No dia 26 de maio de 2022, Genivaldo de Jesus dos Santos, 38 anos, homem negro, trabalhador, pessoa com transtorno mental e morador da cidade de Umbaúba, em Sergipe, foi morto por policiais rodoviários federais, após ser brutalmente humilhado, amarrado e agredido. Genivaldo foi colocado dentro do porta-malas de uma viatura e um policial lançou uma bomba de gás lacrimogênio dentro do veículo sob alegação de que precisava ser contido, de acordo com os noticiários, a justificativa era um suposto surto psiquiátrico. Na análise preliminar do Instituto Médico Legal (IML) consta que Genivaldo morreu por asfixia e que a causa mortis foi insuficiência aguda secundária.

As imagens da violência e morte de Genivaldo circularam nas redes sociais e provocaram indignação. Que tipo de sociedade é essa, onde um homem negro é morto por asfixia mecânica e insuficiência respiratória à luz do dia, sem qualquer atitude que pudesse coibir a ação desses agentes públicos. A permissividade da violência étnico-racial no Brasil é histórica.
O deslocamento forçado de pessoas negras oriundas do continente africano, dos porões dos navios negreiros às celas das penitenciárias, expõe o quanto o tratamento sem qualquer resquício de respeito à condição humana, em espaços sem ventilação, iluminação, alimentação adequada é validado e molda as relações sociais no capitalismo. A tortura é o modus operandi. Tortura de pessoas negras é a regra, assassinar pessoas negras é parte do projeto de nação. O racismo antinegro tem assento na história moderna desde muito antes do holocausto judeu. A morte de Genivaldo é indigesta para parte da sociedade, comprometida com a luta antirracista. Coibir o racismo institucional que molda a forma como a segurança pública atinge a população negra não é medida consensual.
Quer seja em território brasileiro ou em outros países do mundo, a questão étnico-racial tem desafiado os Estados a construírem ações que respondam às práticas racistas institucionalizadas e à violência urbana, que cresce exponencialmente em tempos de acirramento da crise do capital. Punir a truculência das intervenções policiais com rigor é central para que vidas negras sejam preservadas.
O cenário descrito revela o quanto permanecemos reféns da barbárie, à medida que a acumulação capitalista amplia suas garras sobre o planeta. Reatualiza na memória o massacre perpetrado por tropas imperiais alemãs, no Deserto da Namíbia, entre os anos de 1904 e 1908 e as tortura na Guerra do Congo, de colonização belga, no início do século passado, na qual cerca de 10 milhões de congoleses foram brutalmente assassinados. Do genocídio à ação sistemática do encarceramento em massa e do confinamento em instituições psiquiátricas o fio condutor para a manutenção da ordem é a desumanização de homens e mulheres negras
Não podemos deixar de sinalizar o quanto a concepção de loucura estabelecida na modernidade foi forjada pelo colonialismo, patriarcado e racismo. No Brasil, as estruturas basilares do aparato manicomial se constituem de estratégias de reprodução do controle do corpo, da subjetividade e da morte da população negra. Ao retomarmos a realidade dos manicômios identificamos a população que sempre ocupou esse espaço, assim como as prisões e as instituições de medida socioeducativa.
Nesse sentido, o assassinato de Genivaldo revela que a criminalização do negro e da loucura são intrínsecas e que ainda hoje temos a adoção de estratégias clássicas utilizadas nos hospícios – violência, isolamento e contenção- fazendo parte das operações do braço armado do Estado. Diferentes matérias deram ênfase ao sofrimento psíquico de Genivaldo, transformando-o em um possível suspeito e criminoso, o que nos leva a indagar: até quando o sofrimento será motivo de penalização e morte?
A construção de uma proposta que substitua gradativamente o modelo manicomial clássico segue sendo possível por meio da Reforma Psiquiátrica e da Luta Antimanicomial. Propõe -se a liberdade como prática psicossocial e direcionamento ético-político, o que demanda uma transformação radical da realidade brasileira, já que a colonialidade do ser, do saber e do poder constituem as relações e as instituições. Tanto que o processo de silenciamento e morte reproduzidos pelos policiais não é algo apenas visto na experiência do Holocausto Nazista e replicado em terras brasileiras. O silenciamento faz parte da história da escravidão e das abordagens penalizadoras dos colonizadores. A morte pelo silêncio é praticada, ainda hoje, só que agora a céu aberto. Grada Kilomba demonstra como a máscara do silêncio foi utilizada para punir negras/os escravizadas/os que desejavam morrer comendo terra, o que demonstra que o poder da morte tem dono. Portanto, o aparato manicomial está presente para fora dos muros institucionais do hospital psiquiátrico. Ele está enraizado nas relações sociais e institucionais, o que sustenta a criminalização do negro e da loucura.
É necessário afirmarmos os princípios da Luta Antimanicomial e da Reforma Psiquiátrica brasileira que estão assentados na liberdade, nos direitos humanos e na emancipação. A naturalização do extermínio da população negra também atravessa o campo, a política pública e os projetos de saúde mental. Não é mais possível reduzirmos a temática às análises de especialistas que compreendem a saúde mental em uma perspectiva biologizante e medicalizante. Dessa forma, uma sociedade que assume a violência, o medo, o extermínio, o encarceramento e a punição como práticas aceitáveis, produz sofrimento e adoecimento psicossocial intensamente e que ao mesmo tempo cria fórmulas e estratégias que culpabilizam os indivíduos por estarem nessas condições. Assim, até quando aceitaremos a banalização das vidas negras?
Rachel Gouveia Passos é assistente social. Pós-doutoranda em Direito na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Política Social da Universidade Federal Fluminense. Autora e organizadora de algumas obras sobre saúde mental e as relações de gênero, raça e classe.
Márcia Campos Eurico é assistente Social. Pós-doutoranda em Direito na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Assistente Social do INSS. Professora do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social e Políticas Sociais – Unifesp Baixada Santista. Coordenadora do GTP Serviço Social, Relações de Exploração e Opressão de Gênero, Feminismos, Raça/etnia e Sexualidades ABEPSS – Biênio 2021-2022. Autora de artigos sobre racismo institucional e do Livro Racismo na Infância.
Referências
EURICO, Márcia Campos. Racismo na Infância. São Paulo: Cortez, 2020.
KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.
PASSOS, Rachel Gouveia. “Holocausto ou Navio Negreiro?”: inquietações para a Reforma Psiquiátrica brasileira. Argumentum, v. 10, n. 3, p. 10–23, 2018