Como papai me colocou em Harvard
Para selecionar seus alunos, as universidades norte-americanas levam em conta vários critérios: resultados escolares, origem étnica, local de residência e até mesmo sexo. As instituições de maior prestígio consideram também a linhagem familiar do candidato. Elas favorecem os filhos de ex-alunos, praticando assim uma forma de discriminação positiva… para os ricos
Os norte-americanos aprendem isto desde a mais tenra infância: a partir da Guerra da Independência (1775-1783), os Estados Unidos rejeitaram a ordem hereditária em favor da lei estabelecida “pelo povo e para o povo”. Thomas Jefferson, um dos pais fundadores, escreveu que seus concidadãos aspiravam a uma “aristocracia natural” baseada em “virtude e talento”, em vez de a uma “aristocracia artificial” baseada na fortuna e no nascimento, como no Reino Unido.
De todas as violações desse princípio cardeal, a consequência mais grave foi certamente o sistema de discriminação racial infligido à população negra. Mais discreta, outra transgressão decisiva foi posta em prática no início do século XX: a inclusão da linhagem nos critérios de admissão das principais universidades do país. No momento da inscrição, jovens candidatos recebem de fato tratamento preferencial quando um de seus progenitores – geralmente o pai – frequentou a escola. “Ao reservar lugares para membros da pseudoaristocracia ‘de fortuna e de nascimento’”, escreve o ensaísta Michael Lind, “o direito de sucessão universitária introduziu a serpente aristocrática no jardim do Éden da república democrática.”1
Hoje, esses critérios de seleção hereditária (legacy preferences) estão em vigor em três quartos das cem universidades norte-americanas mais bem cotadas, públicas e privadas. Eles também reinam nas cem melhores escolas de “artes liberais” do país. Além dos resultados escolares, da cor da pele, do sexo e da origem geográfica, essas instituições levam em consideração a família dos candidatos, sem revelar o peso que atribuem a cada um desses critérios. A concentração dos filhos de ex-alunos cresce em proporção ao prestígio da instituição. De acordo com uma pesquisa recente do Harvard Crimson, 29% dos novos estudantes de primeiro ano têm pais que fizeram seus estudos em Harvard.2 Essa reprodução das elites pela via familiar se sobrepõe a uma falta de diversidade socioeconômica que se torna cada vez mais gritante nos estabelecimentos de alto padrão. Embora a Universidade Harvard se orgulhe de que no início do próximo ano letivo seus novos alunos serão na maior parte não brancos, um estudo publicado em 2017 indica que mais da metade dos estudantes pertence aos 10% das famílias mais ricas do país. Aqueles procedentes do 1% das famílias mais ricas são quase tão numerosos quanto seus pares dos 60% mais pobres.
Em um ambiente já marcado pela preponderância das desigualdades sociais, o privilégio dinástico representa um nível ainda mais elevado de favoritismo. Como ressalta o autor britânico Richard Reeves, pesquisador da Brookings Institution, a classe média alta não se contenta mais em beneficiar sua descendência comprando casas nos bairros chiques onde as melhores escolas estão concentradas: eles usam seus nomes como um privilégio. “Papai não nos ajuda mais apenas brincando de luta livre conosco no jardim”, ele escreveu. “Agora, papai suborna o juiz.”3
Solidamente estabelecido nos Estados Unidos, esse direito de sucessão universitária é “praticamente desconhecido em qualquer outro lugar”, observa o jornalista Daniel Golden, que o vê como “quase exclusivamente norte-americano”.4 Como um país nascido de uma revolução contra a aristocracia pôde se mostrar um terreno tão fértil para a seleção pela filiação? Que justificativas permitem a esta impor-se com o conhecimento de todos e com uma aparente racionalidade?
A seleção hereditária foi introduzida no rescaldo da Primeira Guerra Mundial, com o objetivo de conter a afluência de estudantes imigrantes – especialmente judeus – nos estabelecimentos abastados da Costa Leste. Descontentes de ver os recém-chegados humilharem a fina flor das elites anglo-saxãs no campo da meritocracia, os reitores de início adotaram cotas de judeus. Quando esses dispositivos se tornaram indefensáveis, as universidades começaram a usar meios indiretos para excluir os judeus, sobretudo a introdução de critérios tão absurdos quanto “caráter”, “diversidade geográfica” ou “ascendência familiar”.
Um século depois, os critérios de hereditariedade continuam a agir como uma arma de discriminação em massa. Segundo os advogados John Brittain e Eric Bloom, os estudantes pertencentes às minorias sub-representadas (negros, hispânicos, nativos americanos) respondem por 12,5% das candidaturas às universidades seletivas, mas constam em apenas 6,7% das candidaturas aprovadas, em benefício daqueles que podem fazer valer sua linhagem.5
Os defensores, por vezes, argumentam que o filtro hereditário é apenas uma forma, entre outras, de desempatar a disputa entre candidatos igualmente qualificados. Na realidade, ele não se reduz a uma simples ajuda do destino. Um estudo realizado por pesquisadores da Universidade de Princeton demonstra, com base em uma amostra de dez dos estabelecimentos mais exclusivos do país, que ser “filho de” equivale a um bônus de 160 pontos (de um total de 1.600 pontos possíveis) no teste de avaliação escolar (Scholastic Assessment Test, SAT), a prova-padrão a que a maioria dos postulantes deve se submeter para entrar em uma universidade norte-americana.6 Em 2011, uma pesquisa realizada em trinta instituições de elite constatou que, em igualdade de qualificações, os filhos de ex-alunos tinham 45 pontos percentuais a mais de chances de admissão do que os candidatos não herdeiros.7 Em outras palavras, um estudante que tem 40% de chance de ser admitido com base em seus méritos e em seu perfil (resultados do SAT, qualidades esportivas, gênero etc.) vê esse percentual subir para 85% no caso de hereditariedade favorável.
“Em universidades seletivas, os filhos de ex-alunos geralmente representam de 10% a 25% da população estudantil”, diz Daniel Golden. “O fato de essas proporções variarem pouco ano a ano sugere que existe um sistema informal de cotas internas.” Em contraste, uma escola grande como o California Institute of Technology [Instituto de Tecnologia da Califórnia], que se recusa a favorecer os herdeiros, tem apenas 1,5% de filhos de ex-alunos.
Às vezes, ouve-se dizer que o privilégio dinástico reforça o apego dos ex-alunos à sua instituição, o que os encoraja a lhe oferecer doações mais generosas. Mas nenhum dado empírico valida essa afirmação. Uma equipe de pesquisadores liderada por Chad Coffman, do instituto Winnemac Consulting, examinou as doações feitas por ex-alunos para as cem universidades mais conceituadas entre 1998 e 2007. Disso se depreende que as instituições que reconhecem um direito de sucessão universitária com certeza recebem, em média, um valor maior por ex-aluno (US$ 317 contra US$ 201), mas essa diferença se deve ao fato de seus doadores serem mais ricos que os outros. Os autores do estudo não encontraram “nenhuma evidência de que as políticas de favoritismo familiar afetem o comportamento dos doadores”. Eles também analisaram em detalhe as contribuições feitas às sete instituições que abandonaram esse método de seleção durante a pesquisa. Mais uma vez, não encontraram “nenhum traço significativo de declínio após a abolição do privilégio familiar”.
Um ataque à Constituição
Instalado nos Estados Unidos há um século, o bônus concedido aos herdeiros enfrenta, no entanto, questionamentos que põem em dúvida hoje sua viabilidade a longo prazo. Em fevereiro de 2018, grupos de estudantes de uma dúzia de universidades de prestígio começaram a se mobilizar contra os privilégios hereditários. Em Princeton, Yale, Cornell, Brown, Columbia e Chicago, organizações estão exigindo – sem sucesso – a realização na primavera de um referendo para perguntar aos alunos se eles acham justo o sistema de bonificação para “os filhinhos de papai”.
Fora dos campi, a mobilização recebe apoios às vezes inesperados. Em outubro de 2017, o presidente do Federal Reserve de Nova York, William Dudley, declarou em um discurso que as prerrogativas familiares eram “perfeitamente injustas” e que “colocar no lixo esse tipo de política só pode promover a mobilidade social”. E é de se perguntar: “Nós realmente queremos encorajar em nossas grandes universidades algo que nada mais é do que uma política de ‘admissão por doação’?”.
Pode ser que a justiça, mais cedo ou mais tarde, resolva o problema. Curiosamente, até o momento o direito de sucessão universitária só foi objeto de um litígio perante um tribunal federal, em 1975, por iniciativa de uma infeliz postulante da Universidade de Chapel Hill, na Carolina do Norte. Jane Cheryl Rosenstock achava que seus direitos constitucionais haviam sido ultrajados por favores concedidos a outros candidatos – entre eles filhos de ex-alunos, mas também pessoas de condição modesta ou oriundas de minorias. Sua queixa foi rejeitada. Os resultados medianos obtidos pela queixosa no SAT (850 pontos de 1.600) certamente não funcionaram a seu favor, mas o juiz também não apreciou o questionamento desses privilégios, retomando a ideia segundo a qual eles eram indispensáveis para o financiamento das universidades.
Como Steve Shadowen e Sozi Tulante,8 muitos advogados argumentam, no entanto, que essa discriminação universitária atenta contra a Constituição, em particular contra a 14ª Emenda. Originalmente concebida como um freio às discriminações contra os afro-americanos, essa emenda estende-se mais geralmente às “preferências baseadas na linhagem”, segundo a fórmula do ex-juiz da Suprema Corte Potter Stewart. Ele argumenta que os indivíduos devem ser julgados por seus próprios méritos, e não em função de sua ascendência.
O Congresso também poderia ter uma palavra a dizer. Com pesquisas que indicam que três entre quatro norte-americanos lhe são hostis, o direito de sucessão universitária tornou-se politicamente embaraçoso, em especial pelo fato de a justificativa defendida por seus advogados – o efeito supostamente de incentivo sobre os doadores – se revelar uma faca de dois gumes: a receita poderia ver nisso uma razão para suspender os cortes de impostos concedidos a esses mesmos doadores. De fato, se se reconhece que eles recebem um benefício em troca de sua doação, seu acordo com as universidades vai contra as regras sobre deduções fiscais que regem as obras de caridade: uma doação não deve enriquecer o doador.
Enquanto isso, o absurdo desse modo de seleção ilustra o desafio crucial representado pelo acesso às grandes universidades. Os benefícios de estudar em uma dessas instituições douradas são surpreendentes. Primeiro, no nível da educação: uma universidade média gasta US$ 12 mil por ano na formação de um de seus alunos, contra US$ 92 mil nas mais seletivas. E em termos de renda: em qualificações iguais, esses graduados ganham um salário 45% maior em média do que seus pares que estudaram em instituições menos conhecidas – uma lacuna que explode se considerarmos apenas os alunos de origem modesta. De acordo com um livro de Thomas Dye que se tornou um clássico, mais da metade dos grandes donos de empresas e cerca de 40% dos líderes governamentais estudaram em uma das doze universidades mais cotadas.9 A história não diz quantos foram admitidos por causa do sobrenome…
*Richard D. Kahlenberg é pesquisador da Century Foundation, especialista em questões educacionais. Coordenador da obra Affirmative Action for the Rich: Legacy Preferences in College Admissions [Ação afirmativa para os ricos: preferências legadas em admissões em faculdades], Century Foundation, Nova York, 2010.