Contra-ataque neoliberal
Por trás de propostas debatidas sem alarde na OMC e União Européia, está uma nova tentativa de estimular a concorrência entre os trabalhadores, em favor do capital. Ainda é tempo de resistirBernard Cassen
Acompanhar as agendas políticas – que obedecem, cada uma, sua lógica própria – é sempre um exercício útil. Permite deduzir as tendências de fundo, assim como as ocorrências de uma ou outra palavra, em um discurso, bastam para revelar o tom geral. Deste ponto de vista, tanto na esfera internacional quanto na européia ou francesa, os três últimos meses de 2005 apresentam um conjunto de medidas e encontros que convergem para um objetivo único: acelerar a precarização do trabalho, empurrar os assalariados para uma espiral sempre descendente e generalizar a insegurança social.
Esses são os mal-dissimulados objetivos da implantação, na França, dos “contratos de novas admissões” (CNEs, em francês), do governo de Dominique de Villepin; do começo do procedimento legislativo europeu que visa a adoção da Diretiva Bolkestein; e da Conferência Ministerial da Organização Mundial do Comércio (OMC) de Hong Kong, em cuja ordem do dia um dos pontos-chave é o aprofundamento do Acordo Geral sobre o Comércio de Serviços (GATS, em inglês) – em particular no que tange aos “trabalhadores migrantes sem vínculos”.
“Contratar sem risco? É possível: aproveite!”
Decidida pelo Conselho Europeu em e reativada em 2005, a “Estratégia de Lisboa” tem como único objetivo único a “competitividade” das empresas européias
Os CNEs são contratos de trabalho destinados a empresas de menos de 20 assalariados. Classificados como “de duração indeterminada”, podem ser rompidos pelo empregador durante os dois primeiros anos, sem nenhuma obrigação de justificar sua decisão. Este novo ataque ao Código do Trabalho permitirá ao menos criar empregos que de outra maneira não existiriam? Ou irão estimular apenas ações oportunistas? É esta, pelo menos, a suposição de um escritório especializado, que enviou a dezenas de milhares de patrões de pequenas e médias empresas uma mensagem eletrônica sem ambigüidade: “Contratar sem risco? É possível desde 4 de outubro! Aproveite1!”
Apesar de suas cada vez cotoveladas mais comuns – embora essencialmente para uso francês – com a Comissão de Bruxelas, Jacques Chirac e o governo Villepin são, na verdade, bons alunos da escola européia. Como muitas outras medidas, notadamente a lei Fillon sobre a educação, os CNEs inscrevem-se perfeitamente no quadro da “estratégia de Lisboa”. Decidida pelo Conselho Europeu de março de 2000 e reativada em fevereiro de 2005, pela Comissão Barroso, essa estratégia tem como objetivo central – e na verdade único – “competitividade” das empresas européias. Na língua de Bruxelas, isso significa a prioridade absoluta dos interesses dos acionistas. Os meios: a “flexibilização” do mercado do trabalho e a erosão permanente de todos os direitos sociais adquiridos.
A “estratégia de Lisboa” tem atualmente como foco o que não seria exagero chamar de grande propósito neoliberal: a proposta da Diretiva Bolkestein. Sabe-se que esta diretriz sobre a liberalização do mercado de serviços apareceu em 2005 no debate francês sobre o tratado constitucional europeu, e que certamente contribuiu para o “não” popular de 29 de maio. A sociedade questionou, essencialmente, a possibilidade, dada às empresas, de oferecer serviços em um país (por exemplo, a Dinamarca) nas condições jurídicas do país de origem do prestador (por exemplo, a Estônia). Levando em conta as enormes disparidades entre os regimes fiscais e sociais dos Estados-membros da União Européia (UE), a Diretiva Bolkenstein equivalia, evidentemente, a estimular o dumping social.
Bolkenstein e sua interessante trajetória
Levando em conta as enormes disparidades fiscais e sociais da União Européia (UE), a Diretiva Bolkenstein equivale, evidentemente, a estimular o dumping social
A “proposta de diretriz relativa aos serviços no mercado interno”2 foi apresentada oficialmente pelo comissário de mercado interno da Comissão Prodi, Frits Bolkestein, em 13 de janeiro de 2004 e decretada “prioridade absoluta” pelo Conselho Europeu de 25-26 de março do mesmo ano. Foi da Bélgica, pela Federação Geral do Trabalho da Bélgica (FGTB), já no dia 5 de fevereiro, e pelo Partido Socialista francófono, em 20 de fevereiro, que partiram as primeiras críticas a esse texto, seguidas depois por vários movimentos sociais, entre os quais Attac, bem como organizações de esquerda e de extrema-esquerda na Europa.
Mas foi preciso quase um ano para que a Diretiva Bolkestein se impusesse como tema central da campanha do referendo na França. O Partido Socialista Francês (PS) pediu sua “retirada” somente em janeiro de 2005. Ainda assim, assinou, um mês mais tarde, com seus homólogos europeus, uma declaração contentando-se em vê-la “modificada”. Seguiu-se uma enxurrada de críticas contra a Comissão Barroso, que havia retomado com entusiasmo o tema, herdado de seus predecessores. Em pânico, devido aos efeitos catastróficos da diretiva sobre o eleitorado, o presidente Jacques Chirac (que a conhecia ao menos desde a reunião o Conselho Europeu de março de 2004) e os dirigentes socialistas partidários do “sim”, não foram os últimos a se manifestar contra o documento. Eles se vangloriaram por terem conseguido “aplainá-la” e por fazer desaparecer o princípio do país de origem (PPO).
Assim que acabou o referendo francês, o presidente da Comissão Européia, José Barroso, não tardou a enquadrar todos os “rebeldes”. Não: a diretriz não seria retirada e o PPO continuaria a fazer parte dela! As decisões sérias começam a 22 de novembro, data na qual as emendas ao texto apresentado pela Comissão vão ser discutidas na Comissão do Mercado Interno do Parlamento Europeu. Em meados de janeiro de 2006, deverão chegar ao plenário. Será, sem dúvida, um debate animado…
Está em jogo algo considerável. Os dirigentes da Comissão Européia lembram, sem parar que os serviços representam 70% do produto interno bruto (PIB) da União Européia e empregam 65% de sua população ativa. Como se esses números, por certo impressionantes para um leigo, tivessem algum significado em termos de criação de postos de trabalho produzidos por medidas de liberalização. Seria preciso demonstrar – o que nunca foi feito – que as liberalizações, sejam quais forem, criam empregos! O que se sabe com certeza é que elas destróem muito e que provocam privatizações, fontes de suculentas operações da Bolsa. Provocam, pela exacerbação da concorrência, uma queda da remuneração do trabalho e uma precarização ampliada dos empregos. Deste ponto de vista, os CNEs contribuem para tornar a França “atrativa”, a partir de uma “perspectiva Bolkestein”.
Os riscos e a possível resistência
Em vez de a empresa italiana escrever um software na Índia, “importando” provisoriamente, um indiano pago com um salário indiano… O interessado não adquire direito algum
Se a diretiva for adotada integralmente – portanto, com o PPO – e levando em conta o imenso campo que cobriria (160 setores de atividade, segundo a nomenclatura da OMC), será o fim definitivo do princípio da harmonização das legislações sociais. Este é o único fundamento de uma construção européia verdadeiramente comunitária, nivelada “por cima”, em favor do princípio do reconhecimento mútuo de normas sociais dentro dos vinte e cinco membros da União. A aprovação significaria, portanto, fazer essas normas concorrerem entre si. Permitiria aos empregadores, privilegiar as normas menos restritivas a seus privilégios. Favoreceria o progressivo desaparecimento dos serviços públicos, especialmente aqueles administrados pelas comunidades locais (por exemplo os transportes municipais) e a impossibilidade de conduzir políticas públicas. Para dar o exemplo de um setor preciso, Raoul Marc Jennar mostrou que a diretriz provocaria”a desregulamentação e a privatização dos serviços de saúde e reduziria a relação entre o paciente e os que o tratam a uma relação cliente-fornecedor. Ela, de fato, quer suprimir os instrumentos que permitem planejar a oferta, fixar preços, regulamentar o acesso aos profissionais da saúde, a abertura ou a instalação de estruturas de saúde3“.
Compreende-se que, em seu frenesi de liberalização e de “descosturar” todos os instrumentos de solidariedade, a Comissão, o patronato europeu e os políticos liberais e de direita no Parlamento de Estrasburgo (onde são majoritários) rejeitem um novo debate sobre o PPO. A Diretiva Bolkestein é emblemática do tipo de Europa a que eles querem ver chegar. O tratado constitucional europeu, hoje moribundo, forneceria o suporte para este projeto. Ou seja: a vitória política contra este texto, alcançada nos referendos da França e Holanda, pesará muito nas futuras relações de força sociais na Europa.
Na OMC, “deslocalização para o mesmo lugar”
Mas antes mesmo que o destino dessa diretiva seja decidido, uma outra frente da “liberalização” do mercado do trabalho, de inspiração idêntica, abre-se, em escala mundial: na OMC, é conhecida pelo nome de modo 4. Trata-se, do quarto modo possível de prestação de serviços previsto no GATS, do quarto dos modos possíveis de prestação de serviços4: a mobilidade do empregado.
O “livre”-comércio é, em qualquer parte, a liberdade, para os trabalhadores, de serem submetidos à chantagem dos Estados e dos empregadores
Diferente da diretriz Bolkestein, que permite a mobilidade, sem limite de tempo, dos assalariados de uma empresa ou cidadãos de um país da União Européia, em qualquer outro país do bloco, o modo 4 visa o deslocamento de migrantes temporários, no caso de uma prestação transfronteiriça de serviços. A medida enquadra profissionais de boa qualificação: executivos, visitantes de negócios, assalariados de empresas, trabalhadores independentes. Uma firma indiana de serviços de informática pode deslocar um engenheiro para a Itália, dentro de um contrato de trabalho indiano prévio e para uma prestação limitada no tempo.
Vê-se bem, nesse exemplo, que se trata de uma “deslocalização para o mesmo lugar”: em vez da empresa italiana escrever um software na Índia (ou remunerar ilegalmente na Itália um clandestino qualificado), obtém o mesmo resultado “importando” provisoriamente para a Itália, dentro da legalidade, um indiano pago com um salário indiano. O interessado não adquire direito de permanência algum, pode ser repatriado a qualquer momento e se encontra em concorrência direta com um engenheiro italiano que recebe três ou quatro vezes mais. A este, sua empresa não deixará de lembrar, mais ou menos discretamente, esta diferença… Estamos aí diante de uma forma particularmente sofisticada de dumping social.
Infame barganha contra o trabalho
O acesso ao modo 4 é reivindicado por governos de países emergentes (Índia, Chile, Paquistão, Tailândia), preocupados em “exportar” uma mão-de-obra qualificada superabundante. Mas pode ser objeto de uma barganha com os países do Norte preocupados em obter, para suas grandes empresas de serviços (bancos, seguros), o acesso aos mercados ainda regulamentados dos países do Sul. Nesse jogo de xadrez, que favorece o GATS, prestadores de serviços tanto dos países desenvolvidos como dos emergentes chegariam a um entendimento… às custas dos seus respectivos assalariados.
As negociações que vão se desenrolar em Hong Kong, de 13 a 18 de dezembro, dentro da Conferência Ministerial da OMC, serão sem dúvida dominadas pela questão da agricultura, mas o GATS vai ocupar um lugar importante. Durante a recente cúpula ibero-americana, ocorrida em 13 e 14 de outubro, em Salamanca, Koffi Annan, secretário-geral da ONU, declarou que 2006 deve ser o ano do comércio. Não é nada tranqüilizador: o “livre”-comércio é também, tanto na Europa quanto no resto do mundo, a liberdade, para os trabalhadores, de serem submetidos à chantagem dos Estados e dos empregadores, sob o olhar atento e interessado dos acionistas.
(Trad.: Elisabete de Almeida)
1 – Citado por Vanessa Ikonomoff, “Lisbonne sur ordonnance”, La Lettre de Bastille République Nations, 7/10/2005.
2 – Um documento notável sobre esta diretiva, sobre seu encaminhamento nas instâncias da Comissão, Conselho e Parlamento Europeu e sobre as resistências opostas a ela foi produzido por Raoul Marc Jennar. Consultar também o dossiê Bolkenstei no site de Michel Husson (http://hussonet.free.fr/autreuro.htm).
3 – Raoul Marc Jennar. Ver nota acima.
4 – Os outros três modos são, pela ordem: um serviço oferecido em um país, a parti
Bernard Cassen é jornalista, ex-diretor geral de Le Monde Diplomatique e presidente de honra da Atacc França.