Comunicação popular e comunitária salvam vidas durante a pandemia
De norte a sul do país, negros/as, mulheres e povos e comunidades tradicionais produziram iniciativas de comunicação que contribuíram no enfrentamento da Covid-19
De nós para os nossos! Esse foi o lema que unificou comunicadoras e comunicadores populares e as lutas antirracistas e por igualdade de gênero em um ano pandêmico. O chamado também orienta o manifesto da iniciativa #CoronaNasPeriferias, uma coalizão nacional de coletivos de comunicação e periferias criada em março de 2020 no intuito de produzir conteúdos informativos e ações territoriais contra o novo coronavírus, considerando a diversidade de linguagens e modelos de organização local.
Desde que a pandemia de Covid-19 chegou ao Brasil, de norte a sul do país foram desenvolvidas estratégias das mais diversas para enfrentá-la. Sem dúvida, o papel da comunicação comunitária, mídias livres e jornalismo independente, além do trabalho desenvolvido por movimentos sociais, foi determinante para que os números de infectados e de mortos não fossem ainda maiores do que já são.
Enquanto os órgãos do Executivo, Legislativo e Judiciário, com raras exceções, mantiveram políticas de deixar morrer – com a demora na aprovação e inúmeras dificuldades de acesso ao auxílio emergencial – ou políticas de matar – com a disseminação de informações falsas sobre o tratamento do novo coronavírus, sobretudo por parte da Presidência da República –, nos territórios vulnerabilizados, a palavra de ordem foi colaboração.
A Covid-19 encontrou um país já arrasado pelo racismo estrutural, violência de gênero e negação do direito à comunicação. Na ausência do Estado, a sociedade civil enfrenta agora mais um fim do mundo com tecnologias sociais aliadas à comunicação digital – quando a conexão é possível. Não faltou megafone, rádio-poste, barcos equipados com cornetas, moto de som, cartazes, checagem de notícias no WhatsApp, áudios informativos circulando em bicicletas e paródias para informar sobre métodos de higiene e isolamento necessários na prevenção ao novo coronavírus. Para boa parte das mais de 13 milhões de pessoas que vivem em favelas, milhares em situação de rua ou em áreas rurais, essas foram as únicas fontes de comunicação segura.
Os conhecidos instrumentos da comunicação popular ganharam mobilidade e escala, dada a urgência do momento. Nesse processo, o fortalecimento dos laços comunitários e o reconhecimento territorial se tornaram expressivas alternativas contra a desinformação.
A experiência da Vila Brasilândia, na zona norte de São Paulo, é um exemplo. Desde o início da pandemia foi montada a rede Brasilândia Solidária, que uniu organizações comunitárias do território para mobilizar estratégias de informação e apoio às famílias. A Rádio Comunitária Cantareira, fundada no bairro em 1995, foi fundamental no processo de produção e distribuição de conteúdos informativos, passando a contar com carros de som e até minitrio para reforçar as mensagens de prevenção. Segundo a série “Pandemia e Desigualdade”, do Instituto Polis, as ações integradas, realizadas nas comunidades, foram responsáveis por conter a doença nos territórios vulnerabilizados em São Paulo.
Em Recife, na favela do Totó, a cineasta Yane Mendes, com mais dois amigos, iniciou um trabalho voluntário de “tradução” das mensagens sobre prevenção contra o coronavírus feitas pela Secretaria de Saúde do município. Com cartazes colados ao lado dos boletins oficiais, a Rede Tumulto usou termos familiares à comunidade para tratar de assuntos referentes à pandemia. Yane critica que “os meios de comunicação em que eles [governos] gastaram inúmeros recursos não dialogavam de maneira nenhuma, não tinham funcionalidade dentro das periferias”.
Sobre os efeitos positivos das ações realizadas pela rede, ela afirma que “mais do que nunca, na pandemia, ficou comprovado que a comunicação que a gente faz é a comunicação que chega e não rodeia tanto para aquilo que se quer falar. A gente enxerga na conversa do vizinho, numa porta de casa, o meio, uma ferramenta de comunicação. E também tem a diferença dos territórios. Tem território que um cineclube funciona melhor, tem território que está botando um áudio, em outro numa caixa de som na laje é melhor, e há outros em que os cartazes funcionam”.
Na região amazônica, destaca-se o trabalho da Rede Mocoronga de Comunicação. No território, os rios são vias por onde navegam informações de prevenção para 76 comunidades da Reserva Extrativista Tapajós-Arapiuns, no Pará. Como parte do projeto Saúde e Alegria[1], a rede intensificou em 2020 suas iniciativas de comunicação já conhecidas pela comunidade, com alerta especial para a Covid-19. Os programas de rádio, fotonovelas e produções audiovisuais somaram-se com iniciativas de produção e distribuição de cartazes. Uma corneta foi adaptada ao barco-hospital do projeto que visitou periodicamente os ribeirinhos, reproduzindo paródias de músicas famosas na região como meio de informação, organizadas pelo coletivo Jovens Tapajônicos.
Walter Kumaruara, jovem liderança indígena que coordena as iniciativas, contou que a rede seguiu incentivando a produção local através de rádios-poste e da premiação Mocorosca, uma espécie de “Oscar” amazônico. “Fizemos o Mocorosca em 2020, incentivando os jovens a produzir mensagens educativas sobre a prevenção à Covid-19. A ideia desses cartazes era para colar dentro de casa, ensinando como se higienizar e o que fazer quando vem da comunidade para a cidade e da cidade para a comunidade. Porque tem toda a questão do cuidado. Quando você leva a compra da cidade para a comunidade está levando esse vírus. Então a melhor forma de higienizar as sacolas, tudo isso, era repassado”.
Colaboração e modelos de conexão nos territórios
Todas essas experiências apontam para uma sintonia entre a comunicação comunitária, as mídias livres e o jornalismo independente no que se refere aos usos e concepções de tecnologias e atuação territorial. Não há, nesse sentido, uma tentativa de superação das formas de comunicação já existentes, mas uma busca pela convivência e experimentação com o que já é desenvolvido nos territórios.
Essa articulação é conceituada pela pesquisadora Raquel Paiva, do Laboratório de Estudos em Comunicação Comunitária, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (LECC/UFRJ), como Epistemologias Compreensivas. “A ideia central é que, teoricamente, possamos construir objetos capazes de dar conta do território que habitamos. Um número cada vez mais significativo se propõe a compreender a realidade do outro, a intervir, exercitando em toda a sua amplitude os princípios básicos da essência humana de convivialidade. A ordem atual deixou bastante evidenciada a necessidade do aterramento e construção coletiva de ciência que possam atuar de maneira gerativa no território, com dignidade e respeito mútuo. Alguns desses grupos fizeram rede e estabeleceram conexões entre si, independente do lugar, cidade ou estado onde estão. Diante do abandono completo do estado, os coletivos arregaçaram suas mangas e se fortaleceram graças, em primeiro lugar, às suas intrínsecas e orgânicas redes nos territórios onde atuam e, em segundo lugar, com as possibilidades que a digitalização oferece, puderam romper barreiras físicas”.
Na perspectiva do mencionado por Paiva, ações importantes foram os serviços colaborativos de checagem, produção e disseminação de informações em arquivos de áudio e para aplicativos de mensageria. Com um crescente número de desconectados ou conexões precárias à internet no país, a solução emergencial para disseminar informações seguras foi ocupar aplicativos como o WhatsApp.
Vale frisar que esses aplicativos têm se tornado espaço fértil para a disseminação de notícias falsas e, ao mesmo tempo, ocupando espaços não povoados por fontes diversas de informação e produção de notícia. Os desertos de notícias são exemplos de espaços vazios, que, segundo levantamento do projeto Atlas da Notícia/2019, atingem cerca de 62% dos municípios brasileiros, os quais não contam com meio de comunicação de jornalismo local.
Buscando atuar e reverter os efeitos de um contexto em que as notícias falsas aprofundaram a crise sanitária, muitos coletivos entraram no “zap” para realizar um trabalho de redução de danos. Foi o caso da iniciativa soteropolitana Dendicasa, um noticiário para o WhatsApp em formato de áudio que buscou apurar e desmobilizar notícias falsas que circulavam nos grupos do aplicativo. A iniciativa também divulgou informações importantes sobre fechamento e reabertura dos bairros soteropolitanos, fases de testes das vacinas de imunização contra o coronavírus e rede de atendimento à doença em Salvador. O noticiário foi ao ar entre abril e agosto de 2020, com 36 episódios distribuídos em listas de transmissão e sites de streaming.
Outras iniciativas de escala municipal e regional apostaram na colaboração entre vários coletivos para alcançar mais pessoas. O projeto Pandemia sem Neurose foi um podcast organizado pelos coletivos Desenrola e não me Enrola, Alma Preta e Periferia em Movimento, que produziram e checaram notícias para as diversas periferias de São Paulo e tiveram como principal meio de distribuição os aplicativos de mensageria.
“A distribuição foi focada no WhatsApp, em grupos estratégicos e listas de transmissão, chegando, diretamente, a mais de 2 mil pessoas a cada edição. Alguns episódios também foram veiculados em rádios comunitárias como Cantareira FM e Heliópolis FM. Os retornos foram variados, desde pessoas iletradas que viram na ferramenta de áudio um meio seguro de obter informação até pessoas que sugeriam pautas para os boletins. Os áudios também eram reenviados a diversos grupos, de ocupações por moradia a catadores de recicláveis”, relata Thiago Borges, do Periferia em Movimento.
Outra experiência de comunicação popular desenvolvida durante a pandemia, o podcast Existo Norte-Nordeste decidiu conectar diferentes partes do país ao apostar na parceria regional entre jovens do Pará, Pernambuco e Fortaleza, os quais compartilham, semanalmente, as vivências dos seus territórios e oferecem dicas de como enfrentar o isolamento, criando alternativas de cultura e educação.
As concepções de tecnologias compartilhadas por esses e outros coletivos parecem tensionar o paradigma da convergência da comunicação, uma ideia disseminada na primeira metade do século XXI, e muito conhecida no Brasil a partir do livro “A cultura da convergência”, do pesquisador em comunicação Henry Jenkins.
A hipótese do paradigma era de que, na contemporaneidade, o consumo de tecnologias digitais formaria comunicações híbridas com uma certa “inteligência coletiva” e uma “cultura participativa” para superar o individualismo. Ao que parece, as experiências de comunicação popular e comunitária, geradas nos territórios, questionam o lugar do individual não por causa do consumo de tecnologias, mas porque está fora dos princípios das comunidades tradicionais e periféricas não pensar o comum como modo de organização, em qualquer circunstância.
O possível caráter hibridista das comunicações digitais, que unifica diversas formas de comunicação em um “novo” modelo infértil, não representa as possibilidades múltiplas de comunicações gestadas na vontade de transformar e preservar aspectos da realidade concreta no território. A maioria das iniciativas off-line encontraram lugar no ambiente digital sem reduzir seus núcleos de atuação, ao passo que as iniciativas digitais foram levadas a realizar trabalhos territoriais através das velhas gambiarras que cumpriram uma dupla função: de fazer a informação chegar às pessoas, ao mesmo tempo em que denunciava ao país a existência de mais de 47 milhões de pessoas desconectadas da internet.
As estratégias de implementação de redes comunitárias on-line e off-line, neste sentido, também surgem como oportunidade de descentralizar e distribuir o digital, banindo usos únicos de plataformas e alargando a ideia do fazer tecnológico e de internet. A formação de redes antirracistas, acessíveis e feministas no Brasil são estratégias que vão ao encontro do “aterrar” para possibilidades de internet(s) possíveis.
Corpos dissidentes na agenda da democratização da comunicação
Em 2013, a partir das jornadas de junho, não faltou literatura que identificasse o ressurgimento das alternativas de mídias ou midiativismo no Brasil a partir dos centros urbanos, em torno dos usos de tecnologias digitais, ações diretas, mas sem uma cara bem definida. Desde então, com o acirramento das lutas antirracistas e pela igualdade de gênero, é possível perceber com nitidez a identidade de quem está por trás e na frente das telas reivindicando representação e saberes/fazeres tradicionais na luta pela democratização das comunicações. Não é por acaso que as iniciativas apresentadas aqui são protagonizadas por negros/as, mulheres e jovens de periferias, comunidades tradicionais e rurais.
Não bastasse a crise sanitária, os índices de violência policial contra jovens negros, o feminicídio e os ataques aos territórios tradicionais aumentaram em escala exponencial, exigindo uma mobilização redobrada dessa população contra as violações de direitos.
Antes mesmo da pandemia chegar, um silêncio ensurdecedor pairou na mídia tradicional em relação aos impactos do derramamento de petróleo que atingiu a costa brasileira em 2019 e seguiu em 2020, inviabilizando as formas de vida em pelo menos 1.009 localidades de marisqueiras, pescadoras e demais povos que têm seus modos de vida entrelaçados com o mar. Para quebrar a invisibilização desses grupos e denunciar o racismo ambiental, surgiu o projeto Ondas da Resistência – que denunciou a falta de cobertura do caso nas mídias tradicionais e, com artigos, debates e podcast, amplificou as vozes das comunidades atingidas pelo petróleo e pela Covid-19.
Para os povos indígenas, que há 521 anos resistem às doenças trazidas pela colonização europeia, 2020 foi o ano de se fazer ouvir o som dos maracás cada vez mais longe. Com o agravamento da pandemia colocando em risco mais de 50% dos povos originários, sobretudo anciãs e anciãos, responsáveis por guardar a memória das etnias, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) criou a frente Emergência Indígena.
Responsável pela condução de planos de enfrentamento à Covid-19 nos territórios, a iniciativa aliou ações de distribuição de alimentos e construção de hospitais de campanha com a responsabilidade de contar histórias sobre as vidas indígenas perdidas, através do “Memorial Indígena”, e revelar dados do novo coronavírus com o monitoramento permanente de infectados, aldeados ou não. O monitoramento é um trabalho de jornalismo de dados nunca antes feito na história da comunicação brasileira e que soma esforços com outras iniciativas de denúncia do genocídio indígena, como a rede de comunicação Mídia Índia e os festivais de cinema indígena que mantiveram edições on-line.
Coletivamente, as mulheres – as primeiras na linha de frente da luta pelo direito à vida – protagonizaram inúmeras ações no âmbito da comunicação popular, a exemplo do “Conversa de Portão”, podcast semanal, realizado pelo coletivo de comunicação “Nós, Mulheres da Periferia”, que compartilha as experiências das mulheres periféricas de São Paulo e seus desafios para manter a saúde física e mental no contexto de pandemia e isolamento(s). Já a Revista Afirmativa, organização de mídia negra liderada por jornalistas, lançou em 2020 o laboratório de jornalismo Respeita a Favela! As experiências do processo de formação são cotadas no e-book Narrativas afirmativas em tempos de pandemia.
A profusão dessas iniciativas confirma o que escreveu a antropóloga iraniana Niousha Roshani no artigo intitulado “Discurso de Ódio e Ativismo Digital Antirracista de jovens afrodescendentes no Brasil e Colômbia”: “os jovens, e predominantemente mulheres, estão indo além da tentativa de combater o racismo; ao invés disso, estão reivindicando representações de si mesmos e contribuindo para a emergência de uma nova cultura, perturbando o que a escritora Chimamanda Ngozi Adichie chama de ‘o perigo de uma história única’”.
De rede em rede, de território em território, das mais variadas formas, se constituindo no local-local e no local-global, as experiências de comunicação popular e comunitária que surgem pela própria necessidade de comunicar colocam o desafio de que comunicadoras e comunicadores negros/as e de povos e comunidades tradicionais estejam no centro dos debates e da formulação de projetos de regulação e políticas de comunicação no país, propondo alternativas que sigam barrando os retrocessos e avançando em direitos.
Tâmara Terso é jornalista e doutoranda em Comunicação e Cultura Contemporâneas. Paulo Victor Melo é jornalista e doutor em Comunicação e Cultura Contemporâneas. Ambos são integrantes do Conselho Diretor do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.
[1] Grupo de médicos e arte-educadrxs que atuam na promoção do desenvolvimento comunitário integrado em Santarém, Belterra, Aveiro e Juruti, municípios localizados no oeste do estado do Pará. Ver mais em: https://saudeealegria.org.br/