Como os tiranos tomam suas decisões
Durante várias décadas, no Iraque e na Síria, Saddam Hussein e Hafez al-Assad – depois seu filho, Bashar – exerceram um poder absoluto. Eles isolaram a oposição e silenciaram as vozes dissidentes, tornando impossível qualquer debate políticoJoseph Sassoon
Embora seja sempre difícil comparar processos de decisão política, o fato de o Iraque e a Síria terem sido comandados pelo Partido Baath (respectivamente, de 1968 a 2003 e desde 1970),1 com base nas mesmas referências ideológicas, permite depreender alguns traços comuns. Ambos os regimes criaram uma burocracia centralizada, que integra os serviços de segurança e é controlada pelo presidente. Tanto em Bagdá como em Damasco, os braços do partido funcionaram como instrumento de controle das massas. Transcrições de reuniões do Conselho de Comando Regional do partido e gravações do Conselho de Comando Revolucionário (CCR) dirigido por Saddam Hussein dão uma visão surpreendente sobre como as decisões eram tomadas no Iraque.
O sistema funcionava com poucas ordens escritas. Havia debate entre os membros do CCR, oficiais superiores e dirigentes do partido, mas se Saddam Hussein não ficasse “convencido” pelos argumentos apresentados, sua proposta inicial permanecia inalterada. Esse processo de imposição de cima para baixo era ainda mais rígida no campo militar, sobre o qual o presidente não tinha, entretanto, nenhuma competência (Bashar al-Assad, ao contrário de seu falecido pai, Hafez al-Assad, nem sequer tem formação militar).
Esse sistema piramidal traduziu-se numa aversão crescente às más notícias – aspecto em que Saddam Hussein se assemelha a muitos outros tiranos no mundo. Durante um simpósio, em plena Guerra do Golfo (1991), com a participação de altos funcionários militares, ele mostrou desprezo em relação àqueles que expressavam dúvidas sobre a capacidade militar do país: “Não autorizarei pontos de vista pessimistas, somente pontos de vista positivos”.2
No Iraque – e em certa medida o mesmo se passa na Síria de Al-Assad –, era difícil opor-se ao presidente. A gravação das reuniões revela a bajulação dominante, que impedia qualquer discussão séria sobre assuntos vitais. As reuniões dependiam do humor do chefe, e não se dava nenhuma atenção verdadeira à ordem do dia: na maior parte do tempo, Saddam Hussein tratava do que lhe passasse pela cabeça.
O culto à personalidade favorece os delírios de grandeza do presidente, sua convicção na própria popularidade e em sua missão de trazer uma mensagem especial (rissala) a seu povo. Bashar al-Assad chegou a declarar recentemente a um repórter: “Levo uma vida normal. É por isso que sou popular”.3
Seja Saddam Hussein ou Bashar al-Assad, o presidente considera-se acima de qualquer crítica. Toda decisão ruim deve ficar por conta de alguma outra pessoa. Para piorar a situação, esses déspotas vivem cada vez mais distantes da realidade, em virtude da bajulação que recebem da mídia e da louvação permanente que lhes dirigem seus colegas e subordinados. Numa entrevista à televisão norte-americana, o presidente da síria explicou: “Dei o melhor de mim para proteger o povo, por isso não sinto culpa de nada… Ninguém se sente culpado quando não mata seu povo”.4
Um registro fascinante
Seja no Iraque, na Síria ou na Líbia, é pelo reinado do medo que esses regimes autoritários garantem sua perenidade. Em uma reunião com altos funcionários, em 1987, o então presidente do Iraque justificou sua disposição em usar a violência, dando a seguinte explicação ao chefe da segurança geral: “Estamos aqui para servir os cidadãos, não para matá-los. Mas quem tiver de ser abatido será abatido. Vamos cortar algumas cabeças para servir 15 milhões [de iraquianos]”.5 Na Síria, parece que o terror da população diminui conforme o nível de brutalidade da repressão aumenta: “As balas mataram o medo”.6
O aniquilamento de toda oposição resulta numa permanente distorção da verdade. Os chefes militares e as autoridades dos serviços de inteligência abstêm-se de comunicar qualquer notícia que possa desagradar ao presidente. Em uma fascinante gravação de 1992, que reproduz uma reunião de balanço da invasão do Kuwait em agosto de 1990 e do levante da primavera [do Hemisfério Norte] em 1991,7 Hussein Kamel, enteado de Saddam e seu assessor na época, declarou: “O fato é que a maioria [dos militares] fugiu, com exceção de dois ou três”.
Presidente: “– As pessoas honradas mostram sua verdadeira face nessas circunstâncias”.
Kamel: “– Nós não demos ao senhor o verdadeiro quadro da situação, por uma série de razões, como o medo, ou para evitar que alguém deduzisse que iríamos perder. […] O moral estava no chão, mas quando [os generais] vieram falar com o senhor, não podíamos lhe dizer a verdade sobre nossa situação”.8
Em 1991 e 2011, Saddam Hussein e Bashar al-Assad foram surpreendidos pela eclosão da insurgência em seus países. Em ambos os casos, o círculo próximo ao presidente não desempenhou seu papel de sentinela. Em ambos os casos, o núcleo central era composto de membros da família e do clã: irmãos, primos ou parentes por casamento com membros da família do presidente. Se por um lado isso permite a formação de um grupo coeso, com interesses semelhantes e ciente de que a derrubada do presidente levaria à sua própria queda, por outro esse tipo de estrutura resulta numa total ausência de discussões francas e abertas.
No Iraque, ao longo do tempo, a maioria das decisões foi passando a ser tomada por Saddam Hussein, sem consulta. Nenhuma discussão preparou a invasão do Kuwait em 1990, ao passo que o ataque contra o Irã, em setembro de 1980, fora precedido por muitas discussões de âmbito político e militar. A perenidade do regime pode ser explicada pela determinação de sua liderança em erradicar qualquer oposição, tanto militar como civil, e em usar a violência e o medo para controlar a população; pela aplicação de um sistema de recompensas e punições; pelo recrutamento de um grande número de adeptos, mesmo que muitos nem sempre tenham mantido um papel ativo; pela capacidade de usar o talento e a engenhosidade dos iraquianos dotados de qualificação para reconstruir o país (após 1988 e 1991); e, finalmente, pela perspicácia de Saddam Hussein e sua habilidade em atrapalhar as manobras de adversários e concorrentes. Ele jamais permitiu que alguém, nem mesmo seus filhos, Uday e Qusay, reunisse poder suficiente para contestar seu domínio.
Saddam Hussein enfrentou lutas internas e derrotas com absoluto sangue-frio, o que se deve em parte à sua forte personalidade e em parte a seu espírito delirante. Por exemplo, ele se convenceu – e a seu povo – de que foi vitorioso na guerra contra o Irã, a despeito das enormes perdas materiais e humanas. Bashar al-Assad, por sua vez, afirma não ter perdido o sono por conta da crise atual: “Sou naturalmente calmo… Não lido com uma crise de maneira emocional. Trato dela com calma. Isso me torna mais produtivo e capaz de encontrar soluções”.9
Saddam Hussein controlava todos os grandes centros de poder. Ele não tinha nenhum concorrente sério, e ninguém jamais conseguiu reunir influência suficiente para desafiá-lo. Ao se tornar presidente, em 1979 (era vice desde 1968), ele definiu que a responsabilidade de um ministro era “receber as diretivas do CCR e executá-las com os escalões inferiores [de seu ministério], concluindo-as dentro do prazo estipulado”.10 Do mesmo modo, na Síria de hoje, a burocracia ministerial é uma “instituição subalterna”.11
A força e a longevidade de Saddam Hussein também podem ser atribuídas à sua capacidade de se adaptar rapidamente a novas situações. Ele era flexível e, quando percebia ter cometido um erro de cálculo, mudava de direção, contudo sem jamais admitir um erro de julgamento. Assim o presidente iraquiano operou uma espetacular reviravolta em relação ao tribalismo, à religião ou à condição das mulheres.12 Mas esse controle total criou um processo decisório imperfeito, levando a graves decepções: Saddam subestimou a reação à invasão do Kuwait em 1990 e não levou a sério a determinação do governo norte-americano em invadir o Iraque em 2003.
Na Síria, Bashar al-Assad – ao contrário de seu pai ou de Saddam Hussein, que tiveram de construir uma sólida base política – herdou a liderança do país em uma situação de dependência da família, sobretudo no que diz respeito a seu irmão Maher, chefe da Guarda Republicana. Ele enfrenta seu primeiro desafio interno sério, e o tempo dirá se o círculo dirigente será capaz de encontrar soluções para essa crise ou se irá se desintegrar sob a enorme pressão interna e externa.
Para ambos os líderes, o teste decisivo foi, ou é, a lealdade dentro do círculo dirigente. Mesmo com as generalizadas deserções no Exército durante a revolta da primavera de 1991, o regime iraquiano não esteve ameaçado. O Baath abordou a questão da forma habitual: recompensando quem denunciava os desertores e punindo quem os ajudava − o CCR ordenou que os desertores tivessem as orelhas cortadas, assim como quem os escondesse.
Saddam Hussein explicou a seu gabinete: “Tentei várias vezes dissuadir a direção de recorrer a essas medidas [cortar mãos e orelhas], pois sei que vamos matar de 5 mil a 6 mil pessoas na operação. Mas acabei aceitando…”.13 Ainda é cedo para dizer se as deserções vão desestabilizar o grupo dirigente sírio e gerar cisões, mas a experiência mostra que, para lutar contra a oposição, esses regimes apoiam-se num pequeno número de fiéis entre os soldados e membros dos serviços de segurança.
Ignorando a realidade
Saddam Hussein e Bashar al-Assad sempre optaram por soluções provisórias para os problemas, o que lhes dava alguma margem de manobra. Eles agem com a convicção profunda de que têm razão e de que o tempo jogará a seu favor. Ao longo da década de 1980, durante a Guerra Irã-Iraque, o presidente iraquiano recusou-se a admitir que o regime do aiatolá Ruhollah Khomeini não estava à beira do colapso, agarrando-se à ideia de que o Irã poderia ser facilmente derrotado. Quando a guerra terminou, ele comentou: “Fizemos bem em ordenar que o povo iraquiano comemorasse [a vitória]. O povo iraquiano precisa que lhe digam o que deve fazer”.14
Na década de 1990, quando a ONU impôs sanções rigorosas, Saddam Hussein multiplicou os pequenos gestos para com a organização, mas rejeitou o programa “Petróleo por comida”15 durante vários anos, convencido de que poderia conseguir um acordo melhor, até acabar cedendo; o povo iraquiano pagou caro por essa falta de visão. Da mesma forma, as emendas propostas por Bashar al-Assad nos planos da Liga Árabe para acabar com a violência na Síria são medidas dilatórias que pretendem retardar os compromissos reais.
Mas há diferenças entre os dois regimes. Saddam Hussein construiu seu sistema de cooptação e criou uma vasta rede de recompensas e punições que permitiu ao regime sobreviver durante 35 anos, a despeito das muitas guerras, levantes e severas sanções. Ele também conseguiu criar uma base que se manteve fiel, e o regime certamente não teria sido derrubado sem a intervenção norte-americana de 2003.
Já Bashar al-Assad não tem raízes tão sólidas, nem militar nem politicamente. Além disso, o Iraque é um país rico em petróleo, e as sanções acabaram paradoxalmente reforçando o controle do poder sobre o mundo dos negócios, centralizando as atividades econômicas nas mãos do governo. A economia da Síria, ao contrário, é mais aberta ao mundo, e seu colapso poderia colocar em risco os apoios econômicos a Bashar al-Assad. Sua decisão de revogar, no início de outubro de 2011, a proibição sobre a importação de bens de consumo, apenas uma semana após ela ter entrado em vigor, evidencia o peso do mundo dos negócios. Além disso, a fuga de dinheiro sírio para o exterior, principalmente para o Líbano, não é um bom augúrio para o regime.
A questão é saber se Bashar al-Assad ainda pode salvar seu poder ou se vai continuar distorcendo a realidade, para, assim como Saddam Hussein, só perceber o tamanho de seus erros de cálculo quando já for tarde demais.
Joseph Sassoon é Professor da Universidade de Georgetown, em Washington, DC, atualmente destacado no All Souls College, em Oxford. Acaba de publicar Saddam Hussein1s Ba’th party: inside an authoritarian regime (O partido Baath de Saddam Hussein: os bastidores de um regime autoritário} Cambridge University Press , 2012.