunicação de Henfil via o que muitos não conseguiam enxergar, sua autenticidade não permite sequer imaginar sua criação. Fiquemos então com a elucubração daquilo que nunca saberemos, mas só de lembrar já traz esperança de que é possível resistir e mudar o estado de coisas que estão aí.
Cabôco Mamadô, traz o irmão Henfil de volta, por favor!
Italo Jardim é historiador, mestre em Relações Étnicoraciais, professor do IPN e membro da direção do MES-RJ.