Contra o racismo no futebol, Sueli Carneiro
Recém-lançado livro Dispositivo da racialidade recupera teses da autora, que pode ser incorporada aos debates sobre a modalidade no país. Veja no novo artigo da série Entrementes: futebol, política e cultura popular
Gilberto Freyre, Roberto DaMatta, vez ou outra Antonio Candido para dar conta das crônicas – a relação de autores citados nos livros sobre o futebol ainda costuma ser limitada e homogênea. Não é, vale ressaltar, uma exclusividade do campo. Porém, é sintomático que o tema, que atravessa a cultura popular com expressões diversas nas diferentes regiões do país, não esteja aberto à sua própria pluralidade, pelo menos no universo acadêmico. Gestos mais incisivos, iniciados por ações afirmativas que garantiram o recente acesso de uma população negra às universidades, tendem a esgarçar as padronizações. A audácia intelectual também.
Na lista dos principais jogadores de futebol brasileiros, os negros são predominantes. Por exemplo: a memória sobre Pelé, o maior de todos, tem sido submetida a novos olhares desde a sua morte no fim de 2022. A presença é forte no feminino: a atleta que mais disputou Copas do Mundo pela seleção, entre homens e mulheres, é Formiga. São muitos os pesquisadores e pesquisadoras que têm se dedicado ao esporte na universidade atualmente, com uma parcela consideravelmente mais diversa. Os parâmetros para os estudos, contudo, continuam restritos.
E eis que reluz Sueli Carneiro. O recém-lançado livro Dispositivo da racialidade retoma a principal tese da autora e coloca em xeque os processos que configuram o racismo no Brasil. Depois de revisitar escritos da virada entre os séculos XIX e XX, a filósofa reconhece que o negro brasileiro foi deslocado do eito da escravidão para o status de objeto científico reificado, tema de pesquisa para uma universidade que se mantinha fechada para os descendentes das vítimas do sequestro em escala internacional executado pelo tráfico negreiro que cruzou o Atlântico.
Para identificar como esse dispositivo funciona, a pesquisa se debruça sobre a trajetória de líderes de diferentes organizações de combate ao racismo no Brasil. A função das escolas para a formação da militância negra da redemocratização é reconsiderada no texto. Embora reconheça o nocivo papel desempenhado pelas instituições de ensino para atacar a autoestima da população negra, a obra demonstra o caráter disruptivo do conhecimento. As formas jurídicas, dos tribunais ao policiamento, são postas em questão com o estudo.
O principal achado, contudo, é a inversão que Sueli Carneiro opera sobre o escritor francês Michel Foucault. A autora o considera um aliado intelectual na elaboração de conceitos para confrontar o preconceito racial, e sempre se refere ao filósofo europeu de maneira elogiosa. É incontestável que o dispositivo de racialidade construído do texto toma emprestado ferramentas conceituais dos estudos foucaultianos sobre a sexualidade, em especial o primeiro volume dos três escritos pelo autor sobre o assunto. No entanto, diante das dinâmicas sociais do país, os prismas de análise ficam estremecidos.
A divisão por classe, em um país na periferia da produção global, exige mais atenção. Acima de tudo, a perspectiva europeia é contraposta à ação no contexto brasileiro. Dispositivo da racialidade não trata diretamente de expressões populares brasileiras, como o futebol. No entanto, Sueli Carneiro se dedicou ao tema em diversas passagens – a exemplo do período em que foi colunista do jornal Correio Braziliense. Impressões a respeito da Copa do Mundo, da identidade racial no esporte e das violentas manifestações do preconceito são expostas com nitidez.
É evidente que a visão da filósofa adiciona às interpretações sobre Pelé aspectos negligenciados. O fato de um negro alcançar tal nível de excelência no mesmo período das lutas por independências na África tem muito valor. Enquanto em várias frentes era travada a batalha contra o domínio branco, o melhor jogador de futebol de todos os tempos expressava, com a sua habilidade, que não havia inferioridade inata na negritude. Em suma: o atleta do século reafirmava o potencial da população negra. E não somente para o Brasil.
A partir do conjunto de sua obra, até a reincidência de casos de violência sexual no futebol assume outras feições: em vez de atitude impensada, fruto de instinto pessoal ou recaída, é entendida como uma continuidade do estupro colonial. No ermo território da masculinidade, poderosos se sentem confortáveis para fazer perdurar práticas dos primeiros povoados brancos nesse atual território. Os episódios com os ex-jogadores da seleção brasileira Robinho e Daniel Alves são encarados por outro prisma, assim como o recente caso do técnico Cuca.
O Corinthians, clube que havia lançado a campanha #RespeitaAsMina contra o machismo, contratou o treinador – mesmo após a Justiça suíça já ter definido a culpa do então jogador do Grêmio em episódio ocorrido na Europa na década de 1980. A repercussão levou à demissão de Cuca, mas estimulou uma comoção entre os jogadores do clube: antes de sua despedida, o elenco promoveu um abraço coletivo em frente às câmeras para demonstrar solidariedade ao técnico. Entrevistas foram inclusive concedidas para desmerecer a decisão judicial.
É possível que a visão de Sueli Carneiro reavalie os silêncios que rondam o futebol feminino, apenas regularizado às vésperas do novo milênio no Brasil, no final do século XXI. Principalmente se for notada a forte presença das mulheres negras nos times profissionais e na seleção brasileira. A filósofa se destacou nas primeiras ações no país que reexaminavam as estatísticas sociais com foco nas parcelas que mais sofrem na realidade local. O resultado foi o destaque maior para as desigualdades, que possibilita políticas públicas com mais precisão.
A discriminação dos dados reforça que as mulheres negras são as mais atingidas pelas diferentes formas de violência. Com essas informações, no caso do futebol profissional, a exclusão ao longo de quase todo o século passado deixa de ser vista como uma medida pontual e pode ser enxergada como mais uma das manifestações das coerções contra essa população no Brasil. Talvez seja igualmente o caso das pesquisas acadêmicas acerca do tema.
Helcio Herbert Neto é doutor em História Comparada (UFRJ), mestre em Comunicação (UFF), formado em Jornalismo (UFRJ) e em Filosofia (UERJ).