Comércio ameaça agricultura africana
Pela primeira vez em dez anos, a fome no mundo não recuou, segundo a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO). Parte desse desastre pode ser explicada pelo aquecimento global e por conflitos armados, mas as razões passam também pelos acordos de livre-comércio, que impõem a abertura das fronteiras, levando agricultores locais à ruína
Jacques Berthelot
O vento do livre-comércio sopra cada vez mais forte sobre o continente negro. De um lado, a União Europeia aumenta a pressão sobre as capitais africanas para finalizar a assinatura de acordos de parceria econômica (APEs)1 e acabar com as preferências comerciais não recíprocas: para conservar a isenção de tarifas alfandegárias sobre suas exportações para a Europa, os africanos deverão suprimir 80% das que se aplicam às importações oriundas do Mercado Comum. Do outro lado, a União Africana lança as negociações com o objetivo de criar uma vasta zona de livre-comércio continental (ZLCC). Em Niamey (Níger), no dia 16 de junho de 2017, os ministros africanos do Comércio decidiram suprimir definitivamente 90% das taxas alfandegárias entre os países do continente.
Essa empolgação com o livre-comércio gera preocupações, em particular no setor agrícola. Peguemos o caso da África ocidental, que enfrenta o triplo desafio de déficit alimentar crescente, explosão demográfica2 e mudanças climáticas. O primeiro passou de 144 milhões de euros em média em 2000-2004 para 2,1 bilhões de euros em 2013-2016 (se acrescentamos o cacau, que não é um produto alimentar de base, o déficit salta de 2,5 bilhões para 7,5 bilhões de euros). Ele deve se agravar ainda mais com a duplicação da população prevista até 2050, enquanto, ao mesmo tempo, o aquecimento de 2 °C do globo pode diminuir em 10% o rendimento agrícola na África subsaariana, segundo as Nações Unidas. Os APEs reclamados pela União Europeia devem reduzir a zero, a partir do quinto ano de aplicação, as taxas alfandegárias sobre os produtos alimentares básicos, que são os cereais (exceto o arroz) e o leite em pó. Isso deve não somente aumentar a dependência alimentar, mas também arruinar os produtores de leite e os de cereais locais (milho, sorgo) e outros produtos (mandioca, inhame, banana-da-terra).
A Comissão de Bruxelas apresenta os APEs como acordos em que os dois lados ganham. Por que, então, a maioria dos países da África, do Caribe e do Pacífico (ACP) se recusa a firmá-los formalmente depois de tê-los rubricado, quer dizer, de ter declarado sua intensão de assinar? Esse é, em particular, o caso da Nigéria, que representava 72% do PIB e 52% da população da África ocidental em 2016. Seu presidente, Muhammadu Buhari, declarou diante do Parlamento Europeu em 3 de fevereiro de 2016 que o APE regional arruinaria seu programa de industrialização. Na África oriental, os dirigentes da Tanzânia e de Uganda formularam os mesmos temores. Se os APEs são tão benéficos, por que a União Europeia se recusou a divulgar os três estudos de impacto (abr. 2008, abr. 2012 e jan. 2016) realizados na África ocidental?
A Comissão de Bruxelas desconhece completamente a agricultura local quando afirma, em relatório de 2016, que os APEs aumentariam as exportações de cereais do oeste africano em 10,2% e de carne bovina em 8,4%.3 Os cereais são as principais importações agrícolas da sub-região: eles representavam 16,1 milhões de toneladas em 2013, das quais 2,8 milhões vinham do Mercado Comum (que aumentaram para 3,4 milhões de toneladas em 2016). A União Europeia só importou 22 toneladas de carne bovina oeste-africana em 2016, para onde ela exportou 84.895 toneladas.
Na realidade, as perdas anuais de taxas alfandegárias e taxas sobre o valor acrescido (TVA) da África ocidental sobre suas importações europeias passariam de 66 milhões de euros no primeiro ano para 4,6 bilhões no último ano (2035), e as perdas acumuladas atingiriam 32,3 bilhões.4 E essas perdas estão longe de serem compensadas pelas ajudas europeias previstas no período 2015-2020: 6,5 bilhões de euros do Programa APE para o Desenvolvimento (Paped), que são apenas uma mudança de alvo das ajudas já normalmente estabelecidas, como declarou a Direção de Cooperação da Comissão. As perspectivas são ainda mais sombrias depois que o Reino Unido, que contribuía com 14,5% do Fundo Europeu de Desenvolvimento (FED), deixou a União Europeia, enquanto a França já reduziu em 2017 seu orçamento de cooperação em 140 milhões de euros.
Abertura prematura
Na Europa, poderosos interesses estão em jogo e exercem fortes pressões sobre os políticos nacionais e europeus pela conclusão dos APEs. As empresas francesas fazem parte das principais sociedades agroalimentares interessadas nesses mercados: a companhia de frutas de Robert Fabre produz e exporta a quase totalidade das bananas e dos abacaxis da Costa do Marfim, de Gana e de Camarões; os Grandes Moinhos de Abidjan e de Dacar e a companhia de açúcar do Senegal pertenciam ao grupo Mimran, que acaba de cedê-los a um grupo marroquino; o Grupo Bolloré controla as infraestruturas portuárias do Golfo da Guiné e participa da exportação dos produtos para a Europa.
As profissões de fé liberais da União Europeia não a impedem de subvencionar suas exportações para a África ocidental. Em 2016, ela concedeu 215 milhões de euros para 3,4 milhões de toneladas de cereais e 169 milhões de euros para 2,5 milhões de toneladas de laticínios em equivalente-leite. No mesmo ano, as ajudas às exportações para a África austral atingiram 60 milhões de euros para os cereais, 41 milhões para a carne de aves e os ovos e 23 milhões para os laticínios. Por fim, 18 milhões de euros de ajuda foram transferidos para os laticínios com destinação à África central.
É nesse contexto que a União Africana, apoiada pela Conferência das Nações Unidas sobre o Comércio e o Desenvolvimento (Unctad), a Comissão Econômica das Nações Unidas para a África e as instituições financeiras internacionais, decidiu lançar uma zona de livre-comércio continental (ZLCC) até o fim de 2017 e uma união alfandegária continental até 2019, a primeira suprimindo as taxas alfandegárias entre os 55 Estados e a segunda dotando-os de uma taxa externa comum diante do resto do mundo. Fascinada pelos grandes acordos de livre-comércio em gestação, como o Grande Mercado Transatlântico (Tafta, na sigla em inglês), o Tratado Transpacífico e o Acordo Econômico e Comercial Global (Ceta) entre a União Europeia e o Canadá, a União Africana pretende fazer ainda melhor: “A aparição de mega-acordos comerciais regionais continua a ameaçar o acesso dos africanos aos principais mercados”, declara Fatima Haram Acyl, comissária do Comércio e da Indústria da União Africana, “e parece que essa tendência vai continuar aumentando. Mesmo que não sejamos capazes de controlar o que está acontecendo na Organização Mundial do Comércio ou em outro lugar, o que fazemos da ZLCC está inteiramente em nossas mãos”.5
A ideia de que o continente negro poderia se abrir brutalmente para a concorrência internacional e obter benefícios econômicos com isso é, na realidade, uma ilusão. Historicamente, nenhum país conseguiu um desenvolvimento suficiente para enfrentar a competição com os outros sem proteger sua agricultura e suas indústrias nascentes das importações. Além disso, os Estados já desenvolvidos se beneficiaram e se beneficiam ainda de enormes subvenções, como na área da política agrícola comum europeia. “Não podemos pedir hoje que a África seja o primeiro exemplo a mostrar que, abrindo primeiro seus mercados, ela vai se desenvolver”, resume Mamadou Cissokho, presidente honorário da Rede das Organizações Camponesas e dos Produtores Agrícolas da África Ocidental (Fórum Público da Organização Mundial do Comércio, set. 2014).
Acolhendo em Acra, no dia 9 de março de 2016, uma reunião da Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental (Cedeao), o ministro do Comércio e da Indústria de Gana, Ekwow Spio-Gargrah, lançou uma advertência: “O sucesso da introdução da ZLCC dependerá de como ela responde às necessidades do setor privado. É geralmente previsto que as regras que os países africanos adotam para a conduta do comércio sejam destinadas a ser exploradas pelo setor privado. O comprometimento do setor privado e sua sensibilização à ZLCC são, portanto, essenciais”.6 O “setor privado” ao qual faz alusão o ministro não diz respeito às centenas de milhões de pequenos agricultores africanos – que produziriam muito mais se estivessem seguros de preços garantidos por uma proteção eficaz à importação –, mas a algumas dezenas de multinacionais instaladas na África e a empresas privadas africanas que fazem pressão para abolir as taxas alfandegárias entre os países africanos. “Claro, tirar proveito do comércio internacional continua sendo um desafio para a maioria de nossos países”, reconhece o ministro, “pois medidas como as regras de origem, os déficits de infraestrutura, as normas e os obstáculos técnicos disfarçados de instrumentos de política comercial continuam nos impedindo de tirar proveito das possibilidades de acesso aos mercados, entravando nossa integração efetiva no sistema comercial multilateral.” Mas ele parece ignorar que os APEs vão abrir uma enorme brecha na proteção dos mercados internos africanos.
A Unctad só vê vantagens na ZLCC, principalmente no setor agrícola. “As exportações africanas de produtos agrícolas e alimentares – em particular o trigo, os cereais, o açúcar bruto (de cana e de beterraba) e os produtos transformados (carne, açúcar e outros produtos alimentares) – são as que mais vão se beneficiar com a ZLCC”, escreve o órgão das Nações Unidas. “Com a ZLCC, as exportações africanas de produtos agrícolas e alimentares aumentarão 7,2% (ou seja, US$ 3,8 bilhões) em 2022 em relação à situação de base.”7 Na realidade, a dependência da África não para de se agravar: as importações anuais de trigo do continente passaram de 26,6 milhões de toneladas (3,7 bilhões de euros) durante o período 2001-2003 para 48,6 milhões de toneladas (9,2 bilhões de euros) entre 2014 e 2016, e as exportações diminuíram de 300 mil toneladas (31,6 milhões de euros) para 200 mil toneladas (74,1 milhões de euros). Estas foram essencialmente da África do Sul e se dirigiam para o resto da África em 71% no primeiro período e em 85% no segundo, enquanto seu déficit de trigo foi multiplicado por 5,5.
Ao celebrar as supostas vantagens da eliminação das taxas alfandegárias sobre as trocas agrícolas intra-africanas, a Unctad só demonstra sua total falta de conhecimento da história dos mercados agrícolas: desde os faraós, eles sempre estiveram submetidos a medidas especiais de proteção em todos os países. Contrariamente aos produtos industrializados e aos serviços, os mercados agrícolas não podem se autorregular: diante de uma demanda alimentar estável a curto prazo, a produção e os preços são submetidos a acasos climáticos, aos quais se adicionam as flutuações dos preços mundiais em dólares, acentuadas pelas flutuações das taxas de troca e a especulação. Já que os agricultores representam cerca de 60% da população ativa total ao sul do Saara, pode-se imaginar o enorme impacto social que teria a liberalização das trocas agrícolas.
A União Africana tem noção dos obstáculos que se elevam diante de seu projeto de zona de livre-comércio? Como estabelecer regras comerciais comuns em um imenso continente que abriga 1,2 bilhão de habitantes em 2016 (2,5 bilhões em 2050), com regimes políticos muito diversos, regimes tarifários muito diferentes, infraestruturas de transporte muito fracas e uma renda nacional bruta per capita que vai de US$ 260 no Burundi a US$ 6.510 em Botsuana? “A ZLCC vai apenas criar um mercado africano gigante com poucos produtos africanos trocados”, estima o Third World Network Africa. “A ZLCC facilitará simplesmente a circulação dos produtos importados da Europa e de outras regiões da África…”8
Um olhar crítico sobre as políticas realizadas pela União Europeia não impede que se tirem lições sobre a integração que ela realizou e que parecem inspirar a União Africana. Esta última ressalta que o comércio intra-africano representa cerca de 10% de seu comércio total, enquanto o comércio intraeuropeu representa cerca de dois terços de seu comércio total. Mas isso não aconteceu miraculosamente. Ainda que o orçamento da União Europeia tenha sido sempre limitado a cerca de 1% do PIB, mais de um terço deste foi consagrado aos fundos estruturais e ao fundo de coesão, transferências que facilitaram que os Estados-membros menos desenvolvidos alcançassem os outros. Nada disso está previsto no continente negro.
A lição a tirar para a África subsaariana é, portanto, clara: uma integração econômica sustentável não será possível sem uma política de redistribuição significativa entre os Estados-membros (principalmente no seio de cada sub-região do continente), o que implica uma integração política mínima com um orçamento importante. A abertura prematura ao livre-comércio sem essas contrapartidas só pode marginalizar os lares, as empresas e as regiões mais pobres, gerando conflitos sociais e políticos estruturais insuperáveis e um subdesenvolvimento maior da África.
*Jacques Berthelot, economista, é autor de Réguler les prix agricoles [Regular os preços agrícolas], L’Harmattan, Paris, 2013.