Como acabar com o bitcoin (e outras “criptocoisas”) sem dar um tiro
Por que não usar o mesmo princípio do swap cambial contra os criptoativos? Um Banco Central poderia oferecer um derivativo que pagasse ao investidor, em moeda nacional, exatamente a variação do preço do bitcoin (ou outro criptoativo) acrescida de um pequeno prêmio. Ou seja: você não precisa comprar bitcoin para lucrar com a alta do bitcoin
A criptofebre e seus alicerces de fumaça
Nos últimos anos, assistimos a um fenômeno bizarro: uma multidão disposta a trocar suas moedas emitidas por Estados soberanos (valiosas por força da soberania) por ativos digitais sem emissor, sem garantias e sem qualquer valor de uso concreto. A promessa? Liberdade, descentralização, proteção contra a inflação… A realidade? Volatilidade extrema, demandas dependentes de campanhas de marketing, e uma estranha devoção à ideia de que apenas a escassez programada poderia ser fonte suficiente de algum valor.
O crescimento dos criptoativos está menos associado à sua suposta revolução tecnológica e mais à retroalimentação propagandística de uma demanda puramente especulativa. Donos de criptoativos não ganham acesso às tecnologias em que eles se baseiam para lhes darem aplicações úteis, nem ganham o direito de negociar o acesso a tais tecnologias. É apenas a expectativa de valorização futura que alimenta a demanda presente, que por sua vez gera mais valorização. O ciclo se retroalimenta até que a combinação de um incentivo crescente à liquidação realizadora de ganhos acumulados e à alavancagem cada vez maior leva a bolha especulativa ao estouro inevitável. Antes de a bolha estourar, os donos de tulipas na Holanda do século XVII provavelmente tinham tanta fé na sustentabilidade da tendência altista dos preços de suas flores quanto os criptoentusiastas de hoje.
Valor, escassez e a função do Estado
Ao contrário do que se apregoa nos pódios libertários, valor econômico não é uma função da escassez isolada. Um objeto pode ser absolutamente escasso e, ainda assim, não ter qualquer valor se não for desejado ou exigido. Objetos escassos podem ser até mesmo negativamente valiosos se produzirem danos ao invés de ganhos materiais, motivo pelo qual pagamos para nos livrar de coisas insalubres, por mais raras que sejam. Por que o dinheiro fiduciário tem valor? Porque o Estado exige que os impostos sejam pagos com ele. Ao anunciar punições para sonegadores de impostos, o Estado torna a obtenção da sua moeda uma necessidade. E como o Estado é o único agente capaz de criar a moeda com que pagamos impostos, a moeda será tão custosa/escassa quanto o Estado desejar. É justamente a combinação da escassez (o Estado controla acesso à moeda) e o seu valor de uso (o Estado a torna necessária) que dá valor à moeda estatal.
Criptoativos, por sua vez, não possuem qualquer mecanismo parecido que lhes dê valor. Enquanto donos de moeda estatal recebem a garantia do Estado de poderem obter algo valioso (evitar punições) em troca da moeda estatal, ninguém se compromete a entregar algo valioso a quem tenha criptomoedas. Sua demanda é puramente especulativa ou ideológica. E isso nos leva à seguinte pergunta: se o que sustenta seus preços é apenas a expectativa de que outras pessoas continuarão comprando criptomoedas porque esperam que outras pessoas continuem comprando…, o que aconteceria se essa expectativa fosse neutralizada?
Swaps cambiais: a arma secreta do Estado
Bancos centrais (como o brasileiro) aprenderam a lidar com ataques especulativos contra suas moedas usando uma ferramenta elegante chamada swap cambial. Em vez de vender dólares, o Banco Central vende ao investidor o direito de receber uma remuneração equivalente à variação cambial. Basicamente, o Banco Central do Brasil oferece uma “versão brasileira” do dólar, pagável em reais criados por ele próprio, sem que o investidor precise comprar dólar algum.
Essa operação ajuda a estabilizar a taxa de câmbio. Se qualquer um pode se proteger contra, ou lucrar com, a alta do dólar sem precisar comprar dólar, a demanda especulativa por moeda estrangeira acaba neutralizada. E com menos demanda, há menos pressão cambial. E como a demanda especulativa é justamente o componente mais volátil e ameaçador da demanda por moedas estrangeiras, o efeito estabilizador dessa política será tão maior quanto mais generosa for a oferta dessas aplicações.
Swapcripto: como acabar com a especulação sem censura ou proibição
A proposta é simples, e talvez por isso mesmo radical: por que não usar o mesmo princípio do swap cambial contra os criptoativos? Um Banco Central poderia oferecer um derivativo que pagasse ao investidor, em moeda nacional, exatamente a variação do preço do bitcoin (ou outro criptoativo) acrescida de um pequeno prêmio. Ou seja: você não precisa comprar bitcoin para lucrar com a alta do bitcoin. O Estado te ofereceria isso com liquidez, garantia e sem os riscos operacionais, tecnológicos e jurídicos típicos dos mercados cripto.
Se a remuneração especulativa é acessível sem que haja necessidade de comprar o ativo, a demanda pelo ativo real evapora. E com ela, seu preço! O castelo de cartas da escassez se desmancha no ar. O investidor especulativo ganha uma alternativa mais segura e o criptoativo perde seu oxigênio: a demanda inflada por expectativas.
Ainda assim, é possível que reste uma demanda residual por criptoativos. Parte dela viria de motivações ideológicas, ligadas à crença libertária de que toda moeda estatal é ilegítima ou fadada ao colapso. Outra parcela poderia se sustentar em expectativas irracionais de valorização – resistentes à lógica ou à evidência empírica. E, por fim, pode restar a demanda criminosa: usos associados à lavagem de dinheiro, evasão fiscal, tráfico ou outras atividades ilícitas que dependem do anonimato e da baixa regulação. No entanto, ao reduzir drasticamente a demanda especulativa legal e convencional, o swap cripto teria um papel decisivo: isolaria essas demandas marginais, tornando-as visíveis, identificáveis e politicamente mais fáceis de serem enfrentadas com regulação específica.
Riscos e objeções
Alguns dirão: e se isso incentivar o endividamento em cripto? E se o Estado tiver prejuízo? E se os mercados surtarem? Se a política for bem-sucedida, não haverá valorização dos criptoativos. Sem valorização, o prêmio pago pelo Estado será mínimo. Já as perdas patrimoniais por quem tiver suas riquezas aplicadas em criptoativos sempre poderão ser (seletivamente) compensadas por intervenções soberanas – como em 2008, quando instituições financeiras foram generosamente resgatadas pelo Tesouro e pelo Fed norte-americanos, num dos maiores pacotes de ajuda da história econômica. Idealmente, aliás, ao contrário do que se observou em 2008, a seletividade estatal para repor perdas resultantes do colapso das criptomoedas seria muito mais generosa com pequenos investidores para quem tais perdas pudessem representar ameaças graves aos seus sustentos.
Finalmente, como já aprendemos com os swaps cambiais, o custo fiscal nominal da operação não deve ser confundido com um custo econômico real. Mesmo que haja algum custo contábil para o Banco Central, a estabilização de mercados financeiros e a redução do risco de crises financeiras justificam com folga esse custo.

Conclusão: como matar um ativo com gentileza
O mais irônico é que esse não é um projeto repressivo. Não se trata de proibir, censurar ou prender entusiastas cripto. Trata-se apenas de competir com as criptomoedas. Usar a força da soberania monetária para oferecer uma alternativa tão eficaz que o próprio objeto da especulação perca a razão de existir.
O fim dos criptoativos não precisa envolver conflitos políticos e batalhas regulatórias. Basta que o soberano monetário ofereça uma alternativa mais elegante, mais estável e, ironicamente, mais generosa. A história não é feita apenas de confrontos diretos. Às vezes, basta oferecer às pessoas um caminho alternativo melhor e observar o resto desmoronar por conta própria.
Daniel Negreiros Conceição é professor de macroeconomia e economia do setor público na UFRJ.