Conhecer a Nigéria pela literatura: um caminho aberto por Buchi Emecheta
Para nos aproximarmos dos dilemas que fazem parte da vida de personagens do outro lado Atlântico convido a leitura de Buchi Emecheta, escritora nigeriana que vivenciou momentos complexos e os transformou em substrato para suas construções literárias
A Nigéria pode ser logo ali, mas nem sempre soa tão perto. Um país de extensos laços com o Brasil, do qual herdamos culturas, um de nossos centros para as identificações religiosas, linguísticas, alimentares e tantos outros elementos que são fundamentais para a formação contemporânea do país que temos hoje. Mas, é também uma verdade que a barreira do preconceito, do racismo descarado e velado, escorreu pelas vísceras e ofusca covardemente o tanto que recebemos enquanto sociedade de elementos simbólicos e materiais que vieram com os povos, forçadamente, do continente africano durante os longos séculos de escravidão – temos que sempre lembrar que cada esquina do Brasil foi formada por mãos negras e indígenas, primordialmente.
Para nos aproximarmos dos dilemas que fazem parte da vida de personagens do outro lado Atlântico convido a leitura de Buchi Emecheta. Escritora nigeriana, nascida em 1944, vivenciou momentos complexos, que, com fineza, foram transformados em substratos para suas construções literárias. Os fios que entrelaçam presente e passado são cordiais na escrita de Emecheta, que nos presenteia com uma série de livros sensíveis, sérios e comprometidos com a razão de ser de uma mulher nigeriana, migrante e tantas outras identidades que entram em negociação para a construção de sua vida e afloram em suas histórias. Para uma imersão em suas composições, vale a pena conhecer a “Cidadã de Segunda Classe”, codinome dado para a personagem central do seu livro homônimo, publicado pela Editora Dublinense. Seguindo as páginas, somos levados a um mergulho profundo, ao encontro de uma subjetividade estilhaçada em desejos e vontades, e nos encontros que permitem sua recomposição. Adah – a cidadã de segunda classe – já contava desde o nascimento com a desvantagem, só por ser uma menina. Mas, aliada da teimosia, conseguiu ir para escola e sustentou a ânsia de prosseguir, por isso se casou. Encontrou em Francis, seu esposo, a permissão para dar seguimento aos seus objetivos, pois uma moça solteira não poderia morar só e estudar.
Adah se tornou “a galinha dos ovos de ouro”, a provedora da família do marido. Pagou para ele ir para a Inglaterra e se formar. Enquanto isso, ela ficou na Nigéria com os dois filhos. Mas Adah não tardou em ir para a Inglaterra, lugar sobre o qual nutria sonhos. A Inglaterra do imaginário, no entanto, era diferente da que a recepcionou. Com a firmeza de tons cinzas, com Francis e sua primor para a mediocridade e violência, que foi direto em dizer como ela, naquele espaço, era uma “cidadã de segunda classe”.
Emecheta transcorre por páginas uma relação de gênero densa, em que a mulher é condenada desde o seu nascimento. A menina não tinha valor, as boas referências eram endereçadas aos meninos, futuros homens. Assim Adah nos dá a mão e caminha por uma sociedade igbo, e depois, por uma mulher igbo em uma sociedade inglesa. Sua filha, quando nasceu, pouco significou, enquanto o filho foi condecorado pelas esperanças depositadas. Ainda assim, em seu livro, a grande protagonista era uma mulher, ruptura com o que, naquela ordem, era o esperado, do brilhantismo da lógica androcêntrica. Adah trava suas lutas, se esfacela e se reconstrói. O mais interessante é que isso não torna Adah uma heroína, mas a coloca no lugar dos acontecimentos trágicos que uma mulher precisou lidar, com abusos físicos e emocionais, uma vez que tem um marido de lábios finos e sobrancelhas que se franzem.
O texto de Emecheta, em uma linguagem direta, está em diálogo com os elementos do cotidiano, em que se torna possível esquivar das leituras binárias, como vilões e vítimas, mas é ampliado o leque, que transborda emoções de personagens, próximos de estratégias para continuar em suas dinâmicas do dia a dia e dar seguimento, na medida do possível, às vivências – e, quando o clímax nos permite, às sobrevivências.
Adah é uma mulher inteligente, perspicaz e entrelaçada em uma trama que, sem dúvidas, a desfavorece de muitas formas. Como pode Emecheta fazer isso com Adah? encontro explicação no fato de Emecheta não criar essencialismos na sua história, mas nos envolver, como partícipes, observadores de cenas que se passam em um quarto apertado, adereçado de móveis velhos e que cheira mal. Cheira mal porque Francis, em sua competência em ser sua pior versão, queima os primeiros escritos de Adah – queima o filho, seu primeiro livro, grafado em cadernos.
Adah é uma mulher e ela não precisa se reafirmar quanto a isso, mas acompanhamos os efeitos dessa categoria por vezes comprimindo, em outras libertando a sua vivência. De maneira semelhante, está impregnada por sua identidade racial, na medida em que não consegue alugar um quarto, passa por outras experiências, e devido a tantas vezes que Francis a lembra de tal, o corpo de Adah, só por existir, nos fala. Mas, esse também não é o foco. Emecheta concretiza o que Toni Morrison teoriza e põe em prática: “aniquilar e desacreditar o fetiche da cor rotineiro.” (Morrison, 2019, p. 81).
A autora consegue abordar aspectos sobre vidas, porque são pessoas. Todos os demais efeitos se dão em decorrência dessas pessoas e as interações sociais e marcadores estarem em negociações em todas as relações que são estabelecidas. Pessoas com diversas características, incoerências e complexidades. Mas, não perdemos ao longo da narrativa o que nunca deveria ter sido usurpado: a capacidade de reconhecimento no outro. Que possamos nos aproximar cada vez mais com os vínculos que nos sustentam no tempo presente.
Núbia Aguilar é pesquisadora da área de estudos africanos; Professora substituta de História da África na UFRJ e doutoranda na USP.