China: a crise da Evergrande e seu contexto
O Ocidente indaga sobre os impactos globais da crise da Evergrande, da desalavancagem das empresas chinesas e das dificuldades do setor imobiliário no país. Mas não há previsão de uma queda significativa na economia chinesa neste ano e no próximo, como constatou o FMI em outubro
O colapso financeiro da Evergrande não é um raio em céu ensolarado, vindo do nada. Provocou impactos na China e no mundo e tem gerado temores e interpretações variadas, mas é um processo em curso e, por isso, a avaliação neste texto é ainda dependente da consolidação dos efeitos. Portanto, não temos qualquer pretensão de esgotar o tema. O mais importante é abrir a mente para observar a China e seus fatos relevantes de modo realista, sempre.
Daqui do Ocidente, de fora da China, as informações são parciais. Como bem alertou Paulo Nogueira Batista Jr., que já viveu na China: “Os chineses não têm o menor respeito pela transparência. Cultuam, ao contrário, a opacidade mais radical”. Só se acrescente que a opacidade é estratagema cultuado entre gregos e troianos.
Além disso, há o viés das análises ou mesmo “torcidas” contrárias, como diz Batista Jr., interessadas em aproveitar esse episódio para atacar as conquistas econômicas da China e seu lugar na ordem internacional. A China é um contraponto estratégico à unipolaridade dos EUA e os adversários querem jogar água no moinho da sinofobia na atual escalada de animosidade estadunidense contra os chineses, inclusive com menções puramente ideológicas a uma inexistente sociedade comunista na China.
A manifestação de divergências fundamentadas, do ponto de vista da esquerda, acerca dos problemas da China não é, nem nunca foi, um endosso ao odioso imperialismo estadunidense. Mas, por outro lado, não cabe subestimar a crise ou mesmo, numa posição de “torcida a favor”, colocá-la como uma oportunidade desejada e benfazeja para o exercício de suposta política de estatização econômica de Xi Jinping e daí saltar para ilações de reafirmação da versão chinesa de “socialismo”. Seria um desserviço confundir socialismo com estatismo, e apenas uma prova de fé considerar a China uma formação socialista, ignorando a prevalência capitalista na sua estrutura econômica. Portanto, seria um equívoco sectário tentar interditar uma avaliação crítica da crise da Evergrande.
Nesta breve exposição, quatro perguntas são incontornáveis.
O que é a Evergrande e em que consiste a sua crise?
A Evergrande é a segunda maior incorporadora imobiliária da China, que é a maior economia do mundo, segundo o critério da paridade de poder de compra (Banco Mundial). Sua sede está em Shenzen, principal polo da indústria eletrônica do país. É uma empresa da construção civil, além de produção de veículos elétricos, participação em capital de banco, entre outros negócios e até time de futebol. Em 2020, a Evergrande registrou 110 bilhões de dólares em vendas e hoje tem 1.300 obras, 200 mil funcionários na sua administração e conta anualmente com impressionantes 3 milhões e 800 mil trabalhadores em seus canteiros de obras (Jim, 2021).
Este gigantismo está vinculado ao fato de que a construção imobiliária tem sido um setor produtivo fundamental para o dinamismo da economia chinesa. Uma elevadíssima parcela de 30% do PIB da China é representada pela construção civil, contra 19% nos Estados Unidos.
Com dívida de mais de US$ 300 bilhões (cerca de 2% do PIB chinês) e imenso estoque de obras inconclusas, a empresa anunciou, em setembro, que não tinha condições de pagar aos seus credores. Tem a maior dívida entre as incorporadoras imobiliárias do mundo. Em 2021, as ações se desvalorizaram em mais de 80% e suas operações foram suspensas na bolsa de Hong Kong. Xu Jiayin, presidente da empresa, já tinha se afastado do cargo em agosto.
O peso da Evergrande gera inevitavelmente consequências adversas, diretas ou indiretas, sobre os variados setores produtivos da China, o comércio internacional e a esfera financeira. Os preços dos imóveis já caíram significativos 30%, e podem declinar ainda mais, porque os valores desses ativos subiram vertiginosamente 50% nas maiores cidades desde 2015, reproduzindo o fenômeno das bolhas de ativos.
A Evergrande, em vez de mera crise de liquidez, tornou-se insolvente, de fato. Falta a formalização, que depende dos prazos dos compromissos sem pagamento. Ademais, trata-se de uma explosiva imbricação produtiva e financeira. Entre bancos e outras instituições financeiras, são quase 300 credores. A grande maioria das dívidas e títulos correlatos estão em yuan, com credores chineses, inclusive o sistema bancário do país, o qual é majoritariamente estatal. Mas, fora dos bancos, há um espraiamento colossal de investidores, dentro e fora da China, que carrearam recursos para a Evergrande através dos opacos e desregulados títulos de “wealth management”, uma operação de “shadow finance”[1], com altas taxas de juros. Tais artes lembram Charles Ponzi.
Ponzi deu nome a algumas espetaculares fraudes financeiras. Ele se enriqueceu com fabulosas pirâmides financeiras em Boston. Promessas de absurdos lucros de até 100% em 90 dias eram anunciadas, mas os rendimentos eram pagos com a atração cada vez mais acelerada de novos investidores.
A descoberta das fraudes, em 1920, levou o golpista à prisão durante 14 anos. Depois, ele imigrou para o Rio de Janeiro e morreu na miséria em 1949. A Evergrande alavancou o seu imenso poder na construção imobiliária através de um sistema automático de endividamento crescente, além das receitas das vendas dos imóveis. O sistema dependia do ingresso de novos e maiores recursos financeiros, configurando uma cadeia em que pagamentos de dívidas antigas exigia a assunção de novas e maiores dívidas.
Assim, nos livros de economia o “Esquema Ponzi” é uma situação financeira de extrema vulnerabilidade, algo recorrente ao capitalismo. Nesse caso, os fluxos de receitas não conseguem cobrir as necessidades de pagamento sequer dos juros e muito menos do principal das dívidas. O economista marxista Michael Roberts não tem dúvida: “o modelo de negócios da Evergrande é essencialmente um Esquema Ponzi”.
Em que contexto, na China e no mundo, ocorre a crise da Evergrande?
O capitalismo vive uma profunda crise e, desde 2007, a recuperação da economia internacional continua frágil, incerta e agravada pela pandemia da Covid-19 e o neoprotecionismo.
Hoje, as dívidas das empresas e dos governos são ainda maiores do que na crise de 2008, revelando a vulnerabilidade da economia em caso de qualquer elevação das taxas de juros. Ao travar a subida dos juros, os principais bancos centrais tentam evitar tanto a piora da estagnação quanto o colapso dos preços dos ativos financeiros, acumulados em escala sem precedentes. A desarticulação das cadeias produtivas, no curso da pandemia da Covid-19, gerou gargalos fortes e duradouros do lado da oferta, pressionando os preços.
A cada mês, para animar a economia, o FED (Banco Central dos EUA) se vê obrigado a desembolsar a gigantesca cifra de US$ 120 bilhões em compras de títulos do Tesouro (US$ 80 bi) e hipotecas (US$ 40 bi). Mensalmente, não se esqueça. Em menos de três meses, o FED absorve uma dívida da magnitude da Evergrande.
Ao mesmo tempo, o FED não pode elevar a taxa de juros, que está negativa desde 2008, apesar de certa elevação dos preços, como deveria esperar a ortodoxia. A projeção do FED para 2021 é de 4,2% de inflação e 4,8% de desemprego. Este último é um índice subestimado, que esconde os empregos precários e degradados. Já o Banco Central Europeu (BCE), pretende juros negativos até 2025, revelando que a economia não sustenta uma alta de juros, apesar da inflação.
Em contraste com esse quadro geral, a China tem demonstrado a resiliência da sua economia, preservando robusto crescimento, apesar da desaceleração relativa desde a década de 2010. Entretanto, a China luta com problemas de capacidade ociosa, persistente endividamento de empresas, dependência tanto de exacerbação de investimentos (como porcentagem do PIB) quanto de importante demanda do mercado mundial, sobretudo dos EUA e Europa, além dos desafios da corrida tecnológica. A pandemia exibiu a dependência global da produção de bens e de equipamentos médicos da China, a oficina do mundo. Diante disso, o neoprotecionismo inflou-se em busca de internalização produtiva nas principais economias, a começar pelos EUA.
Do ponto de vista político, a crise da Evergrande ocorre em um momento de acentuada hostilidade dos Estados Unidos para com a China, cuja ascensão como superpotência é uma ameaça simplesmente inaceitável para os EUA, que não querem perder sua hegemonia na ordem internacional e deflagram uma nova guerra fria.
Agora, com a crise da Evergrande, há sempre os que aproveitam para ataques políticos e ideológicos e para voltar à carga com o surrado proselitismo do neoliberalismo contra a forte regulação estatal. Entretanto, a insistência em suposta autorregulação do mercado é muito contraditória com o discurso de Joe Biden sobre o papel do governo na tentativa de reindustrialização e desenvolvimento tecnológico dentro dos EUA.
Quais são os prováveis desdobramentos da crise, e quais são as respostas do governo chinês?
O Ocidente indaga sobre os impactos globais da crise da Evergrande, da desalavancagem[2] das empresas chinesas e das dificuldades do setor imobiliário no país. Mas não há previsão de uma queda significativa na economia chinesa neste ano e no próximo, como constatou o FMI em outubro.
Apesar da gravidade das repercussões financeiras dentro da China e, secundariamente, nos mercados financeiros internacionais, não se trata de uma repetição dos efeitos da quebra do Banco Lehman Brothers em 2008. O governo chinês, através do Banco Central e seu sistema bancário, tem os instrumentos, inclusive trilhões de reservas internacionais, para conter problemas mais graves. Assim, o risco sistêmico imediato é pequeno.
Há quem avalia que o governo, em suposta campanha contra a chamada ‘expansão desordenada do capital,’ pode deixar a Evergrande quebrar. Mas isso seria acompanhado do ‘salvamento’ dos lesados compradores de imóveis, além de utilizar recursos para bloquear a propagação de efeitos nos mercados financeiros. Por esse raciocínio, Pequim estaria politicamente deixando a Evergrande ‘sangrar’, por certo prazo, antes de intervir, para dar uma lição às outras empresas superendividadas e seus proprietários bilionários.
Afora a ação do governo, o exemplo da Evergrande pode provocar uma contração da oferta de recursos das instituições e investidores para algumas grandes empresas de construção, dificultando a obtenção de capital de giro e refinanciamento de dívidas. Outras grandes incorporadoras já não puderam pagar seus compromissos financeiros.
O governo chinês tem capacidade fiscal para assumir as dívidas decorrentes da inadimplência da Evergrande. Tratar-se-á da conhecida socialização de prejuízos, independentemente das punições que serão aplicadas aos executivos da empresa. Um compromisso do governo de honrar as obrigações da Evergrande perante os bancos ou as empresas públicas é distinto, em seus procedimentos e efeitos sociais, da cobertura de suas dívidas com o setor privado, que engloba investidores, dentro e fora do país, compradores de imóveis e a cadeia de empresas privadas fornecedoras de insumos (para a Evergrande). Assim, a inquietação política e social é preocupante.
Se, por um lado, o governo for excessivo no apoio financeiro, então o combate ao superendividamento restará prejudicado. Se retardar ou oferecer recursos insuficientes, então os mercados financeiros podem ser atingidos em certo grau.
Kenneth Roggof aponta uma taxa de vacância imobiliária de 21%, comprovando a dependência de massivas obras imobiliárias para gerar emprego e crescimento. Michael Roberts vê um esgotamento do processo de urbanização acelerada e Mylène Gaulard vê uma crise de lucratividade na China[3].
Portanto, um desdobramento mais geral pode ser o acréscimo de pressões sobre o modelo de crescimento chinês ou, para alguns, a reorientação do sistema social. Há os que veem esse momento como uma oportunidade para a ação progressista do Estado chinês. Tratar-se-ia de enfraquecer o setor privado e expandir o peso das estatais e do planejamento na China, com repercussões positivas no contínuo dinamismo da economia. Isso estaria associado à reversão das gritantes desigualdades de renda e riqueza, restringindo o espaço econômico e social para os milionários, celebridades etc, mas nada que altere a essência capitalista da economia.
Porém, na verdade, o problema profundo é que o governo precisa enfrentar o persistente e abismal endividamento das empresas e dos governos locais, sem desligar um dos motores tradicionais da expansão econômica chinesa, ou seja, mercados financeiros e endividamentos gigantescos e enraizados na economia e na sociedade.
Como foi possível, no bojo das transformações na China, se chegar à crise da Evergrande?
Como vimos, é preciso reconhecer que não se trata de um caso isolado. A Evergrande é uma representação da prevalência do setor privado na estrutura produtiva da China. As quatro décadas de reformas pró-mercado comandadas pelo Partido-Estado erigiram, laboriosamente, a predominância da propriedade burguesa dos meios de produção nos investimentos, nos empregos, no PIB. Nunca se deve ignorar a realidade econômica tal qual ela é. A Evergrande é um espécime das firmas privadas que alcançaram gigantesca concentração e centralização de capitais favorecidas pelas reformas e políticas econômicas da China nas últimas décadas.
É verdade que o Estado chinês exerce forte regulação sobre as atividades econômicas e dispõe de muitos controles sobre o mercado. Mas também é verdade que tais capacidades institucionais e políticas têm limites, os quais são impostos pela supremacia da lógica, estrutura e dinamismo próprios da base econômica capitalista, em termos reais, concretos, envolvendo os interesses, a vida, o cotidiano, as expectativas na sociedade. De certo modo, houve uma captura da regulação estatal pelo setor privado, porque durante décadas se permitiu o funcionamento do Esquema Ponzi de grandes empresas privadas, como a Evergrande.
As condições materiais das forças produtivas e a organização real da economia estão em consonância com as relações sociais entre as classes. Essa configuração econômica e social não pode ser alheia e apartada do Estado chinês, apesar de sua relativa autonomia. Então, serenamente é preciso reconhecer que a crise da Evergrande existe porque as condições econômicas, sociais, políticas e institucionais permitiram e incentivaram. Isso é óbvio.
A Evergrande é mais uma demonstração da confluência contemporânea e global entre as esferas produtiva e financeira na vida das próprias empresas dedicadas à oferta de bens e serviços, apesar da persistência de lógicas conflitantes entre a produção e finanças. Apesar, tanto da expressão ímpar, inigualável, do setor produtivo na China, quanto da forte regulação estatal dos mercados financeiros, as suas empresas majoritariamente não-financeiras dependem obviamente do acesso aos bancos e aos mercados de capitais, inclusive no exterior. Essa é a base para o reiterado e grave endividamento dessas firmas produtivas.
Como dizia Marx, as bolsas de valores e o sistema de crédito são alavancas poderosas para que as empresas (“não-financeiras”) alcancem o nível de centralização de capitais requerido à concorrência e às escalas exigidas pelas inovações. É o que vemos na Evergrande e nos mercados financeiros na China.
Nem só de produção se faz uma China superpoderosa. Michael Roberts aponta uma urbanização via empresas e propriedades privadas que se tornaram aplicações financeiras. A lógica da financeirização do capitalismo, sem prejuízo da exuberante produção, está presente na China de modo explosivo e o mercado financeiro alcança hoje 4,7 vezes o PIB.
Quanto aos imóveis, Roberts concluiu: “Essa ‘financeirização’ começou no final da década de 1990”, quando o governo decidiu “que as empresas estatais vendessem seus ativos residenciais para seus funcionários – uma venda do tipo praticada por Thatcher na Inglaterra, deixando a habitação nas mãos do setor privado”. Vale lembrar, por contraste, que no sistema de seguridade social da “Era Mao”, chamado de “Tigela de arroz de ferro”, as empresas eram responsáveis por habitação, previdência e serviços de saúde e educação dos empregados.
Jorge Almeida é professor de Ciência Política e dos programas de pós graduação em Ciências Sociais e Ciência Política da UFBA. Tem pós-doutorado como Visiting Scholar na SOAS (The School of Oriental and African Studies)-University of London.
Renildo Souza é professor dos programas de pós-graduação em Relações Internacionais e Economia da UFBA. Autor de “Estado e Capital na China”, EDUFBA, 2018.
[1] Sistema financeiro “da sombra”, “informal” no sentido de fora de regulamentações.
[2] Redução de endividamento, implicando menos investimentos e crescimento para priorizar o pagamento de dívidas.
[3] Gaulard, M. (2018). The Chinese Economic Crisis: A Marxist Approach. In Carchedi, G, & Roberts, M. World in Crisis: A Global Analysis of Marx’s Law of Profitability. Chicago: Haymarket Books, pp. 279-294.