Causa ecológica e causa antropólogica
Tão urgente quanto a ecológica, a causa antropológica é, por ora, pouco pensada. Situação dramática. Uma tarefa crucial se impõe, portanto, aos que se aventuram em invocá-la: é preciso se arriscar a propor pelo menos um rascunho de temas principais suscetíveis de estruturar o pensamento da humanidade em perigoLucien Sève
O planeta Terra, essa forma de designar nosso hábitat natural, vai mal a um ponto alarmante; mas a consciência sobre o tema se ampliou e hoje não há formação política que não inclua em seu discurso a causa ecológica. O planeta Homem, forma de designar o gênero humano, está mal a um ponto também alarmante; porém, a consciência sobre o tema ainda não é equivalente a seu nível de gravidade e não há formação política que inclua a causa antropológica. Um contraste assombroso.
Pergunte aos menos politizados o que é a causa ecológica. Certamente, saberão dizer que o aquecimento global causado pelos gases de efeito estufa produzirá uma era de catástrofes; que a poluição da terra, do ar e da água atingirá níveis insuportáveis; que o esgotamento dos recursos naturais não renováveis condena nosso modo de consumo atual. Mais de um deles acrescentará as ameaças à biodiversidade para concluir sobre a urgência de reduzir a pegada ecológica dos países ricos.
Como eles sabem disso tudo? Pelos meios de comunicação, em que a informação ecológica é uma constante. Pelas experiências diretas, desde o clima até o preço do combustível. Pelo discurso de cientistas e políticos que constroem esses saberes parciais como visão globalizada e os convertem em programa político. Ao longo das últimas décadas, assim foi construída uma cultura que dá coerência às mais diversas motivações e iniciativas das quais é feito esse grande tema, a causa ecológica.
Pergunte agora aos menos politizados sobre a causa antropológica. Nenhum deles entenderá exatamente do que se trata. Explicitamos: pense que a humanidade está tão mal quanto nosso planeta, que a civilização do gênero humano está em verdadeiro perigo, de modo que, para salvar a natureza com urgência – causa ecológica –, é necessário, na mesma medida, salvaguardar a humanidade no sentido qualitativo do termo – causa antropológica. A interpelação pegará o interlocutor desprevenido. Muitos a considerarão excessiva. Certamente, a pessoa pensará em questões inquietantes, como a duração das condições de existência, a onda crescente de individualismo, a desmoralização da vida pública, as angústias em relação ao futuro. Mas a ideia de que nossa humanidade estaria em perigo na mesma medida em que o planeta soaria, sem dúvida, aberrante.
Insistimos. Em muitos sentidos, não estamos a caminho de um mundo humanamente inviável? A velha máxima “o homem é o lobo do homem” não tende a ser lei? O trabalho, exemplo maior, entrou em um declínio inquietante devido às dificuldades crescentes de proporcionar atividades gratificantes e de qualidade, à competição sistemática, à erradicação voluntária do sindicalismo, à pedagogia do “aprenda a vender-se”, à gestão empresarial baseada no terror (a ponto de gerar suicídios nos locais de trabalho), à ditadura onipresente da rentabilidade dos números, à voracidade acionária, à inflação e ao patrão criminoso. Não se trata de uma verdadeira desumanização em curso?
Até aí, não há nada de novo, à exceção da insólita apelação à causa antropológica. Contudo, observamos que esses desvios sociais suscitam alertas, pesquisas, iniciativas. E o drama do trabalho não passa despercebido. De fato, há um crescimento da consciência global sobre os delitos do sistema que nos rege. As forças políticas unidas da esquerda incitam a superação do capitalismo para levar adiante a emancipação humana. Os verdes vinculam à causa ecológica fortes objetivos sociais e institucionais de espírito democrático e solidário. Muitos economistas se opõem ao emprego do PIB como indicativo de eficiência. Por todos os lados, movimentos sociais se organizam para reumanizar o mundo. A causa antropológica – para seguir com essa linguagem – não seria um tema de longa data conhecido e assumido?
Na verdade, não. E está longe disso. A crença no reconhecimento dessa causa omite o terrível desprezo à sua ordem de grandeza. Essas causas civilizacionais certamente remetem à política, mas a transcendem na aposta por escolhas éticas mais profundas que as opiniões políticas no senso comum do termo. Perguntar-se não sem angústia para onde vai o gênero humano não significa desqualificar a oposição esquerda/direita, e sim desejar um futuro civilizado – para o qual as palavras esquerda ou direita, fortemente desvalorizadas, parecem não contribuir muito. Que humanidade queremos ser? Essa é a questão solene que subjaz na causa antropológica e que está longe de suscitar o pensamento e as iniciativas que exige.
Por exemplo, o fato de a produção de bens e serviços não poder, salvo algum desastre, ser pilotada sem a preocupação superior da produção de pessoas impõe a exigência gritante de pensar a antropologia. Assim como o ecológico, o antropológico deve ser considerado um saber que rege a forma de agir. E está tão longe de ser conhecido em profundidade que ainda prevalece o conceito mistificador: “o homem”. Uma única palavra para dar conta de realidades tão distintas: a espécie biológica Homo sapiens, o gênero humano historicamente evoluído, a coletividade social, o indivíduo (que ademais designa, em francês [e em português], tanto o sexo feminino como o masculino). Há algum outro domínio do saber que se satisfaz com tal primitivismo conceitual? E, no entanto, esse confusionismo verbal é fundamentado por seu uso quase universal, até em autores frequentemente citados, como Nietzsche ou Heidegger. O único pensador moderno que questionou radicalmente essa nociva abstração, o “homem”, foi (será coincidência?) Marx.
Tão urgente quanto a ecológica, a causa antropológica é, por ora, pouco pensada. Situação dramática. Uma tarefa crucial se impõe, portanto, aos que se aventuram em invocá-la: é preciso se arriscar a propor pelo menos um rascunho de temas principais suscetíveis de estruturar o pensamento da humanidade em perigo. O que segue é fruto de uma tentativa de propor esses temas, publicada há três anos com a conclusão de um livro.
O primeiro desvio civilizacional que salta aos olhos é a mercantilização generalizada do humano. O capitalismo instaurou o reino universal da mercadoria. Ao transformar a própria força de trabalho humano em mercadoria, esse sistema coisifica as pessoas e personifica as coisas: Sua Majestade o Capital é considerado o “fornecedor de trabalho” à “mão de obra”, quando na verdade é o salário que é forçado a dar trabalho gratuito ao capitalista. Mas o fato novo cada vez mais devastador é que nada de humano escapa à ditadura das finanças: tudo deve ser feito em função do lucro.
Nesse frenesi mercantil também figura outra tendência mortífera: a desvalorização tendencial de todos os valores. Kant formulou-a em termos morais: reconhecer dignidade ao ser humano é admitir que ele “não tem preço”; que tudo seja submetido a uma avaliação em termos de dinheiro institui uma falta de dignidade geral. O preceito é verdadeiro não apenas no âmbito moral, mas também cognitivo, estético, jurídico: sem valores legítimos que atuem “por si mesmos e sem restrição”, não há mais humanidade civilizada. Esse drama é vivido cotidianamente: a verdade, o justo, o digno são alvos de depreciação e zombaria. A ditadura do rentável conspira para a morte do inestimável, do desinteressado, do gratuito. Estamos no limiar trágico de um mundo onde o ser humano não vale mais nada.1 É o que demonstra a proliferação dos “sem” – sem documentos, sem emprego, sem moradia, sem futuro. Ao lado deles, estão os que “valem ouro” – com salários estratosféricos, empregos dourados, caviar para cachorros. Tanto uns como os outros contribuem para o mesmo fim: a abolição de qualquer escala de valores para instituir um único “valor” que subjuga todos os outros, torna-se autorreferencial e, paradoxalmente, sem valor. Essa liquidação de valores é menos grave que o derretimento das calotas polares?
Sobre essa involução, observa-se um terceiro elemento de gravidade capital: o incontrolável esvaziamento de sentido. Involução nova, pois por muito tempo o capitalismo teve sentido: apesar de explorador, fez a humanidade progredir. Porém, com a irrupção da economia financeira, forma desumanizada e extrema da riqueza, entramos na era do nonsense universal: a acumulação de capital é cada vez mais sem fim nos dois sentidos da palavra fim. O que vivemos é a falência histórica de uma classe monopolista sem qualquer objetivo civilizado e que tenta nos condenar a esse “fim da história”. A morte do sentido – propagada por todas as partes pelo curto prazo selvagem do retorno sobre o investimento – impede qualquer projeto humano de respirar. Essa é a razão pela qual a economia financeira é o fenômeno convulsivo de um “não mundo”, em que o absurdo tende a invadir tudo com seu comparsa, o fanatismo religioso. E essa miopia estrutural se agudiza justamente quando as enormes potencialidades que o gênero humano começa a alcançar exigem a reflexão sobre o futuro, sob pena de morte. Escapando de qualquer domínio coletivo, na carência colossal provocada pela substituição da democracia pela ordem do privado, nossas criações materiais e espirituais tornam-se forças cegas que subjugam e oprimem – alienação sem limites perante a qual qualquer G8 é insignificante. Daí esse sentimento compartilhado de uma humanidade sem piloto que se aproxima inexoravelmente do muro – muro ecológico, tanto quanto antropológico. Se o gênero humano começar a se degenerar, o Homo sapiens terá a mesma sorte. Estamos caminhando ladeira abaixo, prontos para acelerar.
Descivilização sem fronteiras
Mercantilização do humano, desvalorização de valores, desaparecimento do sentido – arrisquemos a expressão: está em curso uma descivilização sem fronteiras. Os horrores sociais e genocidas não contribuem para embelezar os últimos duzentos anos. Mas, com a vitória total do “livre mercado” no fim do século XX, anunciou-se o reino definitivo de uma democracia tranquila. Íamos, contudo, em direção a ditaduras da violência, da qual uma das piores formas é a violência soft. Guerras sangrentas por todos os lados – purificação étnica, pilhagem armada de países pobres, engenhosidade mortal do terrorismo, oficialização da tortura, selvageria sufocante de diversos acontecimentos, tudo o que um filósofo chama de “barbárie de um não mundo globalizado”.2 Ou ainda as violências “limpas” (concorrência desenfreada de empresas, quedas bruscas das bolsas de valores, policiamento e controle sofisticados em empresas e nas cidades), entre as quais está a simbólica – consciências abusadas cotidianamente, fobias, o cinismo dominante. A redução da consciência de classe ao ponto de mulheres e homens não saberem o lugar que ocupam na sociedade é um retrocesso mental catastrófico.
A esses quatro aspectos mais amplos, soma-se um quinto que eleva o perigo ao quadrado: a proscrição sistêmica de alternativas. Proscrição deliberada: a classe dominante já sentiu o sopro do vento revolucionário e faz de tudo para que essa ameaça não retorne – um exemplo é o tratamento dos meios de comunicação destinado à “esquerda da esquerda”. E sobretudo proscrição espontânea pelas lógicas do sistema – que, para Marx, produziria seus próprios destruidores (a massa crescente de proletários e explorados). Otimista histórico hoje considerado bem aventuroso: a revolução dos meios de produção atomiza os salários, a santificação da decisão financeira os desarma, o peso do inexorável os desmoraliza; enfim, uma aspiração imensa de transformar tudo tende a resultar em nada. Impotência repetida em todos os lugares – assim as mentiras da política institucional nutrem, antes de qualquer outra coisa, a abstenção eleitoral. O frenesi do rentável tende, dessa forma, a nos convencer da fatalidade do pior. O próprio sistema cuja palavra-chave é liberdade tomou como máxima a frase de Margaret Thatcher: “Não há alternativa!”. E, de fato, como será possível livrar-se da onipotência dos mercados financeiros e das agências de classificação se a crise colossal de 2008 não produziu nenhuma mudança notável no sistema? O clima atual de fim do Império Romano, porém na era nuclear e da internet, não tem um gostinho de catástrofe terminal?
Seria possível perguntar-se: se o perigo é tão grave como dito aqui, por que é tão menos conhecido que o ecológico? Limito-me a uma observação crucial. Colocar a questão antropológica é incriminar diretamente o abuso estrutural do ser humano pelo capitalismo e ajudar a popularizá-lo. O pensamento ecológico se inscreve em uma cultura diferente: sua ênfase está mais nas formas nocivas de consumo do que na forma desumana de produção, na invasão da tecnociência do que na tirania das taxas de lucros, nas irresponsabilidades sociais do que nos interesses de classe. É mais provável, portanto, que a causa ecológica leve a uma reforma virtuosa do consumo do que à revolução das relações de produção. A ecologia reduzida a esse princípio – a questão do consumo – tende a não representar perigo para a CAC 40, as companhias abertas de melhor performance financeira da França. Ela pode até gerar bons negócios e operações políticas: o “pensamento verde” torna-se, assim, ecumênico. Contudo, o drama ecológico está tão submetido quanto o antropológico ao mortal curto prazo do lucro máximo. As duas causas são indissociáveis: o meio ambiente e o gênero humano não poderão ser salvos um sem o outro. E uma ecologia que não considera o sistema de produção e lucro capitalista não tem futuro. A aposta está em uma “ecologia de esquerda”.
Indignação, premissa de uma política justa
Descrita dessa maneira, a situação atual do gênero humano parece extremamente nefasta. Trata-se de uma visão unilateral? Não seria necessário considerar também as pressuposições objetivas e iniciativas subjetivas empreendidas pela superação indispensável do capitalismo? Sem dúvida alguma.3 Apesar da viva impressão da “fatalidade do pior”, não devemos ceder. É possível inverter a tendência. Mas o sucesso exige elevar a causa antropológica ao mesmo nível de importância da ecológica – e, portanto, construí-la. A iniciativa tem hora marcada. Dos indignados da Europa aos cidadãos norte-americanos que gritam em cólera contra Wall Street, observa-se a impressionante carga ética dos protestos, em ressonância explícita com a dimensão ética das causas civilizacionais defendidas. Algo de profundo está revolvendo a política. Dito à maneira de Jaurès: um pouco de indignação afasta da política; muita, aproxima. Ou pelo menos deveria levar a uma nova forma de ação – não à revolução à moda antiga, com a transformação levada adiante pelas camadas dominantes, mas sim ao engajamento – em todos os níveis – em formas inovadoras de iniciativa e organização comum. O momento pede criatividade e invenção: esse é o preço da derrota da fatalidade do pior. Aliar a mais realista consciência do possível à mais ambiciosa visão do necessário: é isso que deve começar hoje, para a salvaguarda do gênero humano.
Lucien Sève é filósofo, autor de Penser avec Marx aujourd’hui. Tome 2: L’Homme, La Dispute, Paris, 2008.