Como a OMC foi posta em xeque
Graças às ONGs e aos movimentos sociais, o neoliberalismo sofreu em Seattle sua primeira grande derrota. É hora de avançar, propondo uma ordem internacional baseada não nos mercados, mas na democracia e na solidariedade.Susan George
Depois do fiasco da conferência ministerial da Organização Mundial do Comércio (OMC) em Seattle, numerosos comentaristas liberais assumiram a tarefa de reescrever a história. Segundo eles, os verdadeiros vencedores seriam os Estados Unidos, e os grandes vencidos, a Europa e os países do Sul. A Europa, que queria ampliar a ordem do dia, porque não conseguiu colocar na mesa de negociações novos temas, e o Sul, porque não conseguiu que se abrissem novos mercados no Norte. Que delírio! Apesar das propostas de circunstância de Bill Clinton, o impasse da conferência mostra os limites do poder de Washington numa organização em que, pela primeira vez, os delegados do Sul utilizaram em seu favor a regra do consenso. Já os quinze países europeus e a Comissão Européia queriam efetivamente incluir na pauta novos temas, mas a maioria deles estava interessada em desregulamentar ainda mais as economias, em benefício de suas próprias multinacionais! Os verdadeiros vencedores de Seattle são os movimentos de cidadãos, que desferiram um golpe na pretensão de utilizar o comércio como ferramenta de desconstrução generalizada de todos os coletivos, e os governos do Sul, que, independentemente da justeza de suas posições, afirmaram-se como parceiros de pleno direito para o futuro. Está nascendo uma opinião pública mundial, que deve encontrar sua expressão numa tomada de consciência nacional e internacional dos representantes populares.
Bernard Cassen
O sucesso do movimento cívico em Seattle só se constituiu em mistério para quem dele não participou. Graças à Internet, dezenas de milhares de adversários da Organização Mundial do Comércio (OMC) puderam organizar-se em plano nacional e internacional durante todo o ano de 1999. Quem quer que tivesse acesso a um computador e entendesse um pouco de inglês podia estar nas primeiras fileiras e participar do avanço rumo a Seattle.
Principal ferramenta de articulação: a lista de difusão via Internet Stop WTO Round (“Parar a Rodada do Milênio da OMC”), que permitiu a cada um estar em contato com todo o movimento e, a partir daí, inscrever-se em outras listas mais especializadas. Vale citar, entre as mais úteis, a do Corporate European Observatory, de Amsterdam, imbatível na denúncia das ligações entre os lobbies das empresas transnacionais e os negociantes comerciais norte-americanos ou europeus; a da Third World Network e de seu diretor Martin Khor, informado sobre os pormenores das posições dos governos do Sul e sobre tudo que se passava em Genebra; o Centro Internacional pelo Comércio e o Desenvolvimento Sustentável (ICSTD, de Genebra); o Instituto das Políticas do Comércio e da Agricultura (IATP, de Minneapolis, EUA); e o Focus on the Global South, de Bangcoc, Tailândia. Em Seattle, diversos entusiastas de todo o mundo, como Bob Olson, caminhoneiro canadense aposentado, usando principalmente a Internet, recolhiam as informações disponíveis e as faziam circular.
Se a isso acrescentarmos as atualizações freqüentes, sempre através da Internet, sobre os movimentos nacionais anti-OMC nos países europeus, na Austrália, no Canadá, nos Estados Unidos e na Índia (um pouco menos freqüentes na África, América Latina e Ásia), é possível começar a medir a amplitude da informação disponível, completada pelo trabalho de milhares de militantes que se transformaram em especialistas: proferiram conferências, colóquios e seminários, escreveram brochuras e artigos e concederam entrevistas.
Um exército sem hierarquia
Na França, é preciso destacar o trabalho realizado pela Associação pela Tributação das Transações Financeiras em Apoio aos Cidadãos (ATTAC), que, durante seu encontro internacional de junho de 99 — no qual grande destaque foi dado à OMC — reuniu cerca de 80 países; as atividades variadas da Coordenação pelo Controle Cidadão da OMC (CCC-OMC), que reuniram 95 organizações, entre elas a Confederação Camponesa, a Droits Devant! , a Federação das Finanças da CGT, a FSU, com o apoio político do Partido Verde, da Liga Comunista Revolucionária (LCR) e do Partido Comunista.
Na divisão internacional do trabalho feita antes de Seattle, os Amigos da Terra, de Londres, ficaram encarregados de centralizar as assinaturas de cerca de 1.500 organizações, de 89 países, que pediam uma moratória das negociações comerciais e uma avaliação completa do funcionamento da OMC, com plena participação cidadã. Desde o outono de 99, Mike Dolan, da Public Citizen, a organização fundada por Ralph Nader, estava em Seattle, escolhendo e reservando os locais que seriam necessários para abrigar uma infinidade de reuniões. Em São Francisco, houve o teach-in do Fórum Internacional sobre a Globalização, uma conferência contínua realizada entre 26 e 27 de novembro, onde oradores de todos os continentes sucederam-se uns aos outros diante de um público de 2.500 pessoas entusiasmadas, amontoadas no Bennaroya Symphony Hall.
Durante meses, milhares de pessoas haviam participado das sessões de treinamento para protestos sem violência propostas pelo coletivo Direct Action Network. Nos dias que antecederam a reunião da OMC, o entreposto DAN, em 420, East Denny Avenue, tornou-se o quartel-general de um exército sem hierarquia. Organizaram-se grupos para assumir a responsabilidade de cada um dos treze setores do perímetro no qual estava situado o centro de conferências. Eram compostos por pessoas que aceitavam a possibilidade de ser presas. Foi graças a essa determinação que as equipes de A a M, a postos desde as 7 horas da manhã, conseguiram impedir que se realizasse a sessão de abertura.
As cores da resistência
Artistas já vinham há muito trabalhando na produção das grandes marionetes e maquetes que deram um ar festivo a esse evento profundamente político. Estudantes de dezenas de universidades, entre elas uma muito próxima, a do Estado de Washington, retornaram com força à cena política norte-americana. Mostraram-se particularmente sensíveis aos atentados contra o meio-ambiente e à exploração dos trabalhadores e crianças do terceiro mundo — fustigada, por exemplo, pela campanha Clean Clothes (“Roupas Limpas”), que combate as “fábricas de suor” das indústrias têxtil e do vestuário.
Ainda mais espantosa, no contexto da história recente dos Estados Unidos, foi a aliança chamada Sweeney-Greenie, que faz alusão ao nome do presidente da poderosa central sindical AFL-CIO e aos verdes (Greens). Desde a guerra do Vietnam, os sindicatos e os defensores do meio-ambiente não paravam de se enfrentar politicamente, já que, para o movimento sindical norte-americano, ecologia rimava com esquerdismo e perda de empregos. Uma oposição comum à OMC permitiu uma reconciliação natural. Os movimentos pacifistas e os defensores dos direitos do homem se inquietaram pela primeira vez com as conseqüências nefastas da globalização, e se engajaram no movimento anti-OMC. Além disso, a Via Campesina, que reúne movimentos camponeses de 65 países (entre eles a Confederação Camponesa, da França), marcou um encontro em Seattle. Numerosas delegações estrangeiras, entre as quais a da França — a mais importante, junto com a do Canadá — completaram esta “coalizão do século”.
Em resumo, todo mundo estava pronto, exceto os policiais, que mais pareciam figurantes de um filme futurista, usando meios totalmente desproporcionais à situação. Circulam testemunhos, freqüentemente acompanhados de fotos ou vídeos, que mostram as provocações, as sevícias e o conluio policial com baderneiros, na verdade verdadeiros hooligans.
Bairros inteiros, pessoas idosas e crianças, sofreram os ataques de gás lacrimejante e outros gazes ainda não identificados. Foram presas 580 pessoas, muitas delas maltratadas e detidas em sigilo durante mais de 48 horas, em desrespeito à Constituição norte-americana.
Nada será como antes
Graças à intransigência de Washington nos assuntos agrícolas e à pretensão européia de acrescentar à pauta um grande número de novos temas (investimentos, políticas de concorrência, meio-ambiente, mercados públicos, etc); graças à revolta dos representantes do Sul, indignados por serem mantidos à margem das negociações; graças enfim ao movimento de protesto, a Rodada do Milênio nasceu morta. A OMC ainda tem mandato da conferência ministerial de Marrakesh, de 1994, para relançar a qualquer momento discussões sobre agricultura e serviços, entre eles a saúde, a educação, os “serviços de meio-ambiente” e os “serviços culturais” O acordo sobre propriedade intelectual (Trips, em inglês), que inclui o patenteamento dos seres vivos, deve também ser reaberto.
Quem foi a Seattle sabe que “nada será como antes”. Foi um momento central, uma pedra de fundação sobre a qual é preciso construir imediatamente, já que os estrategistas do neoliberalismo, feridos, humilhados e ávidos de revanche, não perderão tempo para reagrupar suas tropas. Em outras palavras, o movimento popular ganhou tempo e alcançou uma bela vitória, mas ainda não obteve a moratória e a avaliação da OMC que exigia. A Comissão Européia tem pressa em retomar as negociações entre “os competentes”, para os quais permaneceu intacto o paradigma do livre comércio acima de tudo, a serviço das empresas transnacionais. Eles se reunirão, tanto quanto possível ao abrigo dos olhares, e nunca mais oferecerão aos adversários da globalização selvagem uma plataforma de mídia como a de Seattle.
Vigilância e novas mobilizações
É indispensável armar uma estratégia baseada na vigilância e na continuidade da mobilização e das pressões. Ela deve ter em vista os governos, a Comissão Européia, a própria OMC e as transnacionais, com o objetivo último de construir uma verdadeira democracia internacional. Trata-se de uma obra coletiva e de longo fôlego, que nascerá da discussão e da ação e que ainda não pode ser perfeitamente planejada. Alguém acredita que na manhã de 15 de julho de 1789 os cidadãos tinham uma visão perfeita das etapas seguintes da Revolução Francesa?
De qualquer modo, alguns princípios já podem ser rapidamente definidos. Algumas atividades, por exemplo, não devem em hipótese alguma ser objeto de comércio; entre elas estão a saúde, a educação e a cultura em seu sentido mais amplo. O caso da carne bovina com hormônios ilustra perfeitamente a recusa da OMC a aplicar o princípio de precaução. Amanhã, em caso de dúvidas sobre a inocuidade de um produto, o ônus da prova deve caber a quem quer exportar. Nenhum organismo vivo deve ser patenteável, e qualquer país deve poder fabricar e distribuir livremente em seu território os medicamentos de base. A segurança alimentar dos povos e, portanto, a integridade dos agricultores, tem prioridade sobre o comércio.
A jurisprudência do Órgão de Resolução de Controvérsias da OMC deve ser submetida ao direito internacional reconhecido: direitos humanos, acordos multilaterais sobre o meio-ambiente, convenções de base da Organização Internacional do Trabalho (OIT). É preciso acabar com a recusa da OMC a discriminar os produtos em função dos processos e métodos de produção (PMPs), e poder dar preferência a um produto que não for fabricado por crianças, ou por semi-escravos.
Como fugir da oposição estéril Norte-Sul, no tema das cláusulas sociais e ambientais? Aferrados na única vantagem que oferecem — os baixos salários e os métodos de produção poluentes, porém baratos —, certos governos do Sul vêem, na adoção de tais normas, medidas de protecionismo exacerbado. Entre as idéias a amadurecer, estaria a de um sistema que, em vez de penalizar, como se procura fazer hoje, recompensasse os países que fizessem mais esforços nos campos do trabalho e do meio-ambiente. Não se trata de propor salários idênticos em toda parte, nem colocar no mesmo plano o Laos e o Camboja.
Uma alternativa ao livre comércio
Conhecemos muito bem, graças às estatísticas do Banco Mundial e do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), o nível de desenvolvimento material e humano de cada país. Suponhamos que o Birô Internacional do Trabalho (BIT), secretariado permanente da OIT, e o Programa das Nações Unidas para o Ambiente classificasse os países de um mesmo nível de desenvolvimento — inclusive os mais avançados — segundo seu maior ou menor respeito pelos direitos trabalhistas e pela natureza. Os melhores, em cada nível, receberiam o beneficio de preferências tarifárias, ou seja, de isenções de tarifas aduaneiras. Os produtos dos demais seriam tarifados em função da classificação de cada um. Tal sistema permitiria rever a sacrossanta cláusula de nação mais favorecida, que estimula apenas a “corrida rumo ao fundo do poço”.
Os arautos do livre comércio, de The Economist a Alain Madelin, lançam geralmente quatro acusações contra os opositores da OMC: 1. Vocês são ignorantes; 2. Vocês não representam ninguém; 3. Vocês são contra os pobres; 4. Vocês não querem regras, e sim a anarquia e a selva. Na verdade, é justamente por conhecerem muito bem o assunto que as ONGs e os movimentos de cidadãos combatem a OMC; Seattle demonstrou que o movimento popular representa muita gente; é comovente ver os neoliberais subitamente preocupados com a sorte dos pobres do Sul — não necessariamente representados por seus governos —, mas até hoje são conhecidas pouquíssimas pessoas felizes por trabalhar a troco de salários de miséria e em condições degradantes, por não poder mandar seus filhos à escola