Ciência e teorias da conspiração em tempos de pandemia
A desconfiança e falta de familiaridade com procedimentos científicos pode ser tamanha, que muitas vezes damos asas à imaginação, e nossa insegurança interior nos leva a acreditar em certas “cosmologias ocultas”
Desconcertado por uma crise sanitária sem precedentes, o ano de 2020 renovou o sentido de imponderável. Até há pouco, não se imaginava que o mundo seria tragado por uma espiral de incertezas que colocaria em xeque muitas de nossas convicções, necessidades e vontades. Como em outros momentos marcados por perturbação e perplexidade, buscamos explicações e orientações que nos guiem por essas águas turbulentas.
Enquanto seres humanos, todos temos necessidades que vão além das exigências fisiológicas, como a de nos alimentar ou descansar, por exemplo. Também temos o desejo de sermos aceitos por nossos pares e fazer parte de uma comunidade, da mesma maneira que ansiamos por segurança – não somente em uma conotação pragmática de estarmos protegidos contra malefícios que nos podem ser causados, mas no seu sentido mais abrangente, traduzido por solidez no presente e confiança no futuro.
Os seres humanos se inclinam a uma busca por certezas e explicações sobre o mundo e seus fenômenos complexos e imprevisíveis. Se há algo em comum entre os mais diversos sistemas de crenças, é a tentativa de responder qual o sentido da vida e como devemos interpretar e lidar com os inevitáveis infortúnios que rodeiam a nossa breve e frágil existência. A humanidade sempre tendeu a desejar minimamente que as coisas estejam sob controle e, quando escapam a ele, é comum associar a mudança de curso a forças e entidades sobre-humanas, manifestações espirituais ou à ação de deuses. Isso é legítimo e autêntico, uma vez que – e a modernidade possibilitou essa separação[1] – a dimensão religiosa pode ser encarada como uma das formas possíveis de conhecimento que desenvolvemos e às quais temos acesso enquanto participantes de uma cultura.
Até há alguns séculos, sociedades e comunidades tradicionais do chamado Ocidente definiam e aceitavam, predominantemente, a origem das doenças e das epidemias a partir de explicações religiosas ou míticas. O advento da Revolução Científica e do Iluminismo, nos séculos XVII e XVIII, respectivamente, foram dois pontos de inflexão nessa longa relação entre o homem e o mundo que o cerca. Daí por diante, a razão se tornou a ferramenta por excelência para decifrar a realidade.[2] Com tal instrumento em mãos, a ciência desenvolveu um método original cujos resultados, ofertados por sucessivas ondas de descobertas e aprimoramentos técnicos, são surpreendentes.
Em pouco tempo, o racionalismo deixou de ser um privilégio de círculos intelectuais restritos para ocupar parte do sistema educacional, que se universalizou na esteira da afirmação dos Estados nacionais. A antiga crença de que forças externas controlavam tudo o que ocorria no cotidiano dos homens perdeu o vigor de outrora e ganhou um concorrente de peso. Não que o pensamento religioso precisasse ser eliminado, muito pelo contrário, mas agora o discurso científico também dava as cartas na hora de explicar os mais variados fenômenos naturais. Um dos reflexos dessa crescente racionalização foi a tendência a delegar à esfera política parte relevante da responsabilidade na área da saúde, com políticas públicas e agências reguladoras. Por motivos óbvios, isso não impede que, diante de uma calamidade, muitos possam, de forma individual e livre, se apoiar nas explicações religiosas que lhes convenham.
A ciência trabalha com probabilidades e aponta caminhos sobre “verdades provisórias”. A entrega de certezas perenes seria negar seu próprio método, pautado no ceticismo, no falibilismo e na verificação empírica. Ao invés de oráculos, mitos e tradições, as suas afirmações são estruturadas a partir de hipóteses e de teorias que buscam se sustentar na experiência e na observação dos fatos, mas todas elas refutáveis em caso de fortes evidências que as contradigam. Eis o trunfo da ciência: ser um sistema aberto de pensamento e de debate, no qual cada conclusão deve ser devidamente avalizada por especialistas daquela área. Para não trair seus próprios princípios, ela deve evitar ao máximo os argumentos de autoridade, daí sua mobilidade e atualização constantes.[3]
Por outro lado, a ciência é fruto do pensar e agir humanos. O seu desenvolvimento está sujeito a interferências políticas e possui, evidentemente, historicidade, refletindo seu contexto de produção. Ela também avança a partir de interesses e pode ser instrumentalizada para os mais diversos fins – incluindo a dominação e a destruição, sendo exemplos eloquentes o colonialismo e as guerras mundiais. Por isso, seria errôneo afirmar que o fazer científico é neutro, mesmo do ponto de vista das escolhas e de certas inclinações teóricas. Seja como for, o conhecimento científico estará sempre aberto à crítica e à contestação, desde que estas estejam calcadas, por sua vez, em afirmações submetidas ao mesmo e rigoroso método.
O papel da ciência na luta contra a Covid-19
O maior desafio da atualidade envolve a luta contra um ser microscópico. A relação entre as pessoas e a Covid-19 carece, obviamente, de contato empírico primário. Essa ausência não anula os efeitos da doença que o ser invisível provoca, mas torna necessário acreditar no que dizem os especialistas e a comunidade científica, caso se queira conhecer os melhores meios para evitar o contágio e combater o vírus.
A desconfiança e falta de familiaridade com procedimentos científicos pode ser tamanha, que muitas vezes damos asas à imaginação, e nossa insegurança interior nos leva a acreditar em certas “cosmologias ocultas”[4] – sistemas de crença em um mundo movido por segredo e poderes invisíveis – que podem tomar a forma de teorias conspiratórias. Enquanto são apenas mera curiosidade, essas “teorias” podem ser divertidas e interessantes, mas podem se tornar desastrosas quando aderidas em massa. Quando se tornam plataformas de ação política de grupos poderosos ou de governos, no entanto, o resultado pode tomar proporções catastróficas.
De fato, epidemias são fenômenos que se iniciam sem que saibamos com exatidão onde e sob quais circunstâncias, fugindo do controle de cada indivíduo. Essa ausência de domínio sobre os fatos se choca com o impulso para entender o que está ocorrendo e com o nosso anseio por ter um mínimo de gerência sobre o que se passa ao nosso redor. É na tentativa de resolver esse conflito que muitas pessoas se apegam a teorias conspiratórias.
Fechadas em si mesmas, elas rechaçam automaticamente o que não se encaixa em suas premissas, tornando-se inflexíveis e difíceis de refutar. O negacionismo, por sua vez, quase sempre emerge como um de seus subprodutos. Devido à sua natureza de caráter exclusivista, essas “teorias” dão – até certo ponto – a certeza presente na crença religiosa, porém combinando-a com um verniz racional e pseudocientífico, o que lhes outorga um status de aparente verdade inconteste. Para tanto, basta observar a forma como os “terraplanistas” constroem seus argumentos.
As teorias conspiratórias parecem preencher lacunas explanatórias e epistêmicas deixadas pelo desmantelamento de comunidades morais e pela crise de representação, entre outras consequências do processo de modernização e urbanização crescentes. Se, por um lado, o legado iluminista trouxe a noção de que se pode jogar luz sobre qualquer objeto ou assunto e de que todo fenômeno pode ser colocado sob uma ótica transparente, resta a desconfiança e a suspeição sobre os mecanismos ocultos que regem o mundo. Isso porque, ainda que a modernidade tenha trazido os telescópios que “aproximam” os astros do Universo, ou os microscópios que “agigantam” as ocultas criaturas invisíveis, trata-se de uma ilusão tentar levar esses mecanismos de transparência e suas medidas de exatidão para as relações humanas e a política amplificada. O máximo que se consegue, ao invés da transparência, é aquilo que Jean e John Comaroff chamam de “visão translúcida”.[5]
De sua parte, a explicação religiosa – que não deve ser contraposta ao pensamento científico, dado que se tratam de modos distintos de conhecimento e perfeitamente coabitáveis – é fundamental para levar conforto, esperança e unidade às pessoas. Mas é imprescindível que as ideias religiosas – de todo e qualquer sistema confessional – permaneçam distanciadas do campo de atuação das políticas públicas, e não devem, de forma alguma, tomar a dianteira nas deliberações que envolvam necessidades técnicas para uma sociedade pluriétnica, plurirreligiosa e cujo Estado é oficialmente laico. Em outras palavras, nenhuma religião específica deveria assumir posição hegemônica a ponto de suprimir outras narrativas, sejam ela também religiosas ou científicas.
Quanto a isso, o posicionamento da Igreja Católica em face da Covid-19 foi digno de nota, com direito à troca de mensagens elogiosas entre o Papa Francisco e Tedros Adhanom Ghebreyesus (diretor-geral da OMS). A realização de missas virtuais, a adesão à quarentena, o apelo do Vaticano para que os fiéis obedecessem às orientações da comunidade científica e a contribuição da Santa Sé com o Fundo de Emergência da OMS[6] são provas de que ciência e religião podem não só coexistir, mas devem cooperar para alcançar objetivos comuns e melhorar a vida das pessoas.
O esforço da comunidade científica já deixou claro que a obtenção da vacina é apenas questão de tempo. Até lá, precisamos continuar atentos ao que dizem os especialistas, seguir suas orientações e tratar com seriedade as pesquisas, respeitando o seu ritmo peculiar. O pensamento religioso, por sua vez, continuará a existir em sua esfera legítima e seguirá com a sua relevância de sempre, fornecendo alento, esperança e espírito de união.
Quanto às teorias da conspiração, é preciso – o quanto antes – envidar esforços no sentido de desautorizá-las e retirar-lhes espaço do debate público, especialmente aquelas que têm possibilidades reais de impacto político e sanitário. Essa luta, implacável e complexa, definirá como será construído o mundo pós-pandemia.
Leandro Gavião é doutor em História Política pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, com doutorado sanduíche na Université Sorbonne Nouvelle e professor da Universidade Católica de Petrópolis e da pós-graduação do curso Clio/Damasio.
Daniel Martinez de Oliveira é doutorando em Antropologia pela Universidade Federal Fluminense e antropólogo do Museu da República/Palácio Rio Negro (IBRAM).
[1] ASAD, Talal. The idea of an Anthropology of Islam. Washington: Georgetown University, 1986.
[2] TODOROV, Tzvetan. L’Esprit des Lumières. Paris: Éditions Robert Laffont, 2006.
[3] PINKER, Steven. O novo Iluminismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
[4] SANDERS, Todd; WEST, Harry. (Eds.). Transparency and conspiracy: Ethnographies of suspicion in the New World Order. Durham; Londres: Duke University Press, 2003.
[5] COMAROFF, Jean; COMAROFF, John. “Transparent Fictions; or The Conspiracies of a Liberal Imagination: An Afterword”, In SANDERS, T.; WEST, H. (Eds.). Transparency and conspiracy: Ethnographies of suspicion in the New World Order. Durham; Londres: Duke University Press, 2003.
[6] No sentido do fornecimento de equipamentos de proteção aos agentes de saúde envolvidos na luta contra a Covid-19.