Caso do litoral norte paulista: um chamado à adaptação na era da injustiça climática
É necessário enquadrar o evento climático no litoral paulista enquanto tema de justiça climática, com interseções importantes quanto à gênero e raça
Nos últimos anos, uma sucessão de eventos climáticos extremos atingiu diferentes regiões do Brasil, com destaque para as chuvas intensas nos estados do Maranhão, Bahia, Rio Grande do Sul, Pará, Rio de Janeiro e, mais recentemente, São Paulo. As inundações e deslizamentos no litoral norte paulista ganharam destaque nos últimos dias em virtude do volume histórico (640 mm de chuva em 24 horas, segundo o Instituto Nacional de Meteorologia, Inmet) e das consequências (mais de 40 mortos, em torno de 1800 desalojados, mais de 700 desabrigados, segundo informações oficiais do governo de São Paulo).
O que há algumas décadas poderia ser enquadrado enquanto tragédia, ou evento natural inesperado, hoje é inequivocadamente denominado evento climático extremo. O termo, empregado com frequência cada vez maior por acadêmicos e pela mídia (e ainda de forma muito limitada por tomadores de decisão), diz respeito aos efeitos das mudanças do clima antropogênicas, que aumentam a incerteza e instabilidade quanto à magnitude e permanência de eventos como o ocorrido no litoral paulista.
Ao contrário do imaginário coletivo que entende a catástrofe climática como um episódio único, raro e de proporções globais, a crise é muito mais frequente e próxima ao cotidiano dos brasileiros, principalmente aqueles que habitam áreas de risco e de alta vulnerabilidade. As mudanças do clima já são realidade para a população periférica, em sua maioria negra e do sexo feminino.

Nesse sentido, é necessário enquadrar o evento climático no litoral paulista enquanto tema de justiça climática, com interseções importantes quanto à gênero e raça. As chuvas em Petrópolis, em fevereiro de 2022, resultaram em mais de 200 mortes, das quais 60,6% foram pessoas do gênero feminino[i]. Essa diferença também foi observada nos episódios dos temporais em Pernambuco e em Salvador, também no ano passado. Essa prevalência de mulheres entre os mais afetados por eventos climáticos extremos não é aleatória, é parte de uma estatística muito mais ampla que relaciona desigualdade de gênero e mudança do clima. As mulheres geralmente enfrentam maiores riscos e ônus dos impactos e são a maioria (em torno de 70%) da população mais pobre do mundo.
Outra dimensão da injustiça climática evidente no episódio do litoral paulista é a distância entre os níveis de emissão de GEEs observados em países desenvolvidos, em comparação a países como o Brasil. Ainda que as emissões tenham aumentado consideravelmente nos últimos 6 anos, principalmente em virtude do desmatamento ilegal, o Brasil não está entre os 10 maiores emissores globais[ii]. Ao mesmo tempo, o país apresenta altos índices de vulnerabilidade e tem sofrido as consequências do desequilíbrio climático global. Ainda que não haja uma definição única de justiça climática, um lugar comum na academia é a noção de que essa desigualdade entre os maiores emissores e os países (e populações) atingidas seria o cerne da injustiça climática global, ainda sem estrutura multilateral justa e mecanismos ambiciosos de cooperação e financiamento.
O que aconteceu no litoral norte é consequência de uma estrutura muito precária de financiamento em adaptação, em oposição aos altos custos da reparação das perdas e danos. Adaptação, diferentemente de mitigação, envolve antecipação aos eventos climáticos extremos e prevenção de danos causados por eventos climáticos extremos. Globalmente há um déficit considerável em financiamento em adaptação – segundo relatório[iii] publicado pelo Programa das Nações Unidas sobre Meio Ambiente (PNUMA) em 2022, o investimento em adaptação precisa ser ao menos 5 vezes maior do que o empregado atualmente. O relatório também aponta que a demanda por adaptação em países em desenvolvimento seria em torno de US$ 340 bilhões por ano até 2030 e que o apoio global à adaptação hoje não atinge um décimo desse valor.
O governo brasileiro, sob a coordenação da então ministra Izabella Teixeira, instituiu em maio de 2016 o Plano Nacional de Adaptação à Mudança do Clima[iv], como parte da estrutura multilateral estabelecida na Convenção-Quadro da ONU sobre Mudança do Clima (CQNUMC). Em linhas gerais, o PNA tem por objetivo orientar a formulação e implementação de ações de adaptação em médio e longo prazo. O volume II do documento indica alta probabilidade de eventos extremos relacionados a inundações bruscas, enxurradas e alagamentos (pág. 159), com destaque à vulnerabilidade da região sudeste. Em oposição a essa informação, que explicitamente indica que o que ocorreu no último fim de semana poderia acontecer a qualquer momento, as ações indicadas pelo PNA foram negligenciadas pelo governo federal durante o governo de Jair Bolsonaro e o plano nacional nunca foi totalmente implementado. A sinalização do governo Lula, sob a liderança de Marina Silva, é de uma reestruturação no plano de 2016 e a criação de uma linha orçamentária específica para adaptação climática.
Nenhum planejamento de transição justa para uma economia de baixo carbono pode se eximir de compreender que a mudança do clima atinge de modo desigual as sociedades. A agenda de adaptação do atual governo deve incluir a sociedade civil e deve ocorrer de modo transversal, incluindo estados, municípios e, principalmente, a população mais vulnerável. A retórica ministerial por ora tem focado em ações pontuais de educação da população que reside em áreas de risco, além da instalação de sirenes e equipamentos de alerta em caso de chuvas torrenciais. O foco deve mudar progressivamente para planejamento e desenvolvimento urbano de fato inclusivo e participativo.
O evento extremo do último final de semana foi inequivocadamente consequência da negligência em relação à política climática nos últimos 6 anos, além de um chamado à ação muito mais ambiciosa, com foco em adaptação e sensível à dimensão da injustiça climática, fundamental no debate sobre eventos climáticos extremos. Protagonista óbvio do enfrentamento da tragédia, o governador Tarcísio de Freitas deve modificar aquele que foi o modus operandi de sua trajetória no Ministério da Infraestrutura: a negligência à questão do clima e o negacionismo generalizado. A sinalização inicial de seu mandato no governo do estado é de que a questão ambiental continuará em segundo plano: a fusão das secretarias de Infraestrutura e Meio Ambiente e Logística e Transportes foi interpretada por ambientalistas[v] como um retrocesso e um descolamento do quadro de crise, que demanda fortalecimento da agenda, não seu subdimensionamento.
[i] https://g1.globo.com/pe/pernambuco/noticia/2022/06/10/mulheres-sao-maioria-das-vitimas-dos-temporais-e-soterramentos-lideram-causas-de-mortes-veja-areas-onde-ocorreram-129-obitos.ghtml; https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2022-02/mulheres-sao-maioria-das-mortes-em-petropolis-por-causa-das-chuvas
[ii] https://worldpopulationreview.com/country-rankings/greenhouse-gas-emissions-by-country
[iii] https://www.unep.org/resources/adaptation-gap-report-2022?gclid=Cj0KCQiA3eGfBhCeARIsACpJNU9g8qzXohlZJcZZkIiAnV3JVhTzSqowmOzNUDS1Xi8tYdoD0VMdn6YaAqagEALw_wcB
[iv] https://www.gov.br/mma/pt-br/assuntos/ecossistemas-1/biomas/arquivos-biomas/plano-nacional-de-adaptacao-a-mudanca-do-clima-pna-vol-i.pdf e https://www4.unfccc.int/sites/NAPC/Documents/Parties/Brazil/Brazil%20PNA_%20Volume%202.pdf
[v] https://www1.folha.uol.com.br/ambiente/2023/01/tarcisio-de-freitas-funde-secretaria-do-meio-ambiente-para-acelerar-obras.shtml