Cativeiro: antinegritude, ancestralidade e o suicídio da ilusão
O livro “Cativeiro Antinegritude e Ancestralidade”, editora Segundo Selo, encontra nas ideias afropessimistas contornos instigantes e originais
“Os judeus entraram e saíram de Auschwitz como judeus – um holocausto humano. Mas os africanos entraram nos navios negreiros e saíram como negros – um holocausto metafísico, diz Wilderson (2010)[1]
O novo livro de Osmundo Pinho[2] nos revela um percurso que atravessa a Baía de Todos os Santos (BA) e alcança o The African and African Diaspora Departament Studies (AADS) na Universidade do Texas, em Austin (EUA). O livro “Cativeiro Antinegritude e Ancestralidade”, lançado pela editora Segundo Selo, encontra nas ideias afropessimistas contornos instigantes e originais à “centralidade política e heurística da violência estatal antinegra, do genocídio do povo negro e do lugar político que a morte negra ocupa na estabilização do projeto nacional brasileiro”[3].
A nova obra de Osmundo Pinho é uma das primeiras respostas brasileiras a emergência dessa nova lente para compreender “o significado da violência na circunscrição da subjetividade e política negra na modernidade ocidental e no Brasil”[4]. O livro dialoga com autores e autoras como Beatriz Nascimento e sua crítica historiográfica da escravidão e do papel e função social e política dos quilombos; como Abdias do Nascimento e sua antecipada leitura e interpretação do genocídio do negro brasileiro; como Lélia Gonzalez e sua noção de amefricanidade; bem como os debates sobre o feminismo negro, sem esquecer bell hooks. Além de nomes da atual onda de estudos africanos e da diáspora negra como Achille Mbembe, Jared Sexton, Lewis Gordon, Fred Moten, Hortense Spillers, Orlando Patterson, Saidiya Hartman, João H.C. Vargas, professor brasileiro radicado nos EUA há alguns anos, e sobretudo Frank Wilderson III, filósofo afroamericano, que acaba de ter seu livro Afropessimismo lançado pela editora Todavia. O livro de Wilderson contém parte das ideias e posturas que sustentam e organizam o caminho traçado pelo autor baiano de Cativeiro.
As noções de afropessimismo; morte social; posicionalidade; fungibilidade escrava; mundo antinegro; escravidão; antinegritude; resistência do objeto; performance; ancestralidade; metamorfose; repertório; experiência; transcendência; negritude; necropolítica; entre outras categorias que compõem o puzzle teórico-metodológico e conceitual do autor, que o faz avançar algumas casas na compreensão da exclusão do negro do mundo social e, consequentemente, da esfera pública. O autor apresenta um antagonismo irreconciliável entre a pessoa do homem negro e sua ontologia, ou seja, sua condição de ser sujeito na plenitude de si na atualização de potências afetivas, estéticas, políticas, éticas, morais, culturais e sociais. A não ser em momentos de fugitividade, nos quais a encenação catártica de seu próprio drama, enquanto performance é quando o negro pode erguer-se contra a sua condição de “coisa”, “mercadoria” ante a modernidade no contexto da expansão colonial europeia.

É no cativeiro dos porões dos navios, nos quilombos, nos terreiros, nas ruas, no pagode baiano, nas galerias, no cinema, na ficção e autoficção, no direito, no discurso de outros intelectuais e artistas, que o autor vai procurar a “liminaridade” entre o “africano” e o “escravo”, numa dura crítica e oposição à mestiçagem como solução sociológica para o apaziguamento de tensões raciais e de gênero. Assim, nos diz que “o afropessimismo assume o ponto de vista do mundo antinegro para definir quem somos, escravos, e a ancestralidade assume o ponto de vista do mundo negro, dos candomblés, dos batuques, dos quilombos para reconhecer em nosso fundamento, subjetivo e político, o africano”.[5]
Na apresentação de seu problema sociológico, histórico, estético e político, Pinho define cativeiro enquanto “condição, mediada pela passagem do meio e pela transposição atlântica no porão do navio negreiro, a que foram conduzidos sujeitos e saberes africanos, ancestrais. E que, como categoria, busca refletir essa passagem, ou alternância inconclusa e reversível (porque transtemporal) entre o escravo e o africano”.[6] Evocando a ideia de resistência do objeto, de Fred Moten, o autor procura articular à noção de fungibilidade escrava reconhecendo na “identificação com a mercadoria, uma localização para a ontologia política do negro” voltada à resistência e revolta, à subversão e rebelião, à invenção e a objeção no sentido em que se tem a “performance como forma cultural privilegiada em oposição a outras modalidades representacionais, logocêntricas, ou cartesianas de produção de vida e sentido. A performance, como forma não-representacional, imanente, permite a resistência do objeto, sem recair ou retomar estruturas e epistemologias ocidentais, antinegras”.[7]
O autor nos indaga de várias formas durante todo o livro: “há transcendência possível?” Segundo seus interlocutores afropessimistas, só a destruição do mundo ocidental, colonial e supremacista é que abriria espaço para a reinserção do africano no conjunto das relações sociais “como as conhecemos”. Desta maneira, o livro se mostra um traço do gesto intelectual de seu autor e seus contemporâneos com os quais compartilha mais um passo deflagrado e que se inscreve no horizonte político e combativo do pensamento social negro contemporâneo ante as marcas de expressão de seu estilo provocante a uma antropologia que, enquanto ciência e epistemologia, filosofa as possibilidades de interpelar a supremacia branca enquanto ordem política contrária ao “sujeito X” em seu cativeiro filosófico, íntimo e ontológico, em suma, humano a quem se nega a humanidade.
Depois das emergências do panafricanismo, dos nacionalismos negros, da própria cultura popular, a partir de agora, entendida como arte vernácula, o jogo posto e jogado entre performance e representação, virtualizando e rematerializando os rituais de violência contra o corpo ancestral invade a densidade de um complexo niilismo que não se reduz ao próprio conceito mas que, ao criticar etnograficamente o elogio da resistência, expande a percepção sobre a “ausência de reconhecimento ontológico” no capitalismo racializado ante o qual somente o rigor e, até mesmo o vigor de um motim, como no Haiti ou no México do EZLN, poderiam assomar objetivamente essa teoria critica das raças.
Ao objetivar uma agência no mundo antinegro da sociedade atual, esta chave metafísica quer transubstanciar a loucura no sagrado, desmistificar o pagode baiano e o funk em seus paredões, quer acoplar os gêneros e as sexualidades cis e trans a um outro horizonte muito além da gentrificação e da rentabilidade plástica, quer ser o retorno da palavra ao corpo através da voz do seu autor em direção ao corpo do seu leitor, ouvinte, da sua audiência, e, sendo antes disso, o seu próprio ato de registro e posterior distribuição profanadora das estruturas que o mesmo descreve, uma mancha ácida nesse forro sócio-histórico apodrecido e doente, propondo não uma subversão da ordem social mas sim a sua subjugação à uma ordem natural, ecológica como no caso da nossa relação com os vírus ou espíritos.
Agora, só apontando pra uma ecologia cosmológica, ou melhor, uma eco-sócio-cosmologia não mais calcada na cultura material colonial, mas, sim, nas propriedades ainda indescobertas da Terra e que inclua não só os vírus e os espíritos que desconhecemos e que também habitam o planeta e a nós, mas que comece com os povos originários, ameríndios e africanos, árvores, ventos e dessa vez, não mais como em Hegel, ou como nos Iluministas, nem como História ou consciência, mas como eco-política espiritual, pois quando nada mais faz sentido, nem mesmo instrumental, então, a fenomenologia de uma experiência que precisa novamente reencarnar o espírito do mundo, mas não o dinheiro, o capital, mas sim o verdadeiro espírito ancestral do mundo – a mudança, a transformação com o suicídio da ilusão.
Camillo César Alvarenga é mestre em Sociologia pelo Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal da Paraíba (PPGS/UFPB) com pesquisa sobre transformações cosmológicas e ontológicas ameríndias e africanas no Recôncavo da Bahia. Especialista em Estudos Étnicos e Africanos pelo Instituto Universitário de Lisboa, Portugal (ISCTE-IUL). Bacharel em Ciências Sociais pelo Centro de Artes Humanidades e Letras da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (CAHL-UFRB). Atua, sobretudo, nas áreas de Sociologia, Antropologia das Populações Afro-Brasileiras, Etnologia Indígena e Etnomusicologia. Produtor executivo do Quilombo Cultural Casa Coletivo. e-mail:[email protected]
[1] PINHO, Osmundo S. Cativeiro Antinegritude e Ancestralidade. Ed. Segundo Selo, Salvador, 2021. p. 218
[2] Antropólogo baiano, doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas, professor de graduação e pós-graduação na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, em Cachoeira, e também no Programa de Pós-graduação em Estudos Étnicos e Africanos da Universidade Federal da Bahia.
[3](PINHO, 2021, p.20)
[4] PINHO, Osmundo S. Cativeiro Antinegritude e Ancestralidade. Ed. Segundo Selo, Salvador, 2021
[5] Idem p.23
[6] idem. p. 23
[7] idem, p.23-24