Chile, o oásis seco
Nenhuma outra nação latino-americana foi dotada de uma bússola tão fielmente alinhada com o bem-estar de uma minoria em detrimento do resto da população
Era início de outubro, poucas semanas antes da explosão social que sacode o Chile em toda a extensão de sua estranha geografia. Uma explosão que, no momento em que estas linhas são escritas, tem um saldo de vinte mortos, centenas de mutilados, milhares de feridos, um número indeterminado de presos, torturas, agressões sexuais e inúmeras atrocidades cometidas pela polícia e pelas Forças Armadas. Justamente antes dessa reviravolta, o presidente chileno, Sebastián Piñera, havia se manifestado sobre as convulsões que varriam o resto da região. Na ocasião, ele apresentou o Chile como um “oásis” de paz e tranquilidade no meio da tempestade.
O que caracterizava esse “oásis” não era a presença de água doce nem de palmeiras com folhagem exuberante, mas as barreiras aparentemente intransponíveis que o cercavam. Os chilenos encontravam-se do lado certo dessa cerca, forjada com uma liga singular: economia neoliberal, ausência de direitos civis e repressão. Os três metais mais vis.
Até que a multidão encobrisse as ruas chilenas nas últimas semanas, os economistas e dirigentes políticos que se agarravam ao mantra “menos Estado, mais liberdade de empreender” como a uma boia explicavam que tinha acontecido um milagre no Chile. Quase por geração espontânea. Eles proferiam a prova irrefutável desse milagre lendo as cifras de crescimento e as estatísticas econômicas aplaudidas pelo FMI e pelo Banco Mundial.
No entanto, esse pequeno paraíso austral não existia para todo o país. Ele ignorava todos os detalhes aparentemente subjetivos, como o direito a um salário justo, a aposentadorias dignas, a uma educação pública de qualidade, a um sistema de saúde digno desse nome. Ele não se interessava nem um pouco pelo direito de os cidadãos decidirem seu futuro, em vez de serem relegados à única função de deglutir as cifras macroeconômicas que o poder se consagra a obrigá-los a engolir.
No dia 11 de setembro de 1973, um golpe de Estado arrebatou a democracia chilena.1 Instalou-se uma ditadura brutal em Santiago, mantida durante dezesseis anos. O projeto que motivou o golpe de Estado não foi restaurar uma ordem ameaçada ou salvar a pátria da ameaça comunista, e sim colocar em prática os preceitos dos gurus do neoliberalismo, conduzidos por Milton Friedman e pela Escola de Chicago. Tratava-se de instaurar um novo tipo de modelo econômico que, por sua vez, daria origem a um novo tipo de sociedade. Um mundo obrigado ao silêncio, onde a precariedade seria a norma, e a ausência de direitos, a regra. Um mundo onde os fuzis se encarregariam de garantir a paz social.
A ditadura civil-militar atingiu seus objetivos. Ela os inscreveu em uma Constituição, cujo texto consagra o modelo econômico instaurado pela força e o transforma em definição do país. Nenhuma outra nação latino-americana foi dotada de uma bússola tão fielmente alinhada com o bem-estar de uma minoria em detrimento do resto da população.
Com a “volta da democracia”, ou melhor, com a “transição chilena para a democracia”, a partir de 1990, as regras do jogo não evoluíram. A Constituição da ditadura foi retocada sem que o fundamental fosse modificado. Todos os governos de centro-esquerda e de direita que a sucederam se dedicaram a manter o sacrossanto modelo econômico, enquanto a precariedade gangrenava partes cada vez mais amplas da sociedade.
Se durante uma refeição você tem duas pessoas e duas fatias de bolo, do ponto de vista estatístico o consumo é de uma fatia de bolo por pessoa – mesmo que uma das duas coma tudo e não deixe nada para a outra. Eis aí o passe de mágica que permite ao Chile apresentar seu modelo como uma vitória: sem ser totalmente uma ditadura nem inteiramente uma democracia, ele garante sua sobrevivência graças à repressão e ao medo.
Um dos homens mais ricos do mundo, Julio Ponce Lerou, ex-genro do ditador Augusto Pinochet e herdeiro, por ordem do general, de um império econômico construído espoliando os chilenos do que lhes pertencia, distribuiu imensas somas de dinheiro para a maioria dos senadores, deputados e ministros, a fim de que eles apoiassem de maneira servil as privatizações. Quando a sociedade o denunciou, o Estado respondeu rapidamente: sugeriu que as críticas a esses fatos levavam a acabar com o “milagre chileno” e organizou a repressão dos manifestantes.
No Chile, a água pertence a algumas multinacionais. Toda a água. A dos rios, dos lagos, das geleiras. Quando pessoas foram à rua para protestar contra essa situação, o Estado deu início ao único diálogo que tolera: o que responde às reivindicações populares por meio de golpes de cassetete.
O mesmo aconteceu quando a sociedade se mobilizou para defender o patrimônio natural ameaçado pelas transnacionais da produção de eletricidade; quando os liceus exigiram uma educação pública de qualidade, livre do monopólio do mercado; ou quando uma grande parte do país defendeu o povo mapuche, sistematicamente oprimido. Todas as vezes, o Estado deu a mesma resposta: reprimiu e afirmou que os que protestavam ameaçavam o milagre econômico chileno.
A paz do oásis chileno não foi para os ares por causa de uma simples alta do preço do tíquete de metrô em Santiago. Ela foi corroída pelas injustiças cometidas em nome das estatísticas macroeconômicas. Pela insolência de ministros que aconselham as pessoas a se levantar mais cedo para economizar o custo de transportes coletivos;2 que, diante da alta do preço do pão, recomendam comprar flores porque, pelo menos, estas não aumentaram de preço; que convidam à organização de reuniões noturnas de bingo na esperança de que se recolham fundos para consertar o telhado das escolas que, com a primeira pancada de chuva, inundam.
A paz do oásis chileno foi para os ares porque não é nada justo que os estudantes terminem seus estudos universitários com uma carga pesada de dívidas que exigirão quinze ou vinte anos para serem quitadas.
A paz do oásis chileno foi para os ares porque o sistema de aposentadoria se encontra nas mãos de empresas vampiras, que investem os fundos que recolhem nos mercados de especulação e fazem as perdas registradas serem pagas pelos aposentados, essas pessoas para as quais elas pagam pensões miseráveis, calculadas com base em uma avaliação mórbida do número de anos que lhes resta de vida.
A paz do oásis chileno foi para os ares porque, no momento de escolher a empresa que vai administrar sua conta de capitalização para a aposentadoria, o trabalhador, o operário ou o microempreendendor devem ter em mente esta advertência das autoridades: “A maior parte da sua aposentadoria dependerá da inteligência de que você der prova colocando o que você poupar nos mercados financeiros”.
A paz do oásis chileno foi para os ares porque um grande número de pessoas começou a dizer “não” à precariedade e se lançou na conquista dos direitos que havia perdido.
Não existe rebelião mais justa e mais democrática do que a que agita o Chile. Os manifestantes exigem uma nova Constituição que represente toda a nação com toda a sua diversidade.
Eles exigem que não haja privatização da água e do mar.
Eles exigem o direito de existir e de serem considerados sujeitos ativos do desenvolvimento do país.
Eles exigem ser tratados como cidadãos, e não como a parte apenas subsistente de um modelo econômico condenado ao fracasso por sua desumanidade.
Não existe rebelião mais justa e mais democrática do que aquela que agita o Chile.
E não existe repressão, por mais dura e criminosa que seja, que possa frear um povo que se levanta.
Luis Sepúlveda é escritor chileno e autor, entre outros livros, de Histoire d’une baleine blanche [História de uma baleia branca], Métailié, Paris, 2019.
1 Ler “Dossier: il y a quarante ans, le coup d’État contre Salvador Allende” [Dossiê: há quarenta anos, o golpe de Estado contra Salvador Allende], Le Monde Diplomatique, set. 2013. (N.E.)
2 Os tíquetes de metrô custam mais barato fora dos horários de rush. (N.E.)