Comunicação pública perto do fim
Governo brasileiro realiza desmonte da EBC, interfere na programação jornalística das emissoras e é denunciado na Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Leia mais um artigo do especial Concentração da Mídia e liberdade de expressão.
Não somente o candidato eleito, mas diversos nomes que pleitearam o cargo máximo da República declararam, durante a campanha presidencial de 2018, que extinguiriam a Empresa Brasil de Comunicação (EBC) quando chegassem ao poder. O ano de 2019 começou então com o lançamento, por parte dos trabalhadores da única empresa pública nacional de comunicação, de uma campanha de conscientização junto ao Congresso Nacional. O Comitê Fica EBC visitou lideranças e mandatos parlamentares e também membros do novo governo, dialogando sobre seu papel constitucional e sua importância para a sociedade. Mas a mobilização não surtiu efeito.
Diante da ineficiência das instituições nacionais para frear os ataques à comunicação pública, no último dia 6 de março, 17 entidades da sociedade civil brasileira, entre elas o Intervozes, denunciaram o governo Bolsonaro na 175ª audiência temática da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH/OEA), realizada no Haiti. A audiência teve como tema as violações sistemáticas à liberdade de expressão no país, ataques à imprensa, censura às liberdades artística e cultural, sufocamento dos espaços de participação social e acesso à informação pública. Um dos destaques da audiência foi o desmonte da comunicação pública e as sucessivas práticas de censura aos jornalistas da EBC. Diante das denúncias, o governo brasileiro se limitou a negar as acusações, sem apresentar respostas concretas diante dos fatos apresentados. Os relatores e comissários da CIDH foram unânimes em manifestar preocupação com o quadro de violações e se comprometeram a continuar acompanhando a situação do Brasil de perto.
O desmonte da comunicação pública não é de agora. Em março de 2019, as outorgas da TV Brasil em São Paulo e no Maranhão, geridas pela EBC, foram transformadas em meras retransmissoras, em vez de geradoras de conteúdo, mantendo a geração somente nas praças de Brasília e Rio de Janeiro. Em 2017 e 2018, duas retransmissoras digitais e cinco analógicas da TV Brasil já tinham sido desligadas pela gestão Temer, reduzindo ainda mais o alcance do sinal da emissora em todo o país. Um mês depois, o novo presidente da empresa assinou a Portaria 216, unificando a TV Brasil e a emissora estatal NBr, responsável pela transmissão dos atos institucionais do governo federal.
Com a fusão, a programação e o jornalismo da nova TV, chamada “TV Brasil.gov”, passaram a estar a serviço da assessoria de comunicação do Planalto. Boletins com notícias do governo passaram a ir ao ar de hora em hora, e o que antes era de caráter público (o boletim ‘Notícia Agora’) virou peça de propaganda (‘Governo Agora’). O telejornal matutino público deu lugar ao jornal estatal Brasil em Dia e o jornal noturno, Repórter Brasil, ganhou pelo menos 15 minutos de conteúdo do governo. Em média, 40% do material veiculado vem diretamente da comunicação do Planalto. Nos programas de entrevistas, são convidadas somente pessoas ligadas ao Executivo ou à base de apoio de Bolsonaro. Cerimônias e discursos que antes passavam na NBR ocupam hoje a grade da TV Brasil. Programas como o Estação Plural, focado na agenda LGBT, saíram do ar, dando lugar, por exemplo, a produções como Faróis do Brasil, uma parceria com a Marinha, e ‘Missão Antártica’, que tem a participação da Força Aérea Brasileira.
A EBC hoje está vinculada à Secretaria de Governo da Presidência da República, do ministro Luiz Eduardo Ramos, general do Exército, e é presidida desde agosto de 2019 por outro general, Luiz Carlos Pereira Gomes. No documento “Diretrizes do novo presidente da EBC”, publicado após sua posse, Pereira Gomes escreveu: “Muito mais que trabalhar, todos devem SERVIR. SERVIR está acima de trabalhar, SERVIR impõe uma dedicação de corpo e alma à missão sem pedir nada em troca. O difícil dever de SERVIR, o duro dever de SERVIR, o sublime dever de SERVIR e o divino dever de SERVIR”.
“Está muito claro que o que se faz hoje é um jornalismo institucional”, relata Marcio Garoni, membro da Comissão de Empregados da EBC e diretor da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj). “Se antes havia um repórter destacado para trabalhar na NBR, praticamente essa divisão não mais existe. Muitos jornalistas da TV Brasil, quando vão entrevistar ministros, também produzem matéria para a Voz do Brasil [programa de rádio estatal]. Basicamente o mesmo texto que vai para TV sai com adaptações na rádio”, conta. “Uma das consequências da militarização é justamente essa visão do Estado como um órgão que não tem erro e não está sujeito à crítica. Quando se pauta o Estado hoje [nos veículos da EBC] é isso: a voz oficial, o institucional, o respeito à hierarquia, sem questionamento. Isso não é o papel da comunicação pública”, lembra Garoni.
O Ministério Público Federal considerou a portaria 216 inconstitucional, por desrespeitar o princípio, previsto no artigo 223 da Constituição Federal, de complementaridade entre os sistemas privado, estatal e público. Em julho de 2019, os procuradores regionais dos Direitos do Cidadão no Rio de Janeiro, Sergio Gardenghi Suiama e Renato Machado, entraram com Ação Civil Pública pedindo a anulação da portaria e exigindo que a EBC e a União, de maneira permanente, não mais insiram conteúdos estatais na TV Brasil.
Além da Constituição, a ação foi baseada na Lei Federal nº 11.652/2008, que criou a EBC e que determina, em seu Art. 2º, a “autonomia em relação ao Governo Federal para definir produção, programação e distribuição de conteúdo no sistema público de radiodifusão”. A autonomia da empresa pública já vinha sendo atacada desde 2016, quando o governo Temer extinguiu, por medida provisória, o Conselho Curador, colegiado que garantia a participação da sociedade na definição da programação dos veículos públicos, e acabou com o mandato do diretor-presidente da EBC, permitindo que o governo passasse a nomear e a demitir a direção da empresa a qualquer momento, de acordo com interesses políticos.
Aparelhamento e propaganda
A lei de criação da EBC estabelece entre os objetivos dos serviços de radiodifusão pública o de “oferecer mecanismos para debate público acerca de temas de relevância nacional e internacional”. No entanto, no contexto atual em que o governo federal define o que vai ao ar ou não no canal público de televisão, tal objetivo fica claramente prejudicado. Para os procuradores regionais Sergio Suiama e Renato Machado, o caso se agrava porque o telespectador da TV Brasil não tem qualquer possibilidade de “distinguir com clareza quais programas ou emissões tratam da divulgação, pelo Executivo, de atos de governo ou emulações de seus feitos, e quais cuidam, de forma imparcial e independente, da cobertura jornalística dos fatos nacionais e internacionais”.
Para a Frente em Defesa da EBC e da Comunicação Pública, articulação que reúne organizações e movimentos sociais em torno dessa bandeira, a fusão da TV Brasil com a NBr resultou no aparelhamento da emissora pelo governo Jair Bolsonaro, na intenção de criar uma mera agência de propaganda governamental. “Na prática, ao juntar as duas emissoras, mesclando programações com finalidades distintas em uma só, o governo enterra o projeto de comunicação pública com foco no cidadão e pautado pela pluralidade, diversidade e independência de conteúdo”, declarou em nota em 2019.
Outra medida da direção da EBC questionada na ação do MPF foi a extinção da filial da TV Brasil no Maranhão, responsável pela produção de conteúdo regional e de um jornal local no ar há mais de 35 anos. Depois do canal ser transformado em mero retransmissor da programação nacional, a unidade de produção no Nordeste foi totalmente encerrada, o que constitui outra violação à Lei 11.652/2008 – que determina a continuidade das unidades da empresa que deram origem à EBC.
Em nota enviada a este relatório, como resposta a estas questões, a Gerência de Comunicação da EBC declarou que a empresa tem realizado uma série de medidas voltadas para “a redução de gastos, ganho em eficiência e melhoria da qualidade de seu conteúdo”. E que a “nova estrutura organizacional” e a redução de pessoal estavam entre as metas de 100 dias do governo federal.
Na avaliação da Gerência, “a inclusão das ações de governo não descaracteriza a função pública de seus veículos” e a fusão da TV Brasil com a NBr “permitiu maior sinergia das equipes de trabalho e um refinamento na qualidade do conteúdo apresentado”. Para a direção, a resposta do público teria sido positiva, com o crescimento no tempo em que as pessoas assistiram à TV Brasil no último ano, segundo dados da Kantar Ibope Media nas praças mensuradas da Grande São Paulo, Grande Rio de Janeiro e Distrito Federal. Também foi alegado que a Rádio Nacional do Rio de Janeiro e a Rádio Nacional FM de Brasília registraram suas maiores audiências desde o ano de 2010.
Por fim, houve uma redução no orçamento da EBC que chegou a cerca de 20%, com o corte de R$ 113 milhões em 2019. Segundo a direção, “a EBC está hoje financeiramente e orçamentariamente saudável, com relação mais equilibrada entre receitas e despesas” e as mudanças devem continuar em 2020 nas áreas de TV, rádios, web, administração, infraestrutura tecnológica, conteúdo e pessoas. Pelo cenário visto até aqui, infelizmente tais mudanças prometidas devem resultar em ainda menos recursos para a comunicação pública e em uma programação comprometida com os interesses do governo de turno, e não da sociedade.
Censura institucionalizada e privatização
A declarada “melhoria da qualidade do conteúdo” apontada pela direção da EBC está longe de ser realidade na avaliação dos trabalhadores/as da empresa. Pelo contrário, a afirmação geral dentro da categoria é de que a prática de censura, já constatada em gestões anteriores e adotada de modo crescente desde o governo Temer, agora se institucionalizou na empresa.
Um dos episódios mais marcantes ocorreu já no início do governo, no final de março de 2019, quando da aproximação do aniversário de 55 anos do golpe militar de 1964. O uso das palavras “golpe” e “ditadura” passou a ser proibido nas reportagens da EBC, a partir da repercussão das declarações de Bolsonaro de que os quartéis deveriam comemorar a data. Enquanto organizações da sociedade civil, o Congresso, o Ministério Público Federal e a Defensoria Pública criticaram a fala do presidente, os trabalhadores da EBC receberam orientação para que seus textos usassem as expressões “comemoração de 31 de março de 1964” e “regime militar”. Até números históricos sobre mortos e desaparecidos no período foram reduzidos nas matérias.
A Comissão de Empregados da EBC e os Sindicatos de Jornalistas e de Radialistas do DF, RJ e SP classificaram o episódio de tentativa de reescrita da história. “É danoso ao Brasil que as reportagens da EBC, distribuídas gratuitamente para o país e o mundo, tentem esconder ou minimizar os crimes contra a humanidade praticados no período da ditadura militar. Nos 21 anos que se seguiram ao golpe de 1964, milhares de pessoas foram exiladas, torturadas, estupradas, demitidas, perseguidas, presas e censuradas pelo Estado, entre outros prejuízos à dignidade humana e coletiva. Jornalistas, artistas, professores, advogados, políticos, operários, líderes populares, indígenas, crianças e até mesmo militares das Forças Armadas estão entre as vítimas, que sofreram por não concordarem com a ditadura. É nosso dever lembrar e contar o que aconteceu neste país. Para que nunca mais se repita. Inclusive a censura”, declararam em nota à época.
Ainda no início de 2019, a renúncia do então deputado federal Jean Wyllys (PSOL/RJ) também não foi divulgada na programação da EBC. Em março, quando o assassinato da vereadora Marielle Franco completou um ano, os jornalistas não puderam dizer que um dos suspeitos presos morava no mesmo condomínio do presidente da República. Em maio, o termo “fuzilamento” foi proibido em reportagens sobre o assassinato, com 82 tiros de fuzil disparados pelo Exército, do músico Evaldo Rosa dos Santos, no Rio de Janeiro. Em setembro, o Sindicato dos Jornalistas Profissionais do DF lançou um mini manual contra a censura voltado aos funcionários da EBC. O documento lembra que a Lei 11.652/2008, o Manual de Jornalismo da empresa e os Códigos de Ética da EBC e dos Jornalistas seguem em vigor.
“Antes havia um ambiente mais receptivo a sugestões de pauta, mais democrático. Era um ambiente mais plural e conseguíamos fazer pautas críticas ao governo. Isso é algo impensável hoje”, afirma Marcio Garoni, da Comissão de Empregados. “No governo Temer já começaram orientações claras de censura, e o governo Bolsonaro é uma continuidade neste sentido. Por decisão ou autocensura, alguns conteúdos não conseguimos mais dar. Alguns assuntos nem fazemos e outros fazemos e são censurados. Em 2019, cobrimos a parada LGBT para a TV Brasil e isso não saiu no noticiário. Entrevistas mais críticas são retiradas. A censura se institucionalizou então para toda a empresa e o trabalho que a gente faz é cada vez mais institucional e oficialista”, conclui. A EBC alega “que não há censura com relação a qualquer tema e reafirma o seu compromisso de praticar um jornalismo sério e imparcial. As diretrizes repassadas a seus profissionais respeitam o contraditório e preconizam a busca pela verdade e pela clareza”.
A liberdade de expressão em risco
Para encerrar o ano, a EBC foi incluída, em novembro passado, no Programa de Parcerias de Investimentos, o programa de privatizações do governo federal, tendo início a análise para sua venda total ou parcial. Autoridades justificam a iniciativa apontando problemas financeiros, baixa audiência e acusando a empresa de ser vinculada aos governos petistas.
Mas a EBC nunca foi criada para ser autossuficiente, como nenhuma corporação de mídia pública é, não fazendo sentido falar em “déficit”, como o governo faz. Se a Contribuição para o Fomento à Radiodifusão Pública, criada por lei, fosse usada pelo país para custear a EBC, não haveria problemas orçamentários. O alcance dos sinais dos canais geridos pela EBC também seria maior se houvesse investimentos na sua infraestrutura de distribuição.
Em visita ao Brasil em setembro de 2019, o relator especial para a Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, Edison Lanza, defendeu a necessidade de que os governos mantenham um sistema plural de comunicação, com o devido financiamento do sistema público. Ele ressaltou que a comunicação pública não deve ter caráter governamental, mas estar “sobretudo vinculada ao interesse da população, com garantias e controles para que não seja tomada por governos de qualquer tendência, para fins políticos ou partidários, e com uma programação independente do governo, que permita inclusive discutir as iniciativas do governo”.
Para Lanza, a liberdade de expressão está sob risco no Brasil e o presidente tenta impor um “relato único” e “discriminar ideias”.
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Bia Barbosa é jornalista e integrante do Conselho Diretor do Intervozes