Cidades amigáveis
Precisamos, com urgência, repensar nossas políticas públicas, buscando uma transição confortável para novos paradigmas de produção e consumo e um claro enfrentamento das consequências das mudanças climáticas em cursoManoel Ribeiro
As cidades brasileiras estão sendo preparadas para a nova situação global de aquecimento? Estão em pauta propostas que diminuam nossa colaboração nesse processo suicida ou, ao menos, medidas mitigadoras de suas consequências? Infelizmente, a resposta é não.
As isenções fiscais para estimular a compra de automóveis, os financiamentos do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) à construção de termoelétricas, a euforia pela descoberta de novas reservas petrolíferas no Pré-sal e a expansão das cidades rumo às periferias estão justamente no caminho oposto.
Precisamos, com urgência, repensar nossas políticas públicas, buscando uma transição confortável para novos paradigmas de produção e consumo e um claro enfrentamento das consequências das mudanças climáticas em curso.
Em um país como o nosso, com imensas desigualdades sociais e ansioso por desfrutar suas atuais oportunidades de crescimento econômico, fosse isso fácil, o grande desafio seria fazê-lo de maneira justa, participativa e economicamente viável.
Digo desafio porque o nó da questão está no fato de a economia globalizada depender do crescimento contínuo, da consequente exploração acelerada de recursos naturais e sua conversão em bens efêmeros de consumo, gerando enormes quantidades de sobras – poluição atmosférica, lixo e dejetos industriais tóxicos.
E por que devemos centrar preocupações nesse assunto? Porque nesse limiar de um novo milênio, nossas cidades acolhem mais de 70% da população brasileira e passam a se constituir como um locus privilegiado de mudanças socioculturais.
Diante do quadro de instabilidade climática e ambiental, a tarefa que se apresenta é a de envolver lideranças e a população em geral na transformação das nossas cidades em organismos cuja regulação e controle sejam feitos por cidadãos conscientes, capazes de não apenas aprimorar o uso de seus recursos internos, mas também preocupar-se com as regiões distantes, de onde se drenam recursos, e também com a biosfera – oceanos e atmosfera, onde o que é rejeitado é lançado.
Duas das aparentes vantagens do atual quadro econômico estão justamente entre os maiores obstáculos às mudanças indispensáveis devemos promover. Primeiro, o custo relativamente baixo dos combustíveis fósseis. Segundo, a velocidade dos deslocamentos, que tornaram as distâncias irrelevantes, permitindo com que as cidades se expandam além de suas fronteiras físicas. Alimentos e produtos podem vir de longe e o lixo, ser depositado em municípios distantes ou até mesmo exportado para outros países1.
No mesmo sentido, há o consumismo desenfreado, alimentado pela obsolescência planejada, por quebra programada, por avanços tecnológicos ou mesmo por mudanças estéticas.
Pegada ecológica
Mas também existem notícias boas no quadro da consciência ambiental. O conceito de “pegada ecológica”, por exemplo, retrata muito bem o caminho a que essas práticas conduzem e pode ser uma ferramenta importante nessa tarefa de prolongar as condições favoráveis à vida na Terra. O conceito expõe o absurdo do nosso modo de vida: mede a superfície de terreno que deve ser usada para suprir as necessidades de alimentos, matérias-primas e energia de uma determinada cidade, e a área utilizada para absorver seu output de lixo.
Londres, por exemplo, conta com uma população de 7 milhões de pessoas sobre uma área de 158 mil ha (1.580.000 km2). Sua “pegada ecológica”, atinge 125 vezes esse território, ou seja 87% da superfície da Inglaterra, para uma população equivalente a 12% do total dos habitantes do país.
As medições de pegada ecológica também podem ser aplicadas a empresas, bairros, ruas, condomínios e famílias, ajudando a formar uma consciência crítica e apoiando mudanças nos hábitos de consumo e trato do lixo, fomentando a redução voluntária das emissões de gazes de efeito estufa.
No caso das cidades, a alternativa mais plausível é trabalhar a transformação do metabolismo linear vigente (recursos entram de um lado e saem dejetos do outro) para um metabolismo circular, onde a reciclagem tenha um papel fundamental.
Refiro-me a tecnologias que viabilizem a transformação de lixo e esgotos em fertilizantes; a purificação das águas; a reciclagem de metais, plásticos e papéis; a retomada do hábito de concertar eletrodomésticos e veículos, em vez de descartá-los.
Essas medidas, combinadas com políticas públicas extra-fiscais (taxação sobre emissões de gazes de efeito estufa, sobre dejetos industriais não tratados, sobre os custos ambientais de qualquer empreendimento ou ciclo de produção), e iniciativas empresariais inovadoras (tecnologias de tratamento de lixo industrial e cadeias de empresas com uso circular de resíduos materiais) deverão estar em pauta nos próximos anos.
Do ponto de vista físico, as cidades terão que ser mais compactas e densas, de modo a rentabilizar sua infraestrutura; poli-nucleadas e com uso diversificado do espaço, acolhendo inúmeras atividades econômicas e sociais e minimizando, assim, a necessidade de deslocamento. As áreas públicas, equipamentos e transportes deverão ser mais bem distribuídos sobre seus respectivos territórios, de modo a diminuir as necessidades de aquisição privada de bens e serviços. Matrizes energéticas que considerem a produção familiar de energia e as pequenas hidrelétricas – bem localizadas, de menor custo e impacto ambiental reduzido – são alguns dos aspectos que precisamos considerar2.
Mudanças radicais
Resumindo: chegou a hora mudarmos radicalmente o nosso estilo de vida e o próprio conceito de desenvolvimento – expresso somente por um indicador, o PIB (Produto Interno Bruto), que reflete apenas o tamanho do mercado de transações comerciais.
É preciso estabelecer um novo indicador de desenvolvimento, que deverá incluir dados sobre saúde pública, distribuição de renda, mobilidade social, escolaridade da população, postos de trabalho, taxas de criminalidade, mortalidade infantil, poluição, condições habitacionais, utilização de tecnologias limpas etc., que é o que realmente interessa à vida das pessoas.
Mas ainda que, superando resistências e dificuldades, consigamos implementar medidas desse tipo, temos que nos preparar para enfrentar algumas consequências dessas mudanças, que já estão em curso e são irreversíveis.
O aumento da velocidade de derretimento das geleiras, responsável pela diminuição em 50% da calota Ártica em relação há 50 anos, repercutirá no nível dos mares e alagará e salinizará as várzeas férteis dos estuários dos rios. No mesmo sentido, as alterações na intensidade e localização dos regimes de chuvas e secas terão impacto direto na produção de alimentos.
Outra repercussão desse cenário, já verificável no campo geopolítico, é a iniciativa de países importadores de grãos de comprar terras fora de suas fronteiras nacionais, para garantir o suprimento de alimentos, ração animal ou produção de biocombustível. Esse fato muitas vezes põe lado a lado produção agrária intensiva para exportação e agricultura familiar sem incentivos ou populações locais famintas.3
Essas perspectivas sombrias, antes mesmo do meio ambiente se tornar claramente hostil à vida, trazem para o primeiro plano a crise social que está sendo gestada, com o recrudescimento das migrações do campo para a cidade, das cidades costeiras para as interioranas e entre países, num quadro de uma previsível elevação nos custos dos alimentos e crescentes restrições no acesso à água potável.
Por tudo isso, fica claro que precisamos debater e repensar quais são realmente nossas necessidades básicas e como conciliar a escassez de recursos com o seu suprimento.
Desse debate, seguramente vão emergir sugestões de medidas que, combinando regulamentação, repressão e estímulos, contribuirão para implementar uma série de mudanças, em mais uma grande alteração do paradigma econômico. Tal alteração será de escala e complexidade comparável àquela quando ocorreu a passagem do nomadismo ao cultivo da terra há milhões de anos, ou à que criou o mundo da revolução industrial no século XIX – mundo este em que ainda vivemos, mas que se mostrou incompatível com o planeta.
Manoel Ribeiro é arquiteto e urbanista.