Cannabis no Brasil: reflexos de uma regulação imprecisa
Anvisa proibiu a importação de produtos compostos de cannabis in natura sob a justificativa de alto potencial de desvio para fins ilícitos
No dia 19 de julho de 2023, a Gerência de Produtos Controlados da Anvisa (GPCON) publicou a Nota Técnica n. 35/2023 proibindo a importação de “produtos compostos pela planta de Cannabis in natura ou partes da planta, incluindo as flores”, o que gerou forte rebuliço entre médicos prescritores e pacientes que utilizam as flores para tratamento de inúmeras doenças. A justificativa da restrição foi no sentido da inexistência de evidências científicas que comprovem a segurança do uso desse tipo de produto, além do “alto potencial de desvio para fins ilícitos”.
Passa-se, então, à análise da justificativa, a Anvisa restringe o acesso às flores de cannabis presumindo a má-fé dos pacientes em detrimento daqueles que buscam essa via de tratamento de maneira legítima. Além de ignorar um princípio geral de direito, a Agência coloca no esquecimento a parêmia histórica de que a boa-fé se presume e a má-fé se prova.
Aprofundando um pouco mais e trazendo a discussão para a esfera do direito administrativo, os atos administrativos – a exemplo da nota técnica já referida – devem ser acompanhados de motivação quando limitem ou afetem direitos. Aliás, a motivação deve ser congruente, compatível com normas vigentes, demonstrando também uma relação de proporcionalidade e pertinência entre o motivo do ato e seu conteúdo, em vista da finalidade a que se deseja atingir.
Questiona-se aqui se a motivação exposta pela agência reguladora é suficiente. Afinal, se uma das justificativas é a ausência de comprovação de segurança das flores, o que garante a segurança dos demais produtos importados (variados quanto às suas formas farmacêuticas e de administração) sob o manto do regramento da RDC n. 660/2022? A própria Anvisa menciona na nota que a qualidade, segurança e eficácia desses produtos não são avaliados pela Agência.
O artigo 18 da resolução dispõe que a prescrição médica e a solicitação de autorização de importação representam o aceite (pelo médico e paciente) da ausência de comprovação da qualidade, segurança e eficácia dos produtos importados, sendo eles responsáveis pelos eventos adversos que podem ocorrer.
Interpretando sistematicamente as normas da Anvisa, outro ponto chama atenção: a RDC n. 66/2016, elaborada em cumprimento à decisão judicial proferida nos autos da Ação Civil Pública n. 0090670-16.2014.4.01.3400, além de ter revogado o artigo 5º da antiga RDC n. 17/2015, cuja redação não permitia a importação da “droga vegetal da planta Cannabis sp ou suas partes”, alterou o artigo 61 da Portaria n. 344/98 – que proíbe a prescrição de plantas como a Cannabis sp –, de forma a prever a prescrição de produtos que possuam as substâncias canabidiol e/ou tetrahidrocanabidiol, a serem importados em caráter de excepcionalidade por pessoa física, como também de medicamentos registrados que contenham em sua composição a planta, suas partes ou substâncias obtidas a partir dela.
Ora, ao excluir a vedação expressa de importação da droga vegetal da Cannabis sp, ou suas partes, e permitir a prescrição de “produtos” que contêm as principais substâncias da planta, parece factível, à luz dos regramentos publicados pela Agência, a possibilidade de importação de flores para uso medicinal. Fato que torna a motivação da nota técnica um tanto quanto incongruente.
A propósito, torna-se imperioso destacar trecho da medida liminar que determinou as alterações supracitadas:
Concluo, assim, que o risco da permissividade, da utilização da Cannabis para fins medicinais, atingir fins ilícitos, […], não podem ser impedimento à oferta de tratamento às pessoas que, por essa via, poderiam obter sensível melhora da qualidade de vida – sobretudo quando inegável a possibilidade de existir efetiva e adequada fiscalização, consoante já ocorre em relação a outros medicamentos à venda no Brasil –, sob pena de malferimento aos primados constitucionais do direito social à saúde e do princípio da dignidade da pessoa humana. (grifos meus)
Em outras palavras, a Anvisa, que vem exercendo papel fundamental na regulação do uso medicinal de cannabis no Brasil, poderia adotar medidas fiscalizatórias mais efetivas – incluindo normas que se estendem ao mercado – ao invés de presumir a má-fé dos pacientes e dificultar o acesso aos produtos derivados de Cannabis. Aqui, a desproporcionalidade da motivação é gritante.
Se a finalidade da nota técnica é coibir eventuais práticas ilícitas e proporcionar mais segurança e eficácia dos produtos que estão sendo importados, a regulação deve passar por um processo de revisão que não implique em restrição de direitos.
É preciso, de uma vez por todas, aprender com os erros do passado para avançar: a proibição não irá impedir o consumo dos produtos e substâncias consideradas ilícitas e todos nós sabemos qual o custo social do proibicionismo. Novamente, os pacientes pagarão a conta.
João Gabriel de Sousa de Carvalho é advogado membro da Sociedade Brasileira de Estudos da Cannabis Ativa. Auxilia pacientes no acesso ao tratamento à base de cannabis e assessora empresas e associações em práticas de compliance, operações e estratégias voltadas ao mercado da cannabis.