Como controlar a pandemia no Brasil
As principais autoridades políticas e sanitárias, às quais caberia a obrigação de formular políticas de controle, carrear recursos, viabilizar meios, gerenciar processos e coordenar ações, incorreram em sérios equívocos e omissões, numa sucessão de erros que resulta em sofrimentos, sequelas e mortes totalmente desnecessárias
Entramos no temido mês de agosto com mais de 2 milhões de casos e perto de 100 mil mortos confirmados por Covid-19 em todas as regiões do Brasil. Em função da grande diversidade geográfica, social e cultural do país, o panorama da pandemia mostra-se bastante complexo. Aqui, ela tornou-se um sistema de epidemias, afetando distintos segmentos da sociedade e setores do imenso território nacional.
Os primeiros casos confirmados eram pessoas de alta renda, recém-chegadas de viagens ao exterior; rapidamente, porém, a doença atingiu as periferias das grandes cidades e o interior do país, com maior letalidade na população pobre e negra, entre desempregados, afetando tragicamente povos indígenas, quilombolas e populações ribeirinhas. Recentemente, em algumas capitais, a pandemia tende a se estabilizar em altos patamares de incidência e mortalidade, mas essas taxas crescem em cidades de menor porte em todo o país. No momento, ocupamos o segundo lugar do mundo em número de casos e de mortes; com 3% da população mundial, temos 14% dos óbitos por Covid-19.
A ausência de uma política nacional para enfrentamento da terrível crise sanitária agrava esse cenário desolador. As principais autoridades políticas e sanitárias, às quais caberia a obrigação de formular políticas de controle, carrear recursos, viabilizar meios, gerenciar processos e coordenar ações, incorreram em sérios equívocos e omissões, numa sucessão de erros que resulta em sofrimentos, sequelas e mortes totalmente desnecessárias. O pior é que, por ignorância, negacionismo e crueldade, lideranças políticas vêm deliberadamente promovendo boicotes e obstáculos às medidas de combate à pandemia.
É responsabilidade intransferível da Presidência da República coordenar ações e políticas emergenciais para controlar crises humanitárias nacionais e reduzir seus impactos evitáveis. Diante da pandemia de Covid-19, caberia ao governo federal apresentar à sociedade um plano de ação nacional, composto por medidas factíveis e embasadas em conhecimento científico, articulado e coordenado pelas autoridades sanitárias, em todos os níveis e setores, com a participação ativa das instâncias de controle social do SUS.
No auge da pandemia, torna-se imperativo e urgente organizar conhecimentos, recursos, competências e energias num conjunto amplo de estratégias, orientações, normas, procedimentos, programas e políticas, articulado de modo eficiente e coordenado centralmente, contando com a gestão integrada em todas as esferas de governo e com a participação da sociedade organizada. Mas infelizmente nada disso foi feito até o momento. O resultado dessa irresponsabilidade trágica é o fato de o Brasil entrar no quinto mês da pandemia sem nenhum plano oficial de enfrentamento em escala nacional.
Plano de enfrentamento da Covid-19
Preocupados com essa lamentável e grave omissão, entidades e movimentos sociais que atuam na área da saúde e participam da Frente pela Vida (https://frentepelavida.org.br) apresentaram recentemente à sociedade um Plano Nacional de Enfrentamento da Covid-19. Para a elaboração desse plano, mais de cinquenta pesquisadores de treze entidades científicas e 21 grupos de trabalho do campo da saúde coletiva conduziram uma detalhada e sistemática análise das interfaces relevantes da pandemia e elaboraram setenta recomendações estratégicas e técnicas, dirigidas às autoridades políticas e sanitárias, aos gestores do SUS e à sociedade em geral. De imediato, o Conselho Nacional de Saúde acolheu a proposta e muito contribuiu para sua versão final, que foi apresentada às comissões do Congresso Nacional, ao Ministério da Saúde e a outras instâncias do SUS. O que se segue é um extrato desse esforço coletivo, na expectativa de ampliar sua difusão e acolhimento entre os setores interessados da sociedade.
Em todo o mundo, diante do quadro de recessão causado pela pandemia, medidas proativas de promoção e geração de emprego e de proteção social aos trabalhadores têm sido colocadas em prática, como embrião de uma renda universal básica. A pandemia atingiu o Brasil num momento de reformas antipopulares, centradas na austeridade fiscal e na redução do papel do Estado na economia. Aqui, o suposto conflito entre economia e combate à Covid-19 tem sido o argumento com o qual setores políticos insistem numa agenda neoliberal socialmente perversa. Como resultado, programas de proteção social aprovados pelo Congresso Nacional, incluindo o auxílio emergencial para pessoas e famílias necessitadas, encontram dificuldades de viabilização pelos setores econômicos do governo federal e se mostram insuficientes para sustentar as medidas de controle da pandemia.
As políticas de austeridade fiscal que agora fragilizam a estrutura de proteção social também desfinanciaram o SUS. Essa situação foi recentemente agravada pela inoperância do Ministério da Saúde no repasse de recursos destinados ao enfrentamento da pandemia. Ampliação de recursos financeiros é fundamental para ajustar a capacidade de resposta do sistema público de saúde à pandemia. Nesse sentido, é imprescindível que o piso orçamentário emergencial aprovado para o SUS seja incorporado ao orçamento de 2021.
Apesar de subfinanciado e ameaçado pela agenda neoliberal, o SUS tem, sem dúvida, produzido respostas efetivas no combate à Covid-19. Em todos os níveis de atenção, gestores e profissionais de saúde vêm lutando arduamente para garantir acesso e qualidade dos cuidados de saúde. Não obstante, até agora, a maior parte das ações de combate à pandemia tem se concentrado nos níveis secundário e terciário de atenção à saúde do SUS. A atenção primária à saúde, que corresponde à porta de entrada no sistema, é fundamental para o controle da pandemia. Experiências bem-sucedidas em alguns municípios brasileiros confirmam a importância desse nível de atenção para maior cobertura e cuidado efetivo dos pacientes com Covid-19. Essas boas práticas precisam ser ampliadas para toda a rede do SUS, em todo o território nacional, com urgência!
Mesmo nos níveis secundário e terciário de atenção, há muito o que implantar, ajustar e melhorar na rede assistencial do SUS. Problemas de continuidade e integração do cuidado, com pacientes deixando de receber o atendimento indicado no momento oportuno, ocasionam aumento evitável no número de pacientes graves. Muitos casos acabam evoluindo para óbito por falta de atendimento hospitalar de qualidade. O acesso regulado à atenção especializada precisa ser colocado em prática imediatamente, em todo o país, garantindo transporte adequado, oportuno e seguro aos usuários que dele necessitem. O manejo clínico de pacientes deve seguir protocolos elaborados por especialistas, adaptados às condições locais e integrados às redes de atenção à saúde. Tanto para a Covid-19 como para outros problemas de saúde, serviços de apoio diagnóstico e terapêutico precisam ser expandidos e agilizados.
Em todo o país, leitos de retaguarda devem ser reservados para casos confirmados de Covid-19 que apresentem comorbidades, mesmo que não sejam graves. Isso inclui pessoas que residem sozinhas ou que vivem em contextos nos quais isolamento e distanciamento físico são impossíveis. Toda a capacidade hospitalar instalada (englobando serviços públicos e privados) deve obedecer a uma fila única para cuidados intensivos de casos graves. Além disso, o planejamento e a organização de cuidados hospitalares e domiciliares de reabilitação, que podem ser de longa duração, já deveriam estar em curso.
Cabe às autoridades sanitárias garantir o acesso a medicamentos e promover seu uso racional. Diante da profusão de promessas de tratamentos milagrosos, prescrevem-se medicamentos sem eficácia comprovada, enquanto faltam anti-inflamatórios, sedativos e antibióticos necessários para atendimento a pacientes graves de Covid-19. Não obstante as demandas e urgências da pandemia, gestores do SUS devem evitar, por meio de estoques estratégicos, que medicamentos essenciais faltem a pacientes com outras enfermidades, o que tem ocorrido em vários pontos da rede assistencial.
Além disso, as autoridades sanitárias são responsáveis por garantir a observância de protocolos de segurança, com a provisão de equipamentos de proteção individual para trabalhadores e trabalhadoras de saúde e outros setores que atuam na linha de frente na rede de serviços de saúde. Infelizmente, nesse aspecto, o Brasil atingiu mais um vergonhoso recorde mundial, com altíssimo percentual de óbitos entre profissionais de saúde, especialmente os da área de enfermagem.
No plano técnico, apesar de a efetividade na assistência médica ser fundamental para reduzir sofrimentos e salvar vidas, todas essas ações assistenciais são insuficientes para o controle da pandemia. No estágio em que se encontra a pandemia no país, medidas firmes e mais efetivas, nas esferas econômica, política e sanitária, já deveriam ter sido tomadas. Ações comunitárias de enfrentamento à pandemia precisam ser fomentadas, em paralelo a iniciativas de prevenção e promoção da saúde, especialmente entre as populações mais vulnerabilizadas. Como efetivamente ainda não o foram, além de necessárias, são agora urgentes para controlar a pandemia e seus impactos negativos.
Na ausência de vacinas e tratamentos específicos para a Covid-19, cabe o recurso a estratégias não farmacológicas, como quarentenas e medidas de distanciamento físico, na amplitude necessária para cada cenário epidemiológico e contexto de cada região, estado, município ou localidade. Enquanto persistir a transmissão com característica epidêmica, autoridades sanitárias devem manter as diretrizes de distanciamento físico, uso de máscaras, disponibilidade de álcool em gel em locais públicos e transportes coletivos, proibição de aglomerações de qualquer natureza não relacionadas à manutenção de atividades essenciais e restrição de viagens domésticas e internacionais.
No caso brasileiro, a gestão dessas medidas tem-se dado por iniciativa de governadores e prefeitos, em muitos casos como reação a pressões econômicas locais, das quais se tornaram reféns. A flexibilização das medidas de quarentena, distanciamento físico e restrição de mobilidade deverá ser cogitada apenas onde e quando a situação epidemiológica permitir, com pré-requisitos precisamente definidos, conforme indicadores estabelecidos pela OMS e referendados por outras organizações internacionais de saúde. Nesse sentido, para a tomada de decisões corretas e prudentes, as autoridades devem instalar comitês consultivos com representação das comunidades científicas, profissionais e da sociedade civil. Além disso, tal flexibilização deve ser autorizada somente se for viabilizada uma efetiva capacidade de vigilância epidemiológica.
A vigilância epidemiológica é uma das estratégias mais efetivas para controlar epidemias virais como a da Covid-19. Isso implica procedimentos de busca ativa de casos, com equipes capacitadas para testagem, por biologia molecular, de todos os casos suspeitos, visando identificar infectantes e bloquear cadeias de transmissão, até o limite da rastreabilidade, incluindo monitoramento dos que tiverem indicação de isolamento. Tais procedimentos devem ser conduzidos na atenção primária em saúde por equipes treinadas, conectadas e coordenadas pelos gestores do SUS, nos planos municipais, estatuais e federal. Casos leves ou assintomáticos devem ser identificados, orientados e rigorosamente monitorados, a fim de verificar o cumprimento estrito das instruções de isolamento, em instalações protegidas ou unidades de quarentena. Em alguns casos, deve-se viabilizar auxílio financeiro para isolamento individual em regime domiciliar. Ferramentas tecnológicas (como aplicativos de celulares) poderão ser utilizadas para localização, monitoramento e controle dos casos durante o período infeccioso, respeitando sigilo e confidencialidade.
Um sistema articulado e integrado
Um plano estratégico para controle da pandemia não significa uma mera lista de ações a serem realizadas nas diferentes esferas de governo ou nos distintos níveis de operação do SUS, de modo isolado ou cumulativo. Trata-se, na verdade, de um sistema articulado e integrado de estratégias, táticas e ações, destinadas a viabilizar métodos de controle dos processos epidêmicos, cuja funcionalidade e efetividade dependem de planejamento eficaz, gestão competente e coordenação fina e sensível. A condição de viabilidade (ou sucesso) de sua aplicação, num contexto de grande complexidade, reside justamente na capacidade de mobilização da população, incluindo usuários, profissionais e gestores num regime de coesão firme e solidária.
Do ponto de vista científico, sabemos tudo o que se precisa para controlar a pandemia de Covid-19. Não podemos desperdiçar mais tempo do que já se perdeu, porque a demora em dar respostas implica perda irreparável de vidas. Se as autoridades continuarem negando a seriedade da crise atual, tomando decisões sem fundamento técnico, o terrível preço da pandemia recairá sobre a maioria da população brasileira, principalmente os estratos sociais mais vulneráveis. Uma pandemia como esta aumenta a vulnerabilidade social, aprofunda desigualdades econômicas, gera iniquidades em saúde e violações de direitos humanos, o que atinge diretamente grupos populacionais oprimidos e discriminados e afeta o conjunto da sociedade.
Reafirmamos que, com ação política, planejamento, organização e participação, é possível e viável superar a pandemia no Brasil. Como primeiro passo, o governo federal precisa cumprir sua função primordial de condutor das políticas de controle da Covid-19 e redução de danos. Os outros poderes da República e todas as esferas de governo precisam atuar de modo coordenado e efetivo, cumprindo suas responsabilidades. A sociedade brasileira deve se mobilizar politicamente para enfrentar as crises da pandemia. Trata-se de uma luta política urgente e necessária pela democracia, com base nos princípios de justiça social, equidade e transparência, mediante cooperação e entendimento entre os setores progressistas.
*Naomar de Almeida Filho é professor visitante (IEA-USP), professor de Epidemiologia (ISC-UFBA) e vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco); Gulnar Azevedo é professora (Uerj) e presidente da Abrasco; Claudia Travassos é pesquisadora da Fiocruz e membro da diretoria do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes).