Contra a vacina? Anatomia de uma crise de confiança
Com o estabelecimento e o enraizamento das fake news e da pós-verdade como elementos constitutivos do nosso “viver-em-comum”, criamos um estado permanente de anomia e o colapso da confiança nos sistemas peritos
Anthony Giddens é um grande sociólogo. Mas os anos que passou ao lado do primeiro-ministro britânico Tony Blair mostraram que é um péssimo conselheiro de reis. Seu maior livro, e sem dúvida, sua grande contribuição ao campo das ciências sociais é “As Consequências da Modernidade” [CDM]. Seu pior livro: “A Terceira Via”. Era necessário estabelecer essa distinção antes de continuar meu argumento que é, na verdade, uma investigação pessoal sobre a natureza da crise que nós vivemos, não só no Brasil, mas no mundo ocidental como todo, e muito além dele. É uma crise nos sistemas peritos que, do meu ponto de vista, é inédita na história moderna.
Mas em primeiro lugar, preciso definir do que se trata o chamado “sistema perito”. Giddens definiu esse conceito em “CDM”. Ele caracteriza um aspecto fundamental da nossa época que consiste na confiança cega que conferimos aos experts em diferentes áreas de conhecimento. Há nessa dinâmica intelectual e prática dois movimentos: a diferenciação e a especialização das áreas de conhecimento. O saber evoluiu ao longo da história e foi se fragmentando ao mesmo tempo em que o acesso ao conhecimento, também diferenciado, foi organizado de acordo com essa especialização. De certa forma, com a modernidade, acabamos com a era dos enciclopedistas e inauguramos a era dos especialistas. Essa forma de organizar o saber ordenou a vida social e política. Por esses efeitos também, pode-se dizer, as condições de vida foram melhoradas do ponto de vista do acesso geral aos cuidados mínimos, ao saneamento básico, à saúde pública, etc.
Podemos ilustrar esse quadro com dois exemplos simples. Apesar do naufrágio do Titanic, as pessoas continuam navegando através dos oceanos, sua confiança nos especialistas da navegação marítima não foi reduzida. Muito pelo contrário. Quando decidimos viajar de um continente a outro, pegamos um avião sem questionar o piloto de cada voo sobre o estado das turbinas ou sobre a qualidade do querosene. Tampouco exigimos os certificados de validade dos equipamentos de socorro disponíveis no aparelho. Nós entramos no avião com a mesma confiança com a qual ligamos ou desligamos um ventilador. Jamais na história humana o conhecimento foi tão especializado e fragmentado, enquanto só aumenta a crença nas pessoas especializadas e detentoras desses saberes.
Sem embargo, a crise da Covid-19 evidenciou um preocupante quadro de ruptura com a tradição modernista. Numa entrevista ao programa “E Tem Mais” da CNN Brasil, mobilizei o conceito de anomia de Durkheim para explicar a adesão massiva às fake news e às teorias da conspiração. Apontei que nós estamos vivendo uma profunda crise da nossa capacidade coletiva de construirmos consensos morais sobre temas básicos da convivência social. A anomia moral na qual mergulhamos se estendeu a uma crise estrutural dos sistemas peritos, ou pelo menos, ela potencializou a erosão da confiança nos sistemas peritos.
Recentemente, minha colega Renata Nagamine, que durante essa pandemia se tornou uma das minhas grandes interlocutoras nesse exercício de compreensão do mundo, desenvolveu um argumento similar a partir de Hannah Arendt retomando a noção da filósofa alemã do “pensar sem corrimão”. Em outras palavras, Arendt diagnosticou na época que o mundo vivia uma crise do pensamento, isto é, “uma ruptura da tradição de pensamento, bem como a ruptura em torno do consenso em torno a certas normas morais”. Essa crise pode ser situada tanto dentro das esferas profissionais de produção do conhecimento filosófico e social quanto no conjunto dos valores que devemos balizar e organizar a vida social. Devo dizer, no entanto, que considerar essa crise como algo inédito não nos avançaria muito em nossa tarefa de pensar o mundo. De acordo com Koselleck, ser moderno é justamente viver na/em crise.
Se para Arendt “pensar é destruir tudo o que existe”, Koselleck nos ensina que “a crise nasce do pensamento que se autonomiza cada vez mais na modernidade”. Em outras palavras, “a crise nasce da crítica”. E é isso que nos faz modernos. Mas até aqui, não estamos evoluindo num território em que a contestação de tudo é reificada. A crise e a crítica servem para nos mover no sentido do aprofundamento do conhecimento do mundo. O que vivemos hoje é diferente.
Com o estabelecimento e o enraizamento das fake news e da pós-verdade como elementos constitutivos do nosso “viver-em-comum”, criamos um estado permanente de anomia e o colapso da confiança nos sistemas peritos.
A “crise das vacinas” aponta para esse quadro perigoso. Já escutei diversos tipos de justificativas das pessoas que se negam a ser vacinadas. Primeiramente, a negação nem sempre é geral contra todas as vacinas. Às vezes ela se orienta apenas contra a vacina da Covid-19. O que se contesta é o tempo reduzido em que elas foram produzidas. Neste caso preciso, estamos falando de uma crise de autoridade entre duas temporalidades que entram numa dinâmica competitiva: uma temporalidade científica e uma temporalidade própria da produção das opiniões – o senso comum. A segunda se beneficia de um ritmo muito mais flexível e acelerado, ao passo que a primeira obedece a regras mais rígidas, e muitas vezes inflexíveis, justamente por pertencerem à esfera dos sistemas peritos. Curiosamente, esse tipo de contestação da ciência surge no momento em que a produção das opiniões (senso comum) colide com o “fato novo” de uma convergência mundial na produção das vacinas, o que tem por efeito a redução do tempo hábil de produção dessas vacinas. E daí que as pessoas contestam as vacinas porque julgam que sua produção não obedece à própria temporalidade científica. Ora, quantas vezes no século XXI nos deparamos com uma pandemia que imobilizou 4 bilhões de seres humanos no planeta?
Por que as pessoas se tornaram incapazes de discernir que vivemos um momento excepcional? Agora, brigamos para saber qual vacina é mais segura. Questionamos a procedência, e até mesmo a “nacionalidade” das vacinas. Contestamos a capacidade técnica e ética dos laboratórios. Não somos experts em biologia, medicina ou em virologia, porém, contestamos. O tema das vacinas escapou da esfera meramente científica para entrar na arena política onde o status das fake news é consideravelmente elevado. Entretanto, as pessoas tomam um paracetamol sem se questionar em qual laboratório ele foi produzido ou quais efeitos químicos ele provoca no organismo.
Em segundo lugar, precisamos distinguir um outro nível de contestação, menos absurdo, porém, igualmente desconcertante. Já ouvi algumas pessoas instruídas, com diplomas universitários falarem a propósito das vacinas: “não quero me vacinar”. E diante de meu espanto, completarem: “mas não quer dizer que não irei me vacinar”. Ou seja, também somos levados a arbitrar a dúvida que pode surgir em nossos amigos, parentes e colegas, e com isso, substituir o Estado no seu papel de mediar a adesão coletiva aos deveres cívicos.
Nesses dias em que parei para pensar no assunto, encontrei uma entrevista de Peter Sloterdijk concedida à rádio France Culture na qual o filósofo alemão explica a crise contemporânea pelo fracasso das “religiões de substituição”, a maior delas: o iluminismo. Sim. O iluminismo é, na concepção cínica de Sloterdijk, uma “religião de substituição”. Essa crise reabilitou o mundo encantado e talvez assim se explica o renascimento de diversos tipos de obscurantismos.