Clubes de futebol: iguais, mas não muito
De 8 de junho a 1º de julho, a Eurocopa 2012, organizada pela Polônia e pela Ucrânia, verá o confronto de craques de grandes clubes. Superendividados, os times foram chamados pela Uefa a se endireitar. Porém, o “fair play financeiro” recentemente decretado pode de fato preocupar as equipes de elite do continente?David Garcia
Março de 2003. Em um congresso em Budapeste, a União das Associações Europeias de Futebol (Uefa, na sigla em inglês), a autoridade gestora da bola na Europa, satirizou o lobby dos grandes clubes, dos quais ela apontou a sede desenfreada pelo podere pelos lucros: “O futebol é sinônimo de equidade, oportunidade, paixão e diversidade”, afirma uma resolução. “Este não é um esporte fechado, do qual apenas os ricos e poderosos podem participar. A Uefa não vai tolerar uma estrutura ou um sistema em que clubes menores, pequenas associações e seus apoiadores não tenham nenhuma chance de realizar seus sonhos. Isso não é compatível com os ideais da Uefa, da Europa e do futebol.”
Abril de 2012. Os riquíssimos clubes espanhóis dominam a Europa do futebol. Dos oito classificados para as semifinais da Liga dos Campeões e da Liga Europa (as duas competições organizadas pela Uefa), contam-se Barcelona, Real Madrid e Atlético de Madrid, Valencia e Athletic Bilbao. Um sucesso esportivo alcançado graças a um gigantesco tratamento de favores fiscais.
Em um país onde mais de um em cada cinco trabalhadores procura emprego, a leniência do governo espanhol de direita – e do anterior, liderado pelo socialista José Luis Rodríguez Zapatero –, sem nenhuma pressa para recuperar os 752 milhões de euros atrasados acumulados pelos clubes profissionais junto ao Tesouro (sem contar os cerca de 250 milhões de euros que eles devem à Previdência Social),1 é grande.
“A competição exige paridade e igualdade entre os participantes. As equipes que não pagam não devem ser autorizadas a competir”,2 afirma Manuel Pezzi, porta-voz do Partido Socialista Operário Espanhol (Psoe), na introdução de um projeto de lei destinado a impedir que maus contribuintes possam competir.
“Igualdade entre os concorrentes?” Gianni Infantino, secretário-geral da Uefa, não esconde o ceticismo. “A igualdade absoluta é uma invenção da imaginação”, argumenta. “Em contrapartida, o nível de déficit de alguns clubes distorce o resultado das competições.” No final de 2010, as equipes europeias da primeira divisão registravam perdas de 1,6 bilhão de euros. A equação é simples: quanto mais um clube prospera, mais condições tem de atrair jogadores que lhe permitirão acumular títulos, reduzindo ao mínimo a “gloriosa incerteza” que influenciaria o resultado de eventos desportivos.
Triunfalmente reeleito presidente da Uefa em março de 2011, o francês Michel Platini prometeu condicionar o acesso às copas da Europa ao respeito a um “fair play financeiro”. “Temos de ensinar os clubes a se tornarem normais, a não gastarem o dinheiro que não têm. Porque, se nós fizermos isso, vamos para a prisão; porém, se os clubes de futebol fazem isso, eles ganham troféus com mais facilidade, e isso não é normal”,3 justificou, em Roma.
Sanções aleatórias
Fim dos favores especiais? Não é bem assim. Se o regulamento da Uefa sobre o fair play financeiro permite um déficit anual de 5 milhões de euros, ele congrega tolerâncias que limitam seu alcance. Assim, nos dois primeiros controles, a serem exercidos em 2013 e 2014, um resultado negativo de 45 milhões de euros será aceito; uma diferença a ser reduzida para 30 milhões ao longo das próximas três temporadas. O Comitê Executivo da Uefa ainda não se pronunciou sobre o teto autorizado a partir de 2018.
Presidente do painel de controle do fair play financeiro, o ex-primeiro-ministro belga Jean-Luc Dehaene adverte: “Desempenhamos um papel de acompanhamento dos clubes, mas se estes últimos não seguirem as regras, vamos aplicar penalidades, como a imposta ao [espanhol] Mallorca, cuja exclusão da Liga Europa em 2010 foi por nós solicitada, mesmo antes da entrada em vigor do fair play financeiro”.
A exclusão do Atlético Baleares, clube da segunda divisão do campeonato espanhol, quase não causou rebuliço.4 Mas a Uefa ousará mexer com os grandes da Europa, como o Real Madrid, o Manchester United e o Bayern de Munique? Prudente, Platini evita se pronunciar claramente. “Você acha que, vários anos atrás, a direção nacional de controle de gestão iria rebaixar clubes como o Bordeaux [em 1991] e o Olympique de Marselha [1994]?”,5 perguntava alguns dias antes de sua reeleição, em 22 de março de 2011.
Equivalente da Direção Nacional do Controle de Gestão (DNCG) francesa, o painel de controle financeiro da Uefa teria, portanto, o poder de excluir os clubes mais ricos da lucrativa Liga dos Campeões. “Se a DNCG aplicasse ao pé da letra os regulamentos, o Paris Saint-Germain [PSG] não estaria mais na primeira divisão. Mas a DNCG aplica sanções de maneira aleatória”, afirma o economista do esporte Wladimir Andreff. O PSG, de propriedade do emir do Catar, tem boas chances de assumir um déficit de 100 milhões de euros no final da temporada 2011-2012… “É possível que os clubes muito bons, aqueles que fazem a reputação da Liga dos Campeões, não disputem a prova principal?”, pergunta-se Andreff. Para Pape Diouf, ex-presidente do Olympique de Marselha, “a competição iria se desvalorizar na ausência do Real Madrid ou do Chelsea”.
Detentora de um formidável poder de fogo financeiro com os 754 milhões de euros – provenientes dos direitos de TV – que distribui para os clubes participantes da Liga dos Campeões,6 a federação europeia permanece, contudo, dependente de seus membros com mais prestígio. “A Uefa tem o talão de cheques. Mas, se os maiores clubes recusassem em bloco as regras de fair playfinanceiro e decidissem boicotar a prova, o talão de cheques desapareceria por falta de atratividade suficiente para as redes de televisão”, resume o economista Michel Desbordes. Com o risco de matar a galinha dos ovos de ouro. “Colocada em uma situação de monopólio, a Uefa tem um produto principal, a Liga dos Campeões. E a razão de ser dessa associação é fazer dinheiro com o futebol”, lembra Andreff.
Surgida em 1992, “a Liga dos Campeões nasceu da reivindicação dos clubes mais ricos de reduzir a incerteza esportiva e otimizar os direitos de transmissão pela TV”, analisa o geógrafo do esporte Boris Helleu. Brandindo a ameaça de criação de uma liga fechada, paralela, estritamente reservada aos poderosos, os grandes clubes conseguiram a morte da Copa dos Campeões da Europa. Lançada em 1955 por iniciativa do jornal esportivo francês L’Équipe, a “C1” envolvia os vencedores dos campeonatos europeus, após uma série de partidas de ida e de volta com eliminação direta, em virtude do princípio “um país, uma equipe”, independentemente de sua dimensão e de seu peso econômico.
Sob a pressão das federações mais importantes – Alemanha, Inglaterra, Espanha, Itália e França – e de suas emissoras, a Uefa autorizou os países com melhor desempenho a apresentar quatro clubes, enquanto as nações pequenas, por causa de seus resultados fracos, só podem enviar um. Além disso, estes últimos estão condenados a ganhar até quatro partidas preliminares antes de poder ter acesso ao torneio propriamente dito. Facilmente classificados para a próxima rodada, com raras exceções, os “grandes” podem, então, competir pelo título – e compartilhar a verba dos direitos televisivos. “Não há dúvida de que o dinheiro determina os resultados há mais de dez anos e que o número de clubes que se destacam nas principais competições é cada vez mais restrito”,7 admitia em 2005 o porta-voz da Uefa William Gaillard.
Em posição de força, os dirigentes das principais redes de TV europeias, liderados por Silvio Berlusconi, proprietário do Milan e dono das três principais redes de televisão privada italianas, ameaçaram, em 1999, criar uma liga fechada. Dessa vez, a Uefa não cedeu à chantagem. Tirando lições desse fracasso, a elite dos clubes europeus fundou no ano seguinte o G14, um grupo de pressão que representa os interesses dos times mais ricos.
Eleito em 2007 com os votos dos países “pequenos” e das nações do Leste Europeu, Platini democratizou parcialmente o acesso à Liga dos Campeões. Aproveitando a abertura, o campeão do Chipre, o Apoel Nicosia, chegou em março de 2012 às quartas de final. Ele foi eliminado pelo exército de estrelas do Real Madrid, dotado de um orçamento cinquenta vezes maior! No ano anterior, o modesto Copenhague se alçava às oitavas de final.
Mais simbólica do que decisiva, a reforma de Platini deixou intacto o equilíbrio de poder, amplamente favorável às grandes equipes. Ao contrário do que tinha anunciado, o novo presidente da Uefa não concedeu aos vencedores das copas nacionais o direito de participar da Liga dos Campeões. Ele preservou dessa forma os interesses dos grandes países, cujo número de representantes teria diminuído automaticamente. Tranquilizado pelo espírito conciliador de Platini, o G14 concordou de bom grado em se autodissolver em fevereiro de 2008. Quase por unanimidade, a imprensa europeia elogiou a esperteza do presidente da Uefa, apresentado como o defensor aplicado dos fracos contra os poderosos. Sem se deixar enganar, o diário econômico francês Les Échos, próximo da área dos negócios, celebrou com uma pitada de ironia o “verdadeiro-falso inimigo do ‘negócio do esporte’” (13 jul. 2009).
O ex-capitão da seleção francesa conta também com suas boas relações com os clubes para fazer passar de forma suave a reforma do fair play financeiro. “Desde o começo, eu gostava dessa ideia, porque já estava claro, naquele momento, que o futebol europeu de clubes ia na direção errada”, disse o alemão Karl-Heinz Rumenigge, presidente da Associação Europeia dos Clubes (AEC) e diretor técnico do Bayern de Munique (Le Monde, 25 jan. 2011).
Alguns atores do planeta futebol até encorajam Platini a levar mais longe o zelo regulador. Presidente da Divisão Europeia da Federação Internacional das Associações de Futebolistas Profissionais (Fifpro), o sindicato mundial de jogadores de futebol profissionais, Philippe Piat exige estabelecer um nível máximo para as transferências: “Apenas quatro ou cinco clubes podem pagar por um Cristiano Ronaldo ou um Lionel Messi, considerados os melhores jogadores do mundo”, observa. “Mas esses talentos proporcionam uma vantagem decisiva para as equipes envolvidas na Liga dos Campeões.” Daí sua proposta de limitar as transferências de futebolistas “a 10 milhões de euros, por exemplo, para torná-los acessíveis a mais clubes”.
Na mesma linha, Jean-Michel Aulas, copresidente da Comissão de Finanças da AEC e presidente do Olympique Lyonnais, preconiza enquadrar os salários dos jogadores assim como as comissões recebidas por agentes durante as transferências – despesas que absorvem uma média de dois terços da receita dos clubes. Consequência da lei Bosman,8 que libera o mercado de trabalho dos futebolistas profissionais, o valor de mercado dos jogadores explodiu nas últimas duas décadas.
Limitar transferências e salários está nos planos de Platini, mas somente como uma “pena” imposta aos clubes que venham a infringir as regras do fair playfinanceiro. E sempre permanecendo deliberadamente vago sobre as modalidades de uma possível reforma.
“Chocada” com a transferência em janeiro de 2011, por cerca de 58 milhões de euros, do espanhol Fernando Torres do Liverpool para o Chelsea, a comissária europeia responsável pelos esportes, Androulla Vassiliou, anunciou o lançamento de um “estudo” sobre a regulação da circulação de jogadores.9 “É positivo um melhor controle da saúde financeira dos clubes, mas cabe a cada país encontrar a melhor maneira de fazê-lo, respeitando sua tradição jurídica e esportiva”, disse. Fiel ao tropismo não intervencionista da Comissão Europeia… desde que se trate de combater a desigualdade.
*David Garcia é jornalista, é autor de Histoire secrète de l’OM[História secreta do Olympique de Marselha], Flammarion, Paris, 2013.