Capital Social
Silvio Caccia Bava
Em meio a toda esta luta política que se observa no plano do Congresso, da mídia e dos partidos políticos, torna-se menos visível a fermentação na sociedade de uma crescente insatisfação popular. Os altos índices de reprovação do governo e do desempenho do Congresso são apenas um de muitos indicadores. Muitas manifestações eclodem localmente, sem que a imprensa dê notícia. É a violenta repressão policial contra as mobilizações mais expressivas, como a luta atual contra o aumento das tarifas do transporte público, que provoca a solidariedade da sociedade para com os manifestantes. No que essa insatisfação vai dar não se sabe, é o imponderável. Mas Junho de 2013 não está tão longe e os problemas não fizeram mais do que se agravar. E Junho trouxe como experiência a ação direta, a ocupação das ruas, a mobilização da juventude, a politização dos movimentos sociais, a pressão sobre as instituições democráticas.
A cartografia dos conflitos mostra a cidadania mobilizada em variadas frentes: a disputa pelo direito à cidade, pelo direito à terra, pelo direito ao trabalho, contra as discriminações de todo gênero, pela preservação do meio ambiente, contra a mercantilização dos serviços públicos, pela universalização da saúde, da educação, pelo acesso à cultura, pela segurança pública etc.
Há uma diversidade de novos e velhos atores que ocupam o espaço público e apresentam suas demandas e seus questionamentos. Mobilizados por suas questões específicas, eles expressam o que Pierre Bourdieu denomina capital social: a capacidade de organização e de expressão autônoma de atores coletivos na cena pública. E o Brasil se destaca pela riqueza de sua organização social, pela grande quantidade de associações e entidades de defesa de direitos que possui.
Esse capital social é o conjunto das associações de moradores, grupos de teatro na periferia, ONGs, sindicatos, associações profissionais, organizações de base de igrejas, movimentos de moradia, saraus da periferia e inúmeras outras iniciativas de criação de coletivos diversos, como os feministas e os do movimento negro, que, em conjunturas particulares, se somam, criam formas de articulação, ampliam e politizam o questionamento do Estado e das políticas que este pratica.
São frentes de resistência à destituição de direitos, as quais, por exemplo, lutam contra as privatizações que sacrificam conquistas e bens públicos comuns em favor dos interesses do mercado.
A luta por direitos é também a luta contra a desigualdade e requer narrativas que desvendem as formas de exploração e opressão e tornem ilegítimas as políticas promotoras desse problema. Mas não bastam as denúncias; essas mobilizações precisam trazer a público propostas afirmativas para a reconstrução de uma área social específica, como é o caso da tarifa zero nas mobilizações contra o aumento das tarifas. A disputa pelos recursos e por novas políticas públicas é uma disputa concreta, ponto a ponto, que precisa de alternativas concretas para contrapor a lógica dos direitos à lógica do mercado.
No caso da tarifa zero, não se trata de negociar apenas um valor menor para a tarifa; trata-se de estimular o imaginário social com uma proposta que subverte o quadro institucional e apresenta uma ruptura: contrapõe a defesa de bens públicos comuns com a lógica dos serviços públicos como mercadoria.
Sob a bandeira de luta contra a mercantilização dos serviços públicos e a defesa dos bens públicos comuns se agregam muitas lutas. É uma bandeira unificadora que, para ter força, precisa manter e reforçar relações concretas com as demandas sociais diretas da população. É uma proposta que combina dois propósitos: enfrentar as carências atuais e oferecer ao imaginário social um projeto de sociedade na qual essa utopia dos bens públicos comuns se concretize.
Outras importantes frentes agregadoras das lutas sociais são: a questão do meio ambiente, da poluição, da escassez de água, do saneamento e das epidemias; os movimentos de juventude, como a ocupação das escolas públicas; os movimentos de defesa dos direitos da mulher e do negro; entre outras. Em todas essas frentes de conflito, a cidadania se organizou para a defesa de direitos e criou redes e fóruns que articulam entidades e movimentos locais e regionais para potenciar sua capacidade de intervenção.
Na soma da variada gama de seus participantes, essas redes e fóruns têm demonstrado a capacidade de elaboração de narrativas para a defesa de direitos, de atuarem na guerra das ideias, de promoverem importantes manifestações públicas. Muitas delas reúnem sindicatos, movimentos sociais, acadêmicos, ONGs, associações profissionais e entidades de variados tipos. Cada um desses atores aporta sua contribuição para o conjunto. Uns oferecem seu trabalho de pesquisa e análise das políticas públicas; outros, as bases sociais de suas organizações; um terceiro, o empenho na organização das manifestações etc. E sob a bandeira do direito à cidade, por exemplo, todos cooperam, se complementam e se mobilizam.
O período pós-ditadura abriu espaço para as organizações de defesa da cidadania construírem suas articulações regionais, nacionais e mesmo internacionais. As centrais sindicais são um exemplo. A Associação Brasileira de ONGs é outro exemplo. Os movimentos de mulheres, de moradia, de defesa do meio ambiente, as lutas contra as discriminações de raça, orientação sexual, os movimentos de juventude são todos atores coletivos que se constituíram ou se fortaleceram neste período e passam a incidir na cena política.
Mas os tempos são outros. Não há mais a polarização ditadura-democracia, o que desafia esses movimentos a abrigarem novas utopias, a articularem essa diversidade numa luta conjunta por uma nova sociedade e ao mesmo tempo reforçarem suas mobilizações por demandas concretas. A Frente Brasil Popular é uma iniciativa, criada em setembro passado, que se propõe a cumprir esse papel.
Silvio Caccia Bava é diretor e editor-chefe do Le Monde Diplomatique Brasil.