Como viveremos juntos? How will we live together? Comme vivremo insieme?
Mas o que significaria liberdade nas condições atuais, para responder à pergunta inicial da Bienal “Como viveremos Juntos?” Significa aceitar nossa sociedade contemporânea, com suas diferenças nacionais, étnicas e culturais e a possibilidade de escolher trajetórias e estilos de vida diversos
A indagação colocada pela curadoria da 17ª Bienal Internacional de Arquitetura de Veneza, em 2021, com curadoria do arquiteto Hashim Sarkis, remonta ao título da aula inaugural do filósofo, crítico literário e semiólogo francês Roland Barthes que, a convite de Michel Foucault, ministrou no curso de Semiologia Literária no Collège de France, em meados da década de 1970[i][ii].
A pergunta de Barthes nasce do questionamento de “Como encontrar a distância certa entre mim e meu próximo para que uma convivência social aceitável seja possível para todos nós?” e encontra uma resposta direta na idiorritmia como forma de viver, ou seja, um sistema em que, ainda que em comunidade, cada um deve ser capaz de encontrar e preservar o seu próprio ritmo autônomo de vida.
A justificativa da premiação póstuma de Lina Bo com o Leão de Ouro Especial pelo conjunto de sua obra, nas palavras de Hashim Sarkis, não poderia ser mais oportuna, pois “Em suas mãos, a arquitetura se torna verdadeiramente uma arte social”. Apesar de se basear em um traço de união entre o tema e a homenageada, o prêmio maior de uma das mais importantes bienais de arquitetura não é suficiente para explicar o tardio reconhecimento de uma das arquitetas italianas (fora da Itália) mais importantes do século XX. Sem dúvida, o prêmio marca indelevelmente o retorno de Lina à Itália, mas desenha uma “geografia emocional” suave, não romântica, pois expõe a alternância de registros nos dois países onde a arquiteta viveu: no Brasil, país onde sempre foi referência, sobretudo no campo da regeneração urbana, e onde construiu uma trajetória tendo como pano de fundo as tensões políticas de décadas de ditadura militar; e na Itália, onde nasceu, viveu o impacto da guerra, teve sua experiência formativa e se casou com Pietro Maria Bardi, que possuía ligações explícitas com o fascismo de Mussolini.
Esses questionamentos representam diferentes nuances ou caracterizações de identidade que, se observadas com ampliação do campo visual, ajudam a recompor a condição existencial e identitária que a aproximou do Brasil e a distanciou de sua terra natal, para onde agora retorna em outro patamar. Um retorno como o de muitos arquitetos que viveram a mesma questão às avessas – principalmente os judeus – e que tiveram, como ela, a experiência da imigração geográfica e/ou interior: fizeram uma viagem ao desconhecido de onde regressaram com um ato criativo de rebeldia e/ou oportunidade e onde construíram obras capazes de regenerar sua identidade e raízes comunitárias em outro contexto.
Nesse percurso de retorno, somos levados a refletir sobre as capacidades e limites dos contextos territoriais e dos sistemas sociais (entre público e privado, com e sem fins lucrativos) para responder com adequada inteligência coletiva às visões movidas por buscadores-produtores de sentido, vínculos e sociabilidade; em outras palavras, para facilitar a cooperação entre diferentes pessoas em uma relação de igualdade, quase inspirada na metáfora, conhecida no campo da inovação social, das abelhas e das árvores.

Entre essas visões, o desejo de experimentar novas relações de colaboração ou a própria resiliência colocada a serviço do bem comum, a reorganização e a afirmação dos próprios direitos, a liberdade de questionar as orientações econômicas, sociais e culturais dominantes, a necessidade de encontrar uma mediação entre lugares e identidades, a consciência de promover a cultura como diálogo, a autenticidade das relações e do fazer junto e para todos como a resposta mais natural possível a uma demanda de conexão e construção do sentido do humano.
A obra de Lina – reinventando o modo de trabalhar, agregando pessoas e estabelecendo um profundo sentido de equipe – foi e é capaz de marcar a cadência desse retorno, pois desvela a existência de percursos inesperados mas conscientes, de mulheres que determinaram a mudança de lugares, territórios e abriram novas possibilidades de recuperação de contextos. Em particular, três primeiras contribuições desempenham função introdutória na leitura de suas obras e enfatizam três aspectos peculiares: os caminhos possíveis dentro dos quais agir para desarmar os “curtos-circuitos do sistema operacional mutualístico” do universo masculino e remediar as falhas da inovação social; a transformação contínua do museu como um local de futuro propulsor para a regeneração urbana; as identidades em movimento e precário equilíbrio, entre partidas e retornos criativos e emocionais, orientados para a construção do sentido e do bem comum.
Nesse ritmo, que é pano de fundo de um novo e almejado paradigma cultural, a mudança de perspectiva – que representa mais uma força – está também nos significados e destinatários da narrativa que atravessa questões incômodas. E assim, um dos ícones da arquitetura moderna em São Paulo, o museu de arte da cidade, conhecido como MASP, que consubstancia um grande espaço público, é descrito pelo compositor John Cage como “(…) a arquitetura da Liberdade !”.
Mas o que significaria liberdade nas condições atuais, para responder à pergunta inicial da Bienal “Como viveremos Juntos?” Significa aceitar nossa sociedade contemporânea, com suas diferenças nacionais, étnicas e culturais e a possibilidade de escolher trajetórias e estilos de vida diversos. Somente dessa forma, as questões colocadas por Roland Barthes e Henri Lefebvre, podem nos mostrar como a liberdade, tanto individual quanto coletiva, é estritamente ligada ao ambiente em que vivemos, portanto ao ambiente construído, o ambiente urbano por excelência.
Nesse ponto, os questionamentos atuais transformam-se em importantes temas de projeto a serem desenvolvidos, seja por exercícios nas escolas de arquitetura, seja na vida profissional onde cada projeto ou espaço urbano represente uma Fábrica de Poema, sonho de uma de arquitetura ideal (Wally Salomão, 2001) [iii]. Fala-se das escalas, das formas, dos usos e das funções, dos programas e de sua montagem. Fala-se também de atores e da lógica de atores que influem nas formas urbana e arquitetônica. Fala-se também de temporalidades. Mas projetar como Lina, cujas histórias e contextos entram na sua pauta de reflexão, significa explorar fronteiras. E uma fronteira, ao mesmo tempo que separa dois países também os une, já que uma fronteira jamais é estanque e de mão única.
Adalberto da Silva Retto Jr é professor da Universidade Estadual Paulista. Doutor pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo e pelo Departamento de História da Arquitetura e Urbanismo do Instituto Universitario de Arquitetura de Veneza (2003). Professor-pesquisador Visitante no Master Erasmus Mundus TPTI (Techiniques, Patrimoine, Territoire de l Industrie: Histoire, Valorisation, Didactique) da Universitè Panthéon Sorbonne Paris I(2011-2013).
[i] Roland Barthes, Comment vivre ensemble, cours et séminaire au collège de France (1976-1977) 2000. Seuil, Paris.
[ii] Fábrica de Poemas
(In memoriam Donna Lina Bo Bardi)
sonho o poema de arquitetura ideal
cuja própria nata de cimento encaixa palavra por
palavra,
tornei-me perito em extrair faíscas das britas
e leite das pedras.
acordo.
e o poema todo se esfarrapa, fiapo por fiapo.
acordo.
o prédio, pedra e cal, esvoaça
como um leve papel solto à mercê do vento
e evola-se, cinza de um corpo esvaído
de qualquer sentido.
acordo,
e o poema-miragem se desfaz
desconstruído como se nunca houvera sido.
acordo!
os olhos chumbados
pelo mingau das almas e os ouvidos moucos,
assim é que saio dos sucessivos sonos:
vão-se os anéis de fumo de ópio
e ficam-se os dedos estarrecidos.
sinédoques, catacreses,
metonímias, aliterações, metáforas, oximoros
sumidos no sorvedouro.
não deve adiantar grande coisa
permanecer à espreita no topo fantasma
da torre de vigia.
nem a simulação de se afundar no sono.
nem dormir deveras.
pois a questão-chave é:
sob que máscara retornará o recalcado?
(mas eu figuro meu vulto
caminhando até a escrivaninha
e abrindo o caderno de rascunho
onde já se encontra escrito
que a palavra “recalcado” é uma expressão
por demais definida, de sintomatologia cerrada:
assim numa operação de supressão mágica
vou rasurá-la daqui do poema.)
pois a questão-chave é:
sob que máscara retornará?
Waly Salomão, Poesia total, 2001.