Cioran: entre o pessimismo e o fanatismo na política
A atmosfera de idolatria mostra um sintoma que revela nos sujeitos um desejo insaciável de dominação, transfigurado na política através da tirania, dos abusos de poder e do autoritarismo, características de grupos autoritários e radicais extremistas
No Brasil pouco ainda se fala sobre o filósofo romeno, Emil Cioran, nascido em 1911, em Rasinari, comuna romena localizada no distrito de Sibiu. O escritor e filósofo foi radicado posteriormente na França, onde ganhou fama nos círculos intelectuais, além de ser conhecido como “rei do pessimismo”, chamado assim por um jornal britânico da época. Seu pai, Emilian Cioran, era um padre ortodoxo romeno, enquanto a mãe, Elvira Cioran, era de Veneţia de Jos. Da linhagem materna pertencia a uma pequena família de nobres na Transilvânia, pois seu avô materno era tabelião e ganhou o título de barão pelas autoridades imperiais.

Nos tempos de juventude se tornou apoiador do nazismo, após ter sido condecorado com uma bolsa de estudos em Berlim, assim como nutriu simpatia pelo fascismo italiano. Não muito tempo depois renega tal admiração da sua juventude, criticando os movimentos de ultradireita e os fascistas, além de tecer, durante toda a sua vida um mea culpa por seu envolvimento, denominando-os como “seitas doentias”, e referia a essa parte triste de sua vida como “doença da juventude”. Por esse motivo, supomos, a política nunca foi objeto direto de seus escritos, porém mesmo tratando de inúmeros temas, não deixou de alertar sobre as problemáticas que englobam os sujeitos como um todo.
Agregando o pessimismo de Schopenhauer, com o ceticismo de Montaigne e o niilismo de Nietzsche, não teve medo da represália acadêmica ao discorrer sobre os temas da morte, da obsessão, da alienação e do fanatismo.
O assunto da alienação, recorrente em diferentes pensadores e perspectivas como Karl Marx, Jean-Paul Sartre e Albert Camus, retratam um ambiente de tortura e tormento, segundo Cioran, incitado pelas narrativas religiosas do pecado original e da obsessão pelo absoluto, como também pelo pragmatismo político observado no autoritarismo presente em diversos cantos da Europa. O filósofo viveu de perto o surgimento e a consolidação dos totalitarismos e as catástrofes causadas pelas crenças ideológicas do século passado, evidentemente, herdou a experiência sombria de tais eventos. Com efeito, sua filosofia é profundamente marcada por uma escrita trágico-poética, o que traduz bem seu pessimismo e desencantamento quase mórbidos, de quem assistiu aos horrores nefastos provocados pelos mais belos devaneios.
Pessimismo político e fanatismo
O pessimismo no que diz respeito à política, parte da compreensão de que as ideias, por si, deveriam estimular uma posição de tolerância entre as pessoas, de harmonia e bem-estar. Entretanto, movido pela animosidade e paixão, o ser humano projeta a si mesmo, transformando a ideia em crença, revelando um fundo bestial de entusiasmo através do proselitismo, da intransigência ideológica e da intolerância. Na prática, esse movimento é traduzido numa busca contínua pela hegemonia política, religiosa e ideológica, por parte do intolerante, descartando qualquer manifestação oposta ou contrária, não admitindo ideias que sejam contrárias às suas crenças subjetivas. Os radicais, em sua maioria, assumem uma postura excludente e fundamentalista, ligados ou não à religiosidade, mas estimuladas por grupos elitistas e burgueses da sociedade, que enxergam no caos da desordem a oportunidade de pôr em prática seus desejos de dominação.
A construção do fanatismo depende de enredos e alegorias apocalípticas que só teriam resolução a partir do surgimento de um mito ou herói. Ou seja, para se construir um “salvador da pátria” é necessário que se crie o caos, a instabilidade, o terror e o medo. Dentro desse contexto criado pela classe dominante surge o “messias”, que na verdade é o fanático por excelência ou aquele que dissemina o fanatismo por intermédio do controle e do autoritarismo. Através disso, não é difícil observar e apontar a semelhança dos movimentos autoritários e fascistas que de ontem e de hoje, além de criarem um cenário de extrema vulnerabilidade se colocam como a única alternativa cabível e válida.
Emil Cioran, em seus Syllogismes de l’amerture (em português, Silogismos da Amargura), afirma que “quando a ralé adota um mito, conte com um massacre ou, pior ainda, com uma nova religião”. Essa atmosfera de idolatria mostra um sintoma que revela nos sujeitos um desejo insaciável de dominação, transfigurado na política através da tirania, dos abusos de poder e do autoritarismo, características de grupos autoritários e radicais extremistas. A grande vitória da burguesia, segundo o autor, provém do fracasso do outro, um espetáculo de uma grande ideia desfigurada. O pessimismo inerente ao pensamento do autor não é um pedido de discipulado, ou um clamor por seguidores e arautos, mas um alerta para as sociedades não caírem nas amarras do obscurantismo e da tirania. Se por um lado, para muitos a utopia de um mundo harmonioso e feliz é posto como referência e ideal, pelo outro, Cioran, observa as tendências de estagnação prefiguradas pelas mesmas utopias, que caem em um idealismo abstrato e se acomodam, não contestam e nem buscam transformar a realidade.
Intolerância e fanatismo
Emil Cioran foi suscitado como teórico que fundamenta a discussão sobre o fanatismo, relacionando o modus operandi dos regimes autoritários com o desvio da racionalidade, que seria superado através da prática cética – ação que evitaria os apegos emotivos e irracionais sobre ideologias destrutivas. A postura racional, segundo o autor, não suscita o apelo por uma falsa alternativa política, mas reforça a necessidade de tolerância entre os indivíduos para que o fanatismo político e religioso não ganhe força na sociedade.
Na prática política contemporânea notamos o discurso de segmentos reacionários da nossa sociedade, dirigidos em especial às minorias e opositores, carregado de intransigência e proselitismo. Esses grupos ultrarradicais edificam suas crenças no terreno dogmático, similar à religiosidade fanática, se fecham em círculos ou panelas com pessoas similar e com as mesmas tendências de pensamento, para que sejam validados seus preconceitos e visões deturpadas sobre o mundo.
A intolerância que vemos no mundo atual, pode ser definida como a ação que o fanatismo estimula e pratica em todas as suas declinações, tendo como alvo quem não se enquadra em seus devaneios e alucinações autoritárias. Por isso, segundo o autor franco-romeno, qualquer sujeito que abraça o proselitismo e desenvolve um fanatismo ideológico naturalmente se transforma num intolerante – e também num idólatra.
Um dos conselhos retirados de suas obras atravessa gerações: sempre que um fanatismo declina, outro surge em seu lugar. Observamos atentamente que o retorno de tendências fascistas nos principais postos governamentais, em grandes países no mundo, é a prova da existência do perigo constante que vivemos. Por conta disso, a humanidade pode caminhar para sua própria destruição, tornando-se mercadoria de si mesma, ou seja, vendendo sua liberdade e seus direitos, através da simpatia e do apoio por grupos extremistas. Numa leitura contemporânea, notamos o capitalismo, como um “fanatismo econômico” ou “personificação material e valorativo do fanatismo”, onde todos são expostos a todo instante, sofrendo as conseqüências da disparidade social e da desigualdade. Entretanto, não esqueçamos que os ideais que flertam com o fascismo já encabeçam diversos países ao redor do mundo, através de seus chefes de Estado, possuindo em comum a servidão irrestrita ao neoliberalismo e ao imperialismo. O neoliberalismo, dessa forma, é a evolução do fanatismo e da subserviência dos intolerantes, personificada num modelo econômico excludente, desigual e injusto.
Os pessimistas costumam ser bons profetas. Emil Cioran previa um pequeno declínio dos ideais políticos, de modo geral, através da epidemia do fanatismo que já se vivia naqueles anos, o retorno das ideais autoritárias é a prova de que o fanatismo e a intolerância não são vencidos somente com a ajuda do tempo. É preciso muito mais que notas de repúdio e camisas antifascistas.
Railson Barboza é bacharel em Filosofia (PUC-Rio) e doutorando e mestre em Política Social (UFF).