Congresso Nacional do Medo
Vamos medindo os dias a colheradas, sem saber distinguir ao certo, a cor da nossa calma da cor do nosso medo. As verdades são encobertas pela quinta pele da mentira e a corrupção com seus dentes sórdidos segue sorrateiramente mastigando a esperança
É penoso escrever certos textos quando o medo incomoda e desorienta. Pode-se invocar tese, antítese, síntese e consultar os mais reverenciados manuais de retórica, parece que nada terá sentido diante da recente ressignificação do futuro. Atualmente, a lógica imposta com seus dezessetes cálices de dúvidas nos rouba as certezas, nos rouba os sonhos, as energias. O pensamento dialético se mistura aos devaneios e, logo, um caminhão carregado de cadáveres, do outro lado do mundo, vem beijar nossa memória.
Do outro lado do mundo somos estrangeiros e podemos tomar distância para falar da violenta paisagem pintada, por exemplo, pelos alemães. Uma mancha que nunca irá se apagar. Também podemos afirmar que a enfermidade que os acometeu não foi de toda extinta, o vírus ainda percorre o aro do mundo a procura de terra fértil para se ramificar, feito uma febre terçã.
Do lado de cá do mundo, as consequências são previsíveis. Depois de infectada e desqualificada, a pátria que está acima de tudo deverá ser fatiada e servida em bandeja de prata como nos romances épicos. Talvez em uma linguagem mais elíptica, mas não estaremos livres de voltarmos ao exercício das subordinadas, ao êxito de idiomas e palavras que não nos pertencem. A pátria lírica dói na fronteira de um porvir ameaçado por um vírus que não podemos combater, embora saibamos o nome do antídoto eficaz. A questão envolve uma ignorância insana que não permite, nem permitirá a aplicação imediata do contraveneno. Talvez, em longo prazo, a poesia nos salve, nos permita a interlocução em forma de metonímias, eufemismos, silogismos, analogias… e um conceito chave utilizado por Machado de Assis: a ironia. Fora disso, as palavras poderão apodrecer embaixo da nossa pele.
Provavelmente, um silêncio de terror se estenderá pelas veias abertas das cidades e nos obrigará a vestir as fantasias metafóricas da linguagem para arrazoarmos sobre sociologia, antropologia, filosofia, história ou qualquer outra corrente que trate da sapiência humana. As palavras das autoridades se moverão asperamente pelas instâncias das promessas esgotadas, a imediatez proporá soluções, a vaidade construirá trincheiras pela noite, com as pedras recolhidas pelo dia, e os corpos vencidos pela arrogância cairão sobre elas.
Drummond, em “Congresso Internacional do Medo” falou desse mesmo sentimento, em outro tempo, mas em situação similar. Disse que cantaríamos (não disse que choraríamos) “o medo dos ditadores, o medo dos democratas, (…) o medo da morte e o medo de depois da morte.” Nem vou me ater às últimas frases do poema que insinuam que “depois de morrermos de medo, nascerão sobre os nossos túmulos flores amarelas e medrosas”, porque nossa geração é dura de matar e respaldada por Conceição Evaristo “a gente combinamos de não morrer”, e não haverá surrealismo de tiro curto capaz de deter nossa sagacidade.
Por enquanto assistimos as palavras calibradas de ódio adquirindo sentidos na temporalidade em que são negociadas, assistimos o ordenamento de vozes justapostas bloqueando a consciência. Che ou Cherokee são palavras fora da lei. A palavra Ilha é um país no pequeno mapa pendurado na parede e, parafraseando Drummond, como os incomoda!
Por enquanto, vamos medindo os dias a colheradas, sem saber distinguir ao certo, a cor da nossa calma da cor do nosso medo. As verdades são encobertas pela quinta pele da mentira e a corrupção com seus dentes sórdidos segue sorrateiramente mastigando a esperança de vermos um estado livre.
É aterrador. Qualquer pessoa com olhar mais profundo conviverá com o temor, sobretudo por estarmos diante de uma justiça quase cega. Será preciso sim permanecer atentos às cercas de arame farpados cobertas por suntuosas buganvílias mas, conforme Drummond, vamos afinar nossas vozes, desgramaticar nossas frases e seguir a canção.
Lucilene Machado é Doutora em Teoria Literária e Professora Universidade Federal do Mato Grosso do Sul