Dificuldades no acesso à internet: expressões do racismo estrutural
Pandemia escancarou múltiplos impactos da ausência de conexão à internet por negros/as, quilombolas, indígenas e moradores de áreas rurais e periféricas. Leia o quarto artigo da série especial Mídia e pandemia: a democracia sob ataque.
Caiana dos Crioulos. Território quilombola localizado na zona rural do município de Alagoa Grande, no agreste da Paraíba. Considerada um dos patrimônios culturais do estado, com forte presença de manifestações populares como o samba de coco e a ciranda, Caiana está a apenas 122 km da capital João Pessoa, mas “bem distante das capitais” quando o assunto é acesso à internet.
Edinalva Rita, que preside a Associação do Quilombo de Caiana, menciona alguns impactos das dificuldades no acesso à internet, especialmente entre crianças e jovens. “Apenas sete jovens da comunidade se inscreveram este ano no Enem e mesmo assim não conseguem estudar, porque o sinal de telefone não pega. Nossa preocupação é como nossos jovens vão disputar uma vaga no Enem e como vão participar da seleção de um emprego se não conseguem ter acesso às informações igual aos jovens da cidade”, questiona.
O fato que preocupa a líder quilombola, vale ressaltar, é um dos principais motivos para o índice recorde de abstenção no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) realizado nos dias 17 e 24 de janeiro de 2021: num contexto de crescimento das contaminações e mortes pela covid-19, 51,5% dos inscritos optaram em resistir à orientação negacionista do Governo Federal e, assim, não foram fazer as provas.
Nesta edição do Enem, foram contabilizados mais de 5,79 milhões de inscritos, segundo o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). Destes, 60% eram negros; 60%, mulheres; e houve ainda um crescimento de 450% na inscrição de pessoas transexuais. Portanto, os dados de abstenção revelam que a única porta de entrada nas universidades públicas para milhares de pessoas em situação de vulnerabilidade foi trancada na pandemia.
No centro político do país, a situação não é diferente. A indígena Nubiã Tupinambá, nascida na Bahia e atualmente vivendo no Distrito Federal, conhece as dificuldades no acesso à internet por uma dupla perspectiva: como doutoranda em Linguística na Universidade de Brasília e como mãe de Poti Porã, estudante de ensino fundamental no Centro Educacional Stella dos Cherubins, em Planaltina.
“Eu, como mãe, vejo que a ausência do professor não auxilia no aprendizado das crianças. Minha filha não conseguia interagir com as aulas e não conseguia tirar as dúvidas”, relata Nubiã, sobre as atividades on-line. “Diferente de minha filha, que tem a maioria das aulas gravada, eu já perdi aulas inteiras ao vivo por falta de conexão, principalmente em dias de chuva e quando tinha queda de energia”, complementa ela.
No caminho entre Alagoa Grande e Planaltina, está Alfavaca, povoado na zona rural de Juazeiro, cidade do sertão da Bahia. Lá, onde mora a agricultora Lilian Clara, a realidade é semelhante quando o assunto é desigualdade no acesso à internet.
Mãe de duas crianças, Lilian frisa que a maior dificuldade na pandemia tem sido a manutenção do estudo de seus meninos. “A internet, eu pego emprestada do vizinho, e não é muito boa. Ou eles têm que ir pra casa da avó acessar. E, como o único celular que eu tenho está ruim, às vezes nós temos dificuldades para acessar e mandar as atividades. Tem sido um pouco estressante para entregar as atividades em dia, porque não temos uma internet boa”, descreve.
As dificuldades que sentem as mães de crianças e adolescentes, como Nubiã e Lilian, são também percebidas pelas trabalhadoras da educação. “O acesso à internet aqui não é muito bom. Poucos têm wi-fi em casa e a rede 3G não funciona em todos os locais. Muitos alunos estudam com celulares emprestados por familiares, vizinhos, ou precisam esperar os pais voltarem do trabalho para acessar as propostas de atividades”, pontuou, em entrevista à revista Nova Escola, Danielle Ferreira, coordenadora pedagógica da Escola Virgínia Garcia Bessa, localizada no quilombo de Castainho, em Garanhuns, Pernambuco.
Em Caiana dos Crioulos, entretanto, nem mesmo essas alternativas de empréstimo de telefone ou de uso compartilhado da internet foram possíveis. Frente à precariedade não apenas da internet, mas também da atuação do Estado na manutenção de estradas, por exemplo, a saída encontrada pela escola da comunidade foi reduzir o processo educacional à realização de atividades semanais em formato impresso.
“São 187 alunos na escola fundamental e apenas uns 5% da comunidade têm internet, que ainda é ruim. Imagina essa quantidade de alunos sem sinal de internet para desenvolver os trabalhos on-line? Então o diretor da escola vem no começo da semana, entrega as atividades e, com oito dias, as devolvemos. E tem mais: a nossa estrada aqui, que dá acesso à cidade, também é muito complicada. Se der uma chuva, às vezes a escola não consegue entregar ou a gente não consegue devolver as atividades”, conta Edinalva.
Quando as filas da Caixa não foram por acaso
Principalmente em maio e junho de 2020, quando as famílias mais vulnerabilizadas começaram a ter direito ao auxílio emergencial – uma garantia de renda mínima complementar a outros programas sociais e criada para minimizar os efeitos da pandemia –, milhares de mulheres e homens, em sua maioria negras e negros, aglomeraram-se nas portas das agências da Caixa Econômica Federal em busca de informações sobre “um dinheiro que viram falar na televisão” e “um aplicativo que tinham que baixar no celular”, expressões que eram comumente ouvidas.
Em artigo publicado na Revista Raça, o militante da questão racial e atual diretor da Fundação Pedro Calmon, Zulu Araújo, escreveu que as filas da Caixa não eram um erro, mas uma expressão do projeto racista de Brasil, já que ali estavam “contidos todos os elementos que deram causa e perduram na relação entre o Estado brasileiro e a população de origem negra e pobre no país: a discriminação, o descaso, o desrespeito e a insensibilidade”.
Os dados dão razão à avaliação de Zulu. Uma nota técnica divulgada em maio de 2020 pelo Projeto Covid-19: Políticas Públicas e as Respostas da Sociedade apontou justamente as dificuldades das populações mais vulnerabilizadas no acesso ao aplicativo do governo federal de solicitação do auxílio emergencial, tanto por quem simplesmente não tinha acesso à rede quanto por quem até dispunha de internet, mas não sabia utilizar.
Num país em que o racismo é fator estruturante das relações sociais, políticas e econômicas, citar a expressão populações mais vulnerabilizadas significa falar no conhecido encontro entre os critérios de raça e classe. E, no tocante ao acesso à internet, não é de outro modo: apenas 33% das pessoas das classes D/E já utilizaram computador de mesa, notebook ou tablet, enquanto esses números são bem maiores nas classes C (62%), B (88%) e A (93%). A desigualdade se observa também no componente racial: somente 48% dos indígenas e 55% das pessoas pretas já utilizaram computador pelo menos uma vez na vida. Entre as pessoas brancas, o índice é de 63%.
O tipo de dispositivo para acessar a rede é outro indicador da desigualdade: 75% de indígenas e 65% dos pretos e pretas utilizam a internet exclusivamente pelo celular, numa proporção superior à das pessoas brancas (51%). Quando acrescida a perspectiva de classe social, essa desigualdade se agrava ainda mais, já que 85% das pessoas das classes D/E têm apenas o celular como meio de uso da internet, uma diferença abissal para as demais: 61% na classe C, 26% na classe B e 11% na classe A.
Os dados acima, da pesquisa TIC Domicílios divulgada em 2020, que analisa o uso das tecnologias de informação e comunicação nas casas brasileiras, dão pistas sobre a profundidade dos problemas enfrentados por indígenas, pessoas negras e pobres do país para acesso a uma política pública que, por opção do Governo Federal, centralizou as informações em um aplicativo conectado à internet.
Segundo Carolina Requena, uma das integrantes do projeto Covid-19: Políticas Públicas e as Respostas da Sociedade, a “centralização da implementação e execução da Renda Básica Emergencial na Caixa Econômica excluiu do processo o Sistema Único de Assistência Social (Suas), que possui relativo sucesso no amparo a populações mais carentes sem acesso à internet ou celular. Ao ficar de fora [o Suas], foram dispensados os Centros de Referência de Assistência Social (Cras), serviço de ponta dos municípios. As filas da Caixa acontecem porque as pessoas, ao terem dificuldade com o aplicativo, recorrem às agências e acabam se tornando um foco de aglomeração”.
Em depoimento ao Jornal da USP, a pesquisadora lembrou também que mais de 7 milhões de brasileiros elegíveis para receber o auxílio não tinham como acessar tecnologias como os aplicativos, “pois vivem em domicílios sem acesso à internet, reflexo da desigualdade social mais que evidente neste momento e que não deve ser ignorada pelo governo”.
Alguns desses brasileiros e brasileiras citados por Requena moram no quilombo Caiana dos Crioulos, na Paraíba, e precisaram sair de suas casas – logo, se expor ao vírus – em busca de ajuda para acessar o aplicativo do Governo Federal. “As famílias aqui não perderam o auxílio emergencial porque foram até a cidade, procuraram estabelecimentos que tivessem internet e pessoas que soubessem usá-la para conseguir fazer o seu cadastro. Ninguém perdeu, mas porque precisamos uns apoiar os outros”, narra Edinalva Rita, demonstrando que, em resposta à negligência institucional, os quilombos resistem com organização e solidariedade.
Decerto os quilombolas da Paraíba não foram os únicos que, por força da necessidade, se deslocaram até centros urbanos para ter a possibilidade de acessar o auxílio emergencial, já que o exposto por Edinalva é, infelizmente, o comum dentre os povos e comunidades tradicionais. Um levantamento realizado pelo Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social e a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) revelou parte do cenário: a partir da aplicação de questionários em 29 comunidades quilombolas de 11 estados brasileiros, verificou-se que o acesso limitado à rede por franquia de dados ou modalidade pré-paga e baixa qualidade do sinal são a tônica.
De acordo com integrantes da Conaq e do Intervozes que sistematizaram os dados do estudo, “computadores também não fazem parte do cotidiano de muitas comunidades quilombolas, exceto nas localidades onde há unidades nas associações de moradores ou nas escolas. Algumas dessas instituições de ensino localizadas nas comunidades foram citadas na pesquisa como centros de informação, já que os computadores podem ser compartilhados com muitas famílias que não dispõem de acesso domiciliar”.
Negar o acesso à internet é parte da necropolítica institucional
Para Givânia da Silva, que é quilombola e doutoranda em Sociologia na Universidade de Brasília, há uma série de nuances na relação internet e povos tradicionais, “porque há os que não têm internet, os que têm acesso a uma internet ruim, os que têm aparelhos com pouca capacidade e os que têm pouco conhecimento em lidar com esses aparelhos, e todos esses problemas se materializam na baixa aprendizagem e no pouco rendimento dos estudantes quilombolas”.
Pesquisadora de educação quilombola e políticas públicas, Givânia chama a atenção para o fato da pandemia não ter criado qualquer desigualdade, mas descortinado o racismo e a negação de direitos que os quilombolas e outros povos e comunidades tradicionais enfrentam todos os dias.
“Serviu para escancarar um problema estrutural que já estava aí. Você não tem acesso à água potável na pandemia porque já não tinha antes. Você não tem a terra regularizada na pandemia porque já não tinha antes. A pandemia potencializou um quadro gerado estruturalmente pelo racismo. A questão é como os quilombos já estavam quando a pandemia chegou. Então, na educação, que foi quase toda agora on-line, também foi assim. Se os quilombos já estavam bem atrás na fila de uma educação de qualidade, foram empurrados ainda mais para trás”, enfatiza.
Essas desigualdades de ordem estrutural que a pesquisadora enumera são amplificadas por um governo que – no discurso e na ação – atua contra os povos e comunidades tradicionais.
No discurso, impossível esquecer falas como: “eu odeio povos indígenas, odeio esse termo”, dita pelo ex-ministro da Educação, Abraham Weintraub; “a escravidão foi benéfica para os descendentes”, feita pelo presidente da Fundação Palmares, Sergio Camargo; ou declarações do próprio presidente da República, que, quando ainda candidato, afirmou que quilombola se pesava em “arrobas” e que, em seu governo, “não teria um centímetro de terra demarcado para reserva indígena ou quilombola”.
Na ação prática, não parece mera coincidência, portanto, que a maior quantidade de vetos de Jair Bolsonaro desde o início de seu mandato presidencial tenha sido justamente ao Projeto de Lei 1142/2020, que dispõe sobre medidas de enfrentamento à covid-19 entre povos indígenas, quilombolas e outras comunidades tradicionais.
Em uma única canetada, na noite de 7 de julho de 2020, foram determinados 22 vetos, dentre eles, ao “provimento de pontos de internet nas aldeias ou comunidades, a fim de viabilizar o acesso à informação e de evitar o deslocamento de indígenas para os centros urbanos”. Aproximadamente um mês e meio depois, em 18 de agosto, o Congresso derrubou 16 dos 22 vetos no texto final do projeto (sancionado como Lei 14021/2020), incluindo o relativo à internet. Porém, até fevereiro de 2021, aproximadamente um ano após o início da pandemia no Brasil, não se verificava qualquer sinal de efetivação da lei.
Em outubro de 2020, diversas organizações da sociedade civil, entre elas o Intervozes e a Conaq, participaram de uma audiência na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) para denunciar as graves violações à liberdade de expressão no Brasil durante a pandemia, entre elas a falta de acesso à internet e as violações ao direito à informação que impactam a vida de indígenas, quilombolas, mulheres, população negra, crianças e adolescentes, moradores de favelas e periferias e população LGBTQI+, entre outros grupos que têm sido privados do direito de acessar informações confiáveis.
No entendimento de Givânia, os vetos do presidente ao PL e a ausência de iniciativas que concretizem o acesso à internet pelos grupos vulnerabilizados são parte daquilo que o filósofo e cientista social camaronês Achille Mbembe qualifica como necropolítica [i]. “O governo Bolsonaro, e o Estado brasileiro de um modo geral, tem a sua ação institucional ou para matar a população negra ou para deixar morrer. No caso da pandemia, estamos sendo deixados morrer, por meio da negação de direitos fundamentais, constitucionais, por decisão exclusiva do presidente da República”, acentua ela.
Propostas para atenuar as desigualdades
Buscando minimizar os efeitos das desigualdades no acesso à internet em territórios tradicionais, o Intervozes e a Conaq apresentaram, em maio de 2020, uma proposta de emenda sugerindo o uso do Satélite Geoestacionário de Defesa e Comunicação (SGDC) ou outra tecnologia semelhante para garantir a conexão de comunidades indígenas, quilombolas e distritos que não sejam sedes de municípios.
A emenda propõe a modificação do Projeto de Lei 2388/2020, de autoria da senadora Daniella Ribeiro (PP-PB), ainda em tramitação no Senado. A emenda leva em consideração que a problemática do acesso à internet no Brasil é uma questão coletiva e não de dificuldades individualizadas. Por isso, estabelece o uso de recursos do Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (Fust) na oferta gratuita do serviço de conexão em comunidades indígenas, quilombolas e distritos que não sejam sede de município, por meio do programa Governo Eletrônico – Serviço de Atendimento ao Cidadão (Gesac).
Outra proposta com objetivo semelhante é o Projeto de Lei 4383/2020, apresentado pela bancada do Partido dos Trabalhadores na Câmara dos Deputados. Ainda aguardando decisão da Mesa da Casa para ser colocado em pauta, o PL dispõe sobre o fornecimento de banda larga e de dispositivos tecnológicos necessários ao acesso à educação para comunidades quilombolas e indígenas. De acordo com o texto, as despesas da contratação de acesso à internet poderão ser ressarcidas com desconto proporcional à contribuição anual das prestadoras de serviços de telecomunicações ao Fust.
Nota
[i] Grosso modo, necropolítica pode ser conceituada como a determinação institucional do Estado sobre quais corpos têm direito à vida e quais corpos são “matáveis”, a partir da implementação de mecanismos técnicos de eliminação daqueles considerados “inimigos”. Para melhor compreensão do conceito, ver MBEMBE, Achille. Necropolítica. 3ª edição. São Paulo: N-1 Edições, 2018.
Paulo Victor Melo é jornalista e doutor em Comunicação e Cultura Contemporâneas. Tâmara Terso é jornalista e doutoranda em Comunicação e Cultura Contemporâneas. Ambos são integrantes do Conselho Diretor do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.