Cardeais em órbita
Carlos Orsi
Cinco senhores veneráveis flutuam, em meio à ilusão de azul infinito criada pelos geradores holográficos de São Pedro Extra-Mundos, a principal basílica de Novo Vaticano, em órbita polar, neste momento passando sobre o Oceano Pacífico, rumo à Antártida e a mais uma volta pelos extremos da Terra.
Cardeal Mondego sente, agradecido, o relaxar dos músculos ao redor dos olhos e nos cantos da boca. O azul, mesmo com sua implicação de céu ilimitado, de queda iminente numa esfera sem fim, reconforta. Intimida menos que a decoração usual da basílica, as grandes esculturas de luz que reproduzem, em escala monumental e nas três dimensões, o teto da Capela Sistina – como alguém não se sentiria inconveniente ao flutuar bem entre o dedo de Deus e a mão suplicante de Adão? – e nem de longe é tão assustador quanto as imagens, ou o significado das imagens, que haviam antecedido o fundo cerúleo abismal.
Números. Gráficos. Estatísticas. Projeções.
Não há dúvida – diz o papa Paulo XII, que preside a reunião. – Hoje, completam-se dez anos desde que ocorreu a última canonização. Oito, desde a última beatificação. Não há mais santos. Os milagres simplesmente desapareceram do mundo.
Já há quem diga que os dons de Deus deixaram nossa esfera – completa o cardeal Atith. – O que é inadmissível.
Mondego respira fundo. É sua vez de explicar, em público, o que todos certamente já sabem. Ou deveriam saber. Afinal, o cardinalato não é lugar para idiotas.
– A questão é epistemológica – diz. – Definimos milagre como algo sem explicação científica. Uma cura, de preferência. E, no estágio atual da Medicina, ou as pessoas se curam antes que o milagre se torne necessário ou, quando ele aparentemente ocorre, a explicação racional nunca é muito difícil de achar: até as doenças usualmente incuráveis já são conhecidas até o último átomo da última molécula. Não são os milagres que deixaram de ocorrer: é o conceito de milagre que se tornou obsoleto.
Os demais cardeais apenas murmuram a balançam as cabeças, concordando com o diagnóstico do colega. Muito bem, pensa Mondego. O gato já está quase todo fora do saco. Só falta alguém…
É Sua Santidade quem toma a palavra:
– Até o momento, nossos fiéis têm reconhecido que o progresso da Medicina, em si, é um milagre. Mas as pesquisas mostram uma tendência cada vez maior de os pacientes agradecerem apenas ao médico, e não mais a Deus. E os milagres sempre foram vistos como sinais. Sem milagres, é como se Deus tivesse emudecido.
… Esfolá-lo.
– Há outras manifestações, além de curas – diz o cardeal Cuetzpalli. – Estigmas. Ícones que choram e sangram. Visões…
Atith faz uma careta:
– Nenhum comitê de investigação foi capaz de confirmar um caso desses em cinqüenta anos. Hoje em dia, com espectrógrafos laser de bolso, qualquer espertinho é capaz de fazer uma leitura instantânea do que quer que esteja escorrendo pelo rosto da Virgem, ou da Hóstia Sagrada. Já esqueceram o fiasco de San Gennaro?
Ninguém tinha esquecido: seis anos antes, um estudante, com um pequeno aparelho portátil, descobrira a mistura exata de cera de abelha, corante e calcário que compunha o “sangue” milagroso. O pároco napolitano tinha se saído bem com um sermão sobre o valor simbólico da liquefação da substância guardada no frasco e o poder da fé, sugerindo que a composição exata do líquido vermelho era irrelevante para os verdadeiros crentes, mas a festa nunca mais havia sido a mesma.
O cardeal Sousa, que vinha se mantendo em silêncio, aproveita a pausa na discussão para se manifestar:
– O conceito original de milagre pode ter se tornado obsoleto, mas “milagre”, em si, é uma palavra elástica. Não podemos simplesmente dizer que, com a Graça de Deus, melhor, que iluminada pela luz de Deus, a inteligência humana deu conta dos males do mundo, e que a partir de agora todos os verdadeiros milagres ocorrem onde sempre ocorreram em essência, no coração humano? Milagres de compaixão, superação, bondade…
A careta de Atith aprofunda-se:
– Já posso ver a manchete dos jornais secularistas: “Igreja reconhece que o homem tirou os males que Deus pôs no mundo”.
Sousa dá de ombros:
– Não importa o que façamos, os secularistas vão tripudiar de qualquer jeito.
Paulo XII intervém antes que a discussão fique acalorada demais:
– A solução é engenhosa, mas ficamos com o problema das canonizações: como certificar esse tipo de milagre?
Antes que Sousa abra a boca, Cuetzpalli volta ao debate:
– E se declarássemos que certos procedimentos médicos de alta tecnologia são imorais? As pessoas que se curarem sem se submeter a eles seriam receptoras de milagres… Não seria algo sem precedentes.
O papa não gosta da idéia:
– Anestesia, vacina, contracepção, fertilização in vitro, aborto. – O Paulo XII conta cada item na ponta dos dedos da mão direita. – E que bem nos fez o fato de nossos antecessores terem proibido tudo isso. Você sabe o que aconteceu.
– As pessoas simplesmente ignoraram as instruções – emendou Atith. – E acabamos tendo de voltar atrás. Além do quê, a esta altura, seríamos acusados de hipocrisia.
Ninguém precisa dizer o que passa pela mente de todos: que a transferência da Santa Sé para a órbita da Terra teve mais a ver com os benefícios geriátricos da microgravidade do que com o desejo da Igreja de se desvincular de uma nação única, de “colocar-se fora do mundo para melhor integrar-se a ele”, como dissera a encíclica original de Bento XXIII sobre o assunto.
– Milagres não são o único caminho para a santidade – diz Mondego de repente, quebrando a atmosfera meditativa. – Há o martírio.
– O que não há é mártires! – grita Atith.
– Vivemos num mundo tolerante – pontifica Paulo XII. – Pagãos, judeus, muçulmanos e comunistas não matam mais cristãos. Nem cristãos matam mais cristãos, o que é, creio, algo inédito.
– Sempre podemos começar uma nova cruzada – murmura Cuetzpalli.
– Ou enviar missionários a Marte. Sem tanques de oxigênio – ironiza Atith.
– Estava pensando em outro tipo de martírio – explica Mondego. – Mais parecido com os “milagres espirituais” advogados pelo cardeal Sousa. Na verdade, as duas coisas se encaixam. Uma poderia, até, reforçar a outra.
– Martírio espiritual? – o sarcasmo na voz de Atith não parece incomodar Mondego, que prossegue:
– Pensem, por exemplo, em Umbertino Ferrari. Ele era um empresário de sucesso. Herdeiro de uma enorme fortuna. Um esportista, um homem do mundo. E, certo dia, praticamente exauriu suas posses materiais para que a Igreja pudesse ter…
Com um gesto, o cardeal indica o infinito azul virtual que os cerca: Ferrari pagara uma boa proporção do custo de construção de São Pedro Extra-Mundos. Suas fábricas tinham produzido os motores de foguete necessários para levar as toneladas de material até a órbita da Terra, e os engenheiros que haviam coordenado a montagem, já no espaço, eram funcionários do Grupo Ferrari.
– Isso não deveria contar como uma forma de martírio espiritual? – pergunta Mondego. – O Umbertino de antes, o milionário frívolo, morreu em espírito. Morreu por sua fé.
O silêncio que se segue, palpável, é quebrado por Sousa:
– Poderíamos ter milagres de foro íntimo provocados por mártires de foro íntimo.
– Exatamente – diz Mondego.
– E esses “martírios” íntimos seriam externamente, em aparência, grandes serviços prestados à Igreja – acrescenta o papa. – Como uma enorme doação, por exemplo.
– Precisamente, Vossa Santidade – afirma o cardeal. – Isso permitiria restringir a fonte dos milagres do coração a um pequeno número de candidatos meritórios.
– Soa como venda de indulgências para mim… – diz Cuetzpalli.
– Dar a Deus e aos pobres é um ato digno de elogios, e não deve ficar sem recompensa – sentencia Paulo XII.
– Quanto à certificação dos milagres íntimos, que tão justamente havia preocupado Vossa Santidade, sempre poderemos criar comissões psiquiátricas e teológicas…
– Já esqueceu que a psiquiatria foi praticamente reduzida à química? Nós poderemos dizer que a compaixão foi inspirada por, suponhamos, são Umberto Ferrari, e os psiquiatras dirão que foi dopamina. Como ficamos? – pergunta Atith.
– As ciências da mente são muito menos populares que o restante da Medicina – diz Mondego. – Este é um campo onde ainda dá para disputar. Afinal, se os neurotransmissores inspiram pensamentos, ainda é possível debater o que desencadeia os neurotransmissores. Um espaço que não temos mais, por exemplo, na relação entre quimioterapia e câncer.
– “Pelo fruto conhecereis a árvore” – sentencia Paulo XII. – Compaixão é compaixão, e ponto. Gostaria que Vossas Eminências trabalhassem numa reforma do Direito Canônico dentro das linhas discutidas aqui.
Mais tarde, depois que os cardeais já retornaram para seus aposentos privados e atenderam aos chamados de suas arquidioceses na Terra – a maioria deles é velha demais para suportar as acelerações abruptas de um retorno ao planeta e está, para todos os efeitos, exilada em Extra-Mundos – Atith encontra Mondego numa das muitas capelas da basílica orbital. O prelado espanhol está manipulando, com cuidado, os receptáculos especiais que impedem que o vinho da missa saia flutuando por aí, sob a forma de glóbulos sem peso.
O cardeal cambojano sorri. A precisão necessária para a manobra tem um efeito semelhante a da meditação profunda induzida pelas artes marciais em algumas pessoas – entre as quais, ao que tudo indica, está Mondego.
– Quanto tempo acha que ganhamos? – pergunta Atith, num momento especialmente calculado para testar o poder de concentração do colega.
Sem perder um passo na transferência do vinho entre recipientes, sem erguer os olhos da tarefa, Mondego responde:
– Isso só a Providência pode dizer. Mas…
– Mas?
– Mas manter esta estação em órbita custa caro. Acho que, com o novo martírio, conseguiremos viabilizar Extra-Mundos por mais duas ou três gerações.
Mondego lacra os receptáculos e fecha as pequenas garrafas no armário com revestimento de almofada e velcro. Só então ergue os olhos para contemplar Atith.
– Se você quer saber se haverá cardeais e um papa em órbita dentro de três gerações, minha resposta é, de novo, só a Providência pode dizer.
Atith coça a cabeça antes de dizer:
– Às vezes imagino esta basílica abandonada, queimando na reentrada da atmosfera, e isso me parece…
– Isso lhe parece?
– Apropriado. Um fim apropriado. Talvez porque apele ao meu