Como lidar com a impotência diante de um genocídio
Quanto mais visibilidade, melhor. Quanto mais deixarmos claro que nossos olhos estão em Gaza, melhor. Quanto mais cobrarmos de nosso governo ações práticas, sanções e bloqueios comerciais, melhor
Poucas situações são mais difíceis de discutir do que a ocupação israelense da Palestina. A enormidade dos crimes que vêm sendo cometidos e a completa inatividade dos governos mundiais parecem sugerir que nada pode ser feito. Acusações de antissemitismo são usadas como defesa pelo governo israelense — mesmo que muitos judeus ao redor do mundo se oponham às ações de Israel. Além disso, para muitos de nós, a gravidade e a relevância do conflito só ganharam visibilidade recentemente. Antes dos ataques do Hamas em 7 de outubro de 2023, menções à ocupação da Palestina eram raríssimas, mesmo entre pessoas mais politizadas. Ataques contra povos árabes, afinal, tendem a ser minimizados ou ignorados.
Graças à maneira como a situação foi silenciada pela mídia tradicional, a aparição repentina da Palestina parece ser o surgimento de algo novo, embora a invasão do território palestino esteja prestes a completar 70 anos. Para muitos de nós, parece inacreditável que, nessas décadas, falamos tão pouco de algo tão importante. Agora, que a ocupação e expulsão de palestinos de suas terras se converteu num massacre sangrento e indiscriminado, nos sentimos culpados por esse silêncio. É como se as crianças palestinas já estivessem vendadas e encostadas contra a parede; o executor israelense já gritou “fogo” — e estamos longe demais para impedir que os soldados pressionem o gatilho. O extermínio completo de um povo parece inevitável, e sentimos uma culpa de sobrevivente antecipada, e a angústia de quem demorou demais a se preocupar.
Uma das consequências mais insidiosas disso é que, graças a essa sensação de impotência, muitos de nós preferimos desviar o olhar. É difícil demais encarar acontecimentos tão trágicos, e mais ainda aceitar o que dizem sobre nós. Não queremos ver as pessoas famintas, as cidades inteiras devastadas, mães desabando desesperadas, segurando em seus braços filhos mortos e mutilados. Mas, infelizmente, é isso que precisamos fazer. Precisamos pensar sobre elas, reconhecer a realidade que denunciam, e agir a partir dela.
Quando peço a você que não feche os olhos, estou pedindo que deixe de lado o único mecanismo de defesa que temos contra tantas cenas e informações devastadoras. Mas para muitos de nós, encará-las de frente é uma das poucas ações possíveis e, até onde entendo, uma das únicas maneiras de lidar com essa angústia.
E se a leitura desse texto lhe parecer difícil, acredite: tive uma dificuldade enorme em escrevê-lo. Assim como você, vivo num tempo em que estamos mais cansados, ansiosos e deprimidos do que nunca, e procurar informações sobre um conflito tão sangrento é doloroso. Não só isso, como não há nada a acrescentar sobre o tema, as conclusões são óbvias e diversas informações recentes são fáceis de se encontrar — ainda que fotos e informações da Palestina sejam constantemente apagadas e bloqueadas pelo governo israelense. Mas se demorei tanto a escrever sobre o assunto, é porque formular esses pensamentos, transformar o conhecimento abstrato em palavras concretas, é um ato sem volta. Eu compartilhava postagens e imagens a respeito do genocídio, mas a atenção que dedicava ao tema era superficial. Falar sobre a Palestina seria reconhecer que, até então, estive em silêncio. Seria aceitar que eu evitava o tema para me proteger do impacto emocional de uma discussão tão aterrorizante, me esquecendo de que não sou eu quem precisa ser protegido.
Mesmo agora, só consigo colocar em palavras essa realidade hedionda graças a minhas próprias limitações. Se conseguisse visualizar simultaneamente as milhares de crianças assassinadas por Israel, enlouqueceria — assim como não suportaria testemunhar as torturas às quais o povo judeu foi submetido durante a Segunda Guerra. E é de uma ironia desesperadora que o sofrimento e o preconceito que sofrem há milênios sejam parte da justificativa que se dá para o extermínio de outro povo, vítima de uma islamofobia que tem muito em comum com o antissemitismo.
Não à toa, muitos judeus têm se manifestado há anos, dentro e fora de Israel, contra crimes de guerra que, diz o governo israelense, têm na religião um de seus motivos. Imagino que, muito mais que eu, são assombrados pelas imagens que conseguem furar o bloqueio informacional imposto à região, graças ao heroísmo de tantos jornalistas e fotógrafos assassinados.
Ao encarar a situação, veremos que aqueles com poder para intervir nem mesmo impõem sanções ou rompem suas relações com Israel. Não querem se indispor, e continuam seu comércio. Acharemos inacreditável que o governo brasileiro tente dar qualquer explicação para continuar vendendo petróleo para um Estado genocida, e que o estado de São Paulo continue comprando de Israel suas armas — executando o pobre de nossas favelas com os mesmos equipamentos usados para o extermínio de um povo. Negócios, negócios; genocídios à parte.

No último final de semana, o ativista Thiago Ávila voltou ao Brasil. Não conheço Thiago, mas sem as ações dele, esse texto não existiria. Ele é um dos organizadores internacionais da flotilha da liberdade, uma missão humanitária que tenta levar alimentos e medicação para o povo de Gaza por via marítima.
Na tentativa mais recente, 12 pessoas, incluindo a sueca Greta Thumberg e a deputada europeia Rima Hassan, foram sequestradas por Israel em águas internacionais, mas essa não foi a primeira viagem da flotilha. Tentativas de levar comida ao povo Palestino pelo mar têm sido feitas ao longo dos últimos 15 anos, todas bloqueadas por Israel. O bloqueio marítimo da região não tem bases legais, mas isso pouco preocupa um governo que tem cometido crimes de guerra há muitas décadas, sem qualquer consequência.
Em 2010, uma frota de barcos, incluindo 600 pessoas de 35 países, tentou percorrer essa mesma rota, levando alimentos para o povo Palestino. Eles foram impedidos por Israel, que invadiu a embarcação Mavi Marmara a partir de helicópteros e lanchas, matando dez membros da tripulação e ferindo dezenas de outros. A ONU investigou o caso e condenou os ataques como desproporcionais — sem qualquer efeito prático. A notícia pouco se espalhou.
Thiago se envolveu com a flotilha depois disso. Recebeu ameaças pessoais, incluindo de pessoas que se identificaram como MOSSAD — o serviço secreto israelense —, mas isso não o impediu de estar na Conscience, embarcação atacada por drones israelenses em 2024.
Daí a Madleen. O barco era tão pequeno que abrigava apenas 12 tripulantes, e seria impossível levar uma fração da comida necessária para alimentar tantas pessoas famintas — mas eles sabiam que não chegariam a seu destino. Embora fossem poucos, foram escolhidos a dedo. Greta Thumberg e Rima Hassan trouxeram uma enorme visibilidade à viagem — a primeira por sua fama internacional, a segunda, por seu cargo político na Europa. Esperava-se que a mistura de ativistas de tantos países diferentes exigisse que os próprios países se manifestassem, e o ator Liam Cunningham, de Game of Thrones, esteve presente na partida do barco, sendo uma voz importante em sua divulgação. Muitas pessoas que, como eu, não sabiam das tentativas anteriores de levar comida para os palestinos, ficaram sabendo da viagem da Madleen.
Graças a isso, o governo israelense agiu com um cuidado pouco característico: não houve ataques com drones nem tiros contra a tripulação. Seus membros foram capturados em águas internacionais, e exigiram que assinassem um documento confessando o crime de invadir o território israelense. Diversos deles se recusaram a confessar um crime inexistente, e foram mantidos sob custódia. Relatos indicam que Rima Hassan foi ameaçada com violência corporal e, assim como Thiago, entrou em greve de fome. O ativista foi jogado na solitária, e só libertado depois de quatro dias sem comida ou água.
É possível que Thiago estivesse sob um risco de vida maior que qualquer outro membro da Madleen, graças à sua posição como coordenador da flotilha da liberdade e às suas tentativas anteriores de furar o bloqueio de Israel. Ainda assim, seguiu adiante. Sabia dos riscos que corria, mas estava ciente também de algo importantíssimo; algo que, num mundo de redes sociais, nunca podemos esquecer: nossa atenção é valiosa.
Se a Madleen foi atacada de maneira menos intensa que as embarcações anteriores, é porque ela chamou nossa atenção. Muitos de nós observamos seu progresso com ansiedade e esperança, acompanhando as notícias que seus tripulantes enviavam. Esse número de olhares limita a crueldade que os israelenses podem exercer; é por isso que eles destroem imagens e assassinam fotógrafos e jornalistas. Sabem que, quanto mais pessoas enxergarem o que fazem, mais difícil será continuar seus atos hediondos. Concentrar nossa atenção em alguma coisa torna muito mais difícil que ela possa ser atacada ou esquecida. Essa é uma das maneiras de lidar com nossa aparente impotência: a própria coragem de observar com cuidado o que acontece pode ter um efeito prático, nem que seja garantir que a luta do povo palestino nunca seja esquecida.
Mas isso, mesmo significativo, não é suficiente — existem maneiras mais fortes de demonstrar nossa atenção: falar. Escrever. Compartilhar. Se nosso governo disfarça sua inação por trás de belos discursos, nós podemos transformar nossas palavras em ação por meio de manifestações, exigências, cobranças. Se nada de concreto foi feito, é porque muitos de nós ainda preferem não olhar. Porque achamos que é tarde demais. Porque duvidamos de que nossas ações possam ter uma consequência. Mas é infinitamente melhor tentar do que esperar em silêncio que esse homicídio em massa continue.
As manifestações que ocorreram no dia 15 de junho, foram um ótimo sinal de que, aos poucos, saímos dessa letargia — mas é preciso mais. Se você não se manifestou, seja online ou em algum movimento em sua cidade, essa é a hora. Quanto mais visibilidade, melhor. Quanto mais deixarmos claro que nossos olhos estão em Gaza, melhor. Quanto mais cobrarmos de nosso governo ações práticas, sanções e bloqueios comerciais, melhor.
Três semanas depois do início dos bombardeios mais recentes em Gaza, o jornalista Omar El Akkad postou, em sua rede social, uma frase que ganhou fama imediata, e que parafraseio aqui: “Um dia, quando for seguro, quando for tarde demais para punir qualquer um dos responsáveis, todos dirão que sempre foram contra isso”.
Não espere esse dia. Não fique em silêncio. Não espere que um povo seja exterminado.
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Bruno Nogueira é escritor, tradutor e doutorando em estudos literários pela UFPR. Autor da coletânea de contos A Síndrome do Impostor e do romance Grito Distante.