O uso de maconha terapêutica nas favelas do Rio de Janeiro
Nova pesquisa do grupo Movimentos traça um perfil das pessoas que fazem uso da maconha como um remédio nas favelas cariocas, apesar da dificuldade de conseguir a substância
“A cannabis trouxe esperança. Meu filho tem autismo moderado, tinha atraso significativo na fala, hoje em dia meu filho se comunica melhor, consegue se expressar melhor, tem uma atenção sustentada, consegue fazer as coisas com mais autonomia e flexibilidade cognitiva.” (Mãe de criança que faz uso do óleo ouvida pela pesquisa)
Está tramitando no Supremo Tribunal Federal (STF) o Recurso Extraordinário 635.659, popularmente conhecido como o julgamento da descriminalização da posse de drogas para uso pessoal. O processo começou em 2015, foi adiado e agora voltou a ser discutido. Até a data de publicação desta matéria, três ministros já votaram, todos eles a favor de algum tipo de descriminalização da posse de drogas: Luís Roberto Barroso, Edson Fachin (esses dois primeiros somente favoráveis à descriminalização da posse de maconha) e Gilmar Mendes.
“Essa é uma pauta que, de uma forma geral, tem bastante impacto sobre as favelas, porque vai diretamente impactar quem são os usuários ali, que são sempre criminalizados, que acabam sendo presos ou executados por conta de uma política que trata isso sempre pela ótica do tráfico”, afirma Jéssica Souto, diretora executiva da Movimentos, uma organização de jovens de diferentes favelas e periferias do Brasil que nasceu para discutir política de drogas. Agora, o grupo disponibilizou uma pesquisa que trata do uso de maconha terapêutica nas favelas do Rio de Janeiro.
Mesmo para aqueles que usam o óleo de cannabis ou fazem uso da substância com autorização judicial, Jéssica explica que uma possível descriminalização tiraria um pouco da tensão constante que alguns na favela sentem de que “a minha casa vai ser invadida e eu posso morrer ou ser preso porque eu tô cuidando da minha saúde”, já que operações policiais em busca de substâncias ilícitas são frequentes.
“Algumas pessoas que tem a autorização [judicial] são incentivadas a enquadrar e emoldurar o documento, deixar na parede para o caso de uma invasão policial, para ela ter como provar aquilo no caso de alguém entrar”, explica a diretora executiva da Movimentos. Mesmo assim, ela conta que 38,1% dos respondentes do estudo continuam se sentindo inseguros em casa, mesmo com uma autorização. “Isso também é uma forma do racismo operar”, completa.
A pesquisa da Movimentos ouviu 105 pessoas, por meio de um questionário virtual, para traçar um perfil de quem usa maconha terapêutica nas favelas cariocas, especialmente no Complexo do Alemão, no Complexo da Maré e na Cidade de Deus. “Por mais que seja um número considerável de pessoas, a gente também entende que é um número muito pequeno em relação às pessoas que poderiam estar acessando [a maconha terapêutica] e que infelizmente não vão, por vários fatores, como preconceito, racismo, estigma e desinformação”, explicou Jéssica sobre a abrangência do estudo.
O racismo é um tema incontornável dentro dessa temática. Em 1830, a venda e o uso da planta foram proibidos pela primeira vez, e a lei contava com uma referência explícita aos negros escravizados, que poderiam ser punidos com três dias de prisão caso fossem vistos fazendo uso da maconha, que, de acordo com o grupo Movimentos, foi sempre “diretamente associada às classes baixas, aos negros e aos criminosos.”
Na pesquisa, 73,3% dos respondentes se identificaram como negros. Uma maioria de 60% entre os que responderam ao questionário ganha menos de um salário mínimo (R$ 1.320) por mês. São 58% do total de respondentes da pesquisa os que recebem benefícios sociais do governo, e 68% afirmaram ter algum tipo de gasto com a maconha terapêutica. “Tem uma questão aí que é socioeconômica, mas que o racismo está diretamente ligado, porque a gente sabe quem são essas pessoas mais vulneráveis que estão dentro das favelas e o porquê elas estão lá. Vem de um racismo estrutural histórico, é uma herança da escravidão”, afirma Jéssica.
Cannabis medicinal X maconha terapêutica
Para comprar os medicamentos disponíveis em farmácias a base de maconha, o custo pode variar entre R$ 250 e R$ 2.500. Na melhor (e mais barata) das hipóteses, cerca de 19% de um salário mínimo seria usado só para comprar o remédio. Não é como se a maconha terapêutica estivesse disponível no SUS: as Farmácias Vivas, que contam com medicamentos fitoterápicos e plantas medicinais, ainda não oferecem produtos derivados da cannabis. Na favela, os obstáculos para conseguir os medicamentos vão desde questões financeiras até a falta de conhecimento judicial. Pagar médico para receitar, advogado para conseguir autorização judicial e ainda comprar o medicamento é uma realidade impossível para muitos que precisam da maconha terapêutica.
Por isso, a pesquisa não considera somente o uso de alternativas legais, mas também o uso de maconha atualmente ilegal para propósitos terapêuticos. As formas de uso entre os respondentes da pesquisa são o óleo (60%) e cigarro (18%). Aqueles que ainda não conseguem fazer o uso, mas querem, representam 19% dos que responderam ao questionário.
Nas favelas, como explica Jéssica, “a gente vai encontrar de tudo um pouco”. Pessoas que conseguem o óleo a partir de ONGs representam 66,7% dos respondentes, e o trabalho dessas organizações, segundo Jéssica, “só existe porque o poder público, além de falhar em garantir o direito à saúde para essa população, também criminaliza pessoas que fazem uso da substância”. Alguns dos que não conseguem contato com essas instituições não governamentais precisam se virar com o que tem, incluindo a maconha fumada. “A gente tem que olhar de uma maneira muito sincera: inalar fumaça não é saudável em nenhuma circunstância. Mas a gente também não pode negar que os benefícios da maconha não são totalmente perdidos na inalação”, argumenta Jéssica.
Mesmo que a maconha esteja presente em todos os bairros e classes sociais, o imaginário popular da planta como droga ilícita se concentra nas favelas, onde estaria presente o “mundo do tráfico”. Por isso, pode até surpreender alguns ao ouvir falar de uso de maconha terapêutica nas periferias e favelas das grandes cidades brasileiras. O discurso em volta da “cannabis medicinal” tenta separar o remédio da planta da qual ele vem. A maconha estaria no Complexo do Alemão, enquanto a cannabis habitaria a Barra da Tijuca. Usar o termo “maconha terapêutica”, então, é uma maneira que a pesquisa encontrou para desassociar a planta da criminalização, mostrando que, mesmo se usada de maneira medicinal, o remédio ainda vem da maconha.
Entre os respondentes, 59% afirmaram possuir receita médica para obter a substância. Porém, uma receita médica não é a mesma coisa que uma autorização judicial. Das 63 pessoas que afirmaram usar o óleo, só seis contam com a autorização específica da Anvisa, enquanto outros cinco tentaram e não conseguiram. A complicação burocrática e a demora levam muitos que precisam do remédio a começarem a usar antes mesmo de tentar dar entrada no pedido judicial.
Esperar o tempo da justiça brasileira não é tão fácil quando sua saúde exige o remédio agora. Para as pessoas que responderam à pesquisa, a maconha terapêutica foi usada como remédio e tratamento para casos de transtorno do espectro autista (52,2%), epilepsia (12,39%), sintomas de ansiedade (12,39%) e depressão (7%), além de ajudar 5% com dores diversas.
“Gotas da esperança”
Entre os respondentes, a maioria que faz uso da maconha terapêutica se identificou como cristã, com 27,62% de evangélicos e 23,81% de católicos. “Tem uma parte do questionário que a gente colocou para as pessoas escreverem livremente, mais para a gente ter uma ideia do que essas pessoas estavam pensando”, conta Jéssica. “Muitas dessas pessoas se referem à maconha como um remédio santo, como ‘é uma coisa que Deus enviou’ ou ‘é uma coisa que eu nunca vi’, ‘é maravilhoso’. A planta que até ontem era considerada a ‘erva do capeta’, agora sendo santificada e exaltada pelas pessoas que muitas vezes estão dentro da igreja.” As “gotas da esperança”, como um dos respondentes chamou, também atraem 32,38% que afirmaram não ter religião, mas não se caracterizam como ateus, e 10,18% que fazem parte de religiões afro-brasileiras.
Uma das propostas da pesquisa para avançar o debate sobre regulação e descriminalização da maconha no Brasil é a reparação de violações históricas dos direitos de pessoas marginalizadas. “Falando especificamente da maconha, se amanhã legalizar, qual é o cenário que a gente tem? Essas pessoas que hoje estão sendo criminalizadas vão ser de alguma forma incluídas ou inseridas nesse mercado novo? Vão ter de algum tipo de incentivo para poder se legalizar, se regulamentar?”, explica Jéssica Souto.
“O principal para gente é garantir que a maconha enquanto medicamento esteja dentro do SUS”, afirma Jéssica. Mas a diretoria da Movimentos não acredita que só disponibilizar o óleo no Sistema Único de Saúde seja suficiente. É preciso oferecer “toda a base de acompanhamento necessária para que esse trabalho flua bem, como ter um médico prescritor, um médico que vai acompanhar o caso, a nutricionista que vai acompanhar a alimentação, uma rede de apoio e de cuidado.” Mesmo que o sistema de saúde pública brasileiro tenha seus diversos problemas, muitos simplesmente não podem pagar por nenhuma alternativa. “A gente sabe de todas as questões que o SUS enfrenta, mas se a gente tá brigando, a gente tá brigando pelo mundo ideal e tem que correr atrás para garantir isso.”
Eduardo Lima faz parte da equipe do Le Monde Diplomatique Brasil.
Assunto muito importante, parabéns pela matéria.