Carlos Eduardo Pereira: ‘na criação de uma narrativa ficcional, às vezes a gente se esquece de que o narrador é personagem’
Autor de “Enquanto os dentes” e “Agora agora” é o segundo entrevistado no especial do Le Monde Diplomatique Brasil em comemoração ao Dia Nacional do Escritor
O entrevistado dessa semana no especial do Le Monde Diplomatique em comemoração ao Dia Nacional do Escritor (25 de julho) é o carioca Carlos Eduardo Pereira, autor dos romances “Enquanto os dentes” (2017) – livro finalista do Prêmio São Paulo de Literatura – e “Agora agora” (2022), ambos publicados pela Todavia.
Com linguagem cortante, longe de rodeios ou meias-palavras, o autor discute temas sociais e apresenta personagens assombrados por traumas e violências cotidianas. Não por acaso, quando questionado sobre o que move sua escrita responde: “os grilos que me enchem a cabeça e que procuro exorcizar jogando tudo para uma tela de computador.”
Ao longo da entrevista, Carlos Eduardo Pereira ainda falou sobre seus dois livros, sua preocupação com a construção de narradores, as violências recorrentes em ambientes militares, o atual cenário literário brasileiro, entre outros temas.

Crédito: Fábio Mendes
Confira na íntegra:
Seu romance mais recente, “Agora agora”, foca em três gerações de homens negros e discute temas como racismo, identidade e a ascensão do fascismo, a partir das histórias de três personagens bem diferentes entre si. Como surgiu a ideia para esse livro?
Dá para dizer que esse romance é sequela de uma bruta crise da meia-idade que me bateu. Quando estava pelos meus quarenta e tal, atolado em muita insegurança, confusão e medo de morrer, acabei procurando investigar, com alguma distância, algo das minhas raízes de família.
As questões ligadas à paternidade sempre foram objeto de meu interesse na literatura – os ruídos nessas relações, quero dizer – e pensar o meu papel de pai foi também pensar o meu papel de filho, e de neto. Desconfiava de que um sujeito mais ou menos como eu (mais ou menos com a minha cor e mais ou menos com a minha idade) não conseguiria reconstituir minimamente as memórias familiares para além de duas ou três gerações no passado. A gente sempre esbarra na tragédia da escravidão no Brasil, e como as consequências dessa tragédia seguem por aí se repetindo e se repetindo e se repetindo, pensei que talvez fosse o caso de botar essas possibilidades de histórias no papel.
“Enquanto os dentes”, seu romance de estreia, tem como protagonista Antônio, um homem que assim como você é cadeirante. O livro teve excelente aceitação do público e da crítica e foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura. Acredita que o sucesso da obra contribuiu para chamar a atenção para os desafios cotidianos enfrentados por cadeirantes?
Acho que sim. Eu me tornei cadeirante em 2010, de forma repentina e inesperada, quando descobri ser portador de uma doença autoimune, e o susto me forçou a reconfigurar quase tudo na vida, eu tive que aprender quase tudo. Foi aí que comecei a escrever, por exemplo, encontrei esse caminho que me traz tanto uma espécie de equilíbrio interior quanto uma forma nova de travar contato com as pessoas.
Eu sou muito grato pela maneira como o livro foi e segue sendo bem recebido pelo público em geral, e fico feliz quando me param na rua para dizer que passaram a ficar ligados nas rampas de acesso, nas vagas reservadas de estacionamento, nos elevadores do metrô, depois de terem lido o “Enquanto os dentes”. Sinto que pode ter servido de alguma coisa.
Seus dois romances abordam, cada um à sua maneira, as violências físicas e psicológicas recorrentes em ambientes militares. Quando percebeu que era o momento de abordar esse assunto?
Um grupo de WhatsApp de que eu participava veio se tornando um ambiente a cada dia ainda mais estranho, a partir das manifestações de junho de 2013. Era um grupo de ex-alunos de uma escola de formação de oficiais das forças armadas, que eu frequentei no fim dos anos 1980. Falo de postagens raivosas, carregadas de ressentimento, de revanchismo, um raciocínio claramente anacrônico que não tinha como dar em coisa boa.
Muitos desses meus colegas de turma seguiram na ativa, hoje eles comandam tropas em quarteis espalhados por todo o país. Penso que um tema que devemos discutir com coragem e honestidade é o papel que a sociedade civil deseja que os militares desempenhem no Brasil. Recentemente pudemos perceber que negligenciar o assunto tende a acarretar consequências muito perigosas.
A questão do narrador é um tema bastante importante para você, inclusive está presente em suas oficinas. Acredita que construir um bom narrador está entre os principais desafios da criação literária? Quais elementos são indispensáveis para um narrador realmente interessante e eficaz?
Na criação de uma narrativa ficcional, às vezes a gente se esquece de que o narrador é personagem, talvez o principal personagem. É ele que chega no ouvido do leitor para dizer senta aí que eu preciso te contar uma história. Quem conduz a coisa toda é o narrador. Eu costumo dedicar muito tempo a essa construção, semanas, meses. Antes de qualquer outra coisa, me concentro em descobrir quem seria esse narrador. Será que ele bebe cachaça ou conhaque? Qual seria o seu interesse ou necessidade de contar essa história? Ele vai aparecer na trama? É divertido.
Em 25 de julho é comemorado o Dia Nacional do Escritor. Na atualidade, o que os autores e as autoras mais têm a celebrar no país? E com o que eles e elas devem se preocupar?
Acho que estamos vivendo um ótimo momento na produção literária brasileira, nos últimos anos tenho tido o prazer de conferir grandes trabalhos de grandes autoras e autores nacionais. Precisamos celebrar as parcerias com que temos podido contar, são editoras de todos os tipos, interesses e tamanhos, são livrarias de rua, são sebos, são clubes de leitura, são saraus em todo canto do Brasil, são leitores se manifestando na internet, em contato direto, são departamentos de letras olhando um pouco mais para o produzido no contemporâneo, são novos eventos e prêmios literários surgindo, enfim, tem muita coisa boa acontecendo.
Por outro lado, precisamos nos manter atentos e unidos contra toda e qualquer força que insista na tentativa de cercear a liberdade de pensamento e expressão que é alicerce da literatura.
Em sua opinião, qual escritor ou escritora merece maior atenção de leitores, leitoras, editoras e da crítica especializada no Brasil?
Sou fã do trabalho da Jeovanna Vieira, ela tem a mão pesada, uma escrita forte e direta, sempre com os olhos grudados nas questões mais caras ao contemporâneo. Ela tem alguns contos e poemas publicados e acaba de lançar seu romance de estreia, o “Virgínia mordida”, pela Cia. das Letras.
Qual foi o melhor conselho que você já recebeu no meio literário? E o pior?
O Rubens Figueiredo costuma dizer que escritor é que nem taxista, se a gente não está sempre escrevendo, (enferruja e) não paga os boletos. Já o pior conselho eu não me lembro, tudo acaba funcionando bem para mim, os bons exemplos e os maus.
O que move sua escrita?
Os grilos que me enchem a cabeça e que procuro exorcizar jogando tudo para uma tela de computador.
Bruno Inácio é jornalista, mestre em comunicação e autor de “Desprazeres existenciais em colapso” (Patuá) e “Desemprego e outras heresias” (Sabiá Livros). É colaborador do Jornal Rascunho e da São Paulo Review e tem textos publicados em veículos como Le Monde Diplomatique, Rolling Stone Brasil e Estado de Minas.