Frente à possibilidade de a COP28 fracassar, o Brasil pode e deve ajudar a salvá-la
O Brasil está em uma posição privilegiada em termos de espaço da governança internacional. Em dezembro de 2023, o país assume a presidência do G20, grupo que tem, cada vez mais, um papel importante na construção do desenvolvimento sustentável
A 28ª Conferência das Partes da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, a COP28, com início em 30 de novembro, em Dubai, é fundamental para a sobrevivência da humanidade. As mudanças do clima já são responsáveis por eventos climáticos extremos, pela degradação das condições de subsistência e pela perda de vidas em todo o planeta – e as COPs do clima são as principais negociações para que metas comuns sejam traçadas, a fim de evitar o ponto de não-retorno. No entanto, há uma possibilidade de a COP28 fracassar – ou seja, de a negociação não chegar aos resultados necessários ou mesmo de não haver consenso entre as partes para a aprovação de um documento final robusto.
Essa possibilidade de fracasso do processo se dá por diversas razões. Algumas delas são externas ao processo de negociação climática: estamos vivenciando um cenário geopolítico complexo, em que diversas guerras agravam a conjuntura. No entanto, a principal razão é interna à própria negociação, que se encontra dividida e disfuncional. Há atualmente nas COPs uma clara divisão em termos de posicionamento entre os países do Norte e do Sul Global. Esta é uma divisão histórica, que já paralisou COPs anteriores. Apenas para ficar em um exemplo, os países do Sul Global têm exigido um fundo para perdas e danos há pelo menos três décadas. No entanto, ele só foi aprovado em 2022 na COP de Sharm el Sheik, no Egito, após exaustiva negociação – e quase não se chegou a um consenso. A própria implementação do fundo, que tem sido discutida em 2023 no Grupo de Transição, também tem sido objeto de disputa – dividida fundamentalmente entre países desenvolvidos e países em desenvolvimento, inclusive sobre o papel do Banco Mundial neste processo. Pode-se observar que esta fragmentação tem sido ainda mais latente nos últimos anos, e pode se repetir de forma mais contundente em 2023.
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Mitigação
Isto é especialmente visível nos temas quentes da COP28. Em Dubai, haverá provavelmente quatro ou cinco questões que estarão entre as mais importantes e cuja negociação será mais difícil. Algumas delas têm prazos de conclusão a ser finalizados em 2023 e, por isso, ganham maior urgência na pauta, como é o caso de algumas agendas de mitigação. Uma delas é o Balanço Global do Acordo de Paris – ou Global Stocktake (GST) em inglês, processo que faz um balanço da implementação do acordo, cujo primeiro relatório deve ser entregue e examinado em Dubai. O GST tem como objetivo orientar ações e metas futuras das partes ao incluir diversas áreas do acordo como mitigação, adaptação e meios de implementação.
De forma complementar, um dos temas mais importantes da negociação no setor de mitigação será o Mitigation Work Programme (MWP). O MWP foi criado na COP26 com o objetivo de discutir medidas concretas para aumentar a ambição das metas de mitigação no âmbito das Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDCs). Na COP27, percebeu-se que a agenda não avançou como deveria e, por isso, foi reforçada a demanda de que os países melhorem e fortaleçam suas metas, além de existir a demanda pela ampliação das áreas temáticas do MWP. Esta ampliação do escopo tem potencial para enormes controvérsias.
Uma prévia dessas dificuldades na negociação pôde ser vista na Conferência de Bonn de 2023. A conferência anual tem como objetivo reunir os órgãos subsidiários do Acordo de Paris dedicados a questões técnicas da negociação. Tradicionalmente realizada no meio do ano, é considerada uma espécie de “pré-COP”, na qual muitos materiais já são adiantados para facilitar a negociação do fim do ano. Ao longo da conferência, a discussão ao redor do MWP esteve tão polarizada – uma vez mais, entre países do Norte e do Sul Global – que, ao longo das duas semanas, praticamente não se conseguiu chegar a uma agenda que organizasse a negociação. Os países em desenvolvimento afirmavam que o programa de trabalho não poderia estabelecer metas que fossem para além do escopo do Acordo de Paris sem antes garantir os meios de implementação e, por isso, só se conseguiu chegar à definição da agenda nos últimos momentos antes do término previsto da conferência.
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Adaptação
Outra agenda fundamental da COP deste ano é a adaptação. Trata-se de um tema de especial importância para os países do Sul Global, onde os impactos das mudanças do clima são não apenas mais graves, mas também mais frequentes. Os países ainda não chegaram a um consenso com relação a uma Meta Global de Adaptação, o que mostra seu atraso comparado a outras agendas, inclusive a própria agenda de mitigação, cujas metas já foram estabelecidas – ainda que precisem ser revistas e atualizadas. Na COP27 e em Bohn, houve pressão, por parte dos países em desenvolvimento, para uma estruturação dessa Meta Global de Adaptação. O grupo de trabalho no tema deverá entregar seu relatório em Dubai, onde deverá haver, também, uma definição sobre as metas de financiamento para adaptação – financiamento este que ainda hoje está em níveis muito baixos com relação ao esperado, e portanto incapaz de suprir a crescente demanda.
Cabe enfatizar que a maioria dos impasses referentes à negociação climática internacional hoje são relacionados ao financiamento – ou, como tem sido chamado, meios de implementação. Aqui, vale lembrar que a COP27 vinha sendo chamada de “COP da implementação”, já que, depois de anos estabelecendo regras de funcionamento do Acordo de Paris, seria o momento de maior ação; na prática, contudo, isso não foi garantido pela Declaração de Sharm el Sheik. Os prometidos 100 bilhões de dólares anuais entre 2020 e 2025 para financiamento climático, acordados na COP15, nunca chegaram – e isto foi reconhecido na declaração final da COP27, ainda que de forma tímida. Em teoria, está em andamento a negociação de uma Nova Meta Quantificada de Financiamento Coletivo e a promessa de duplicação de financiamento para adaptação para 2025. No entanto, até agora o cenário colocado é de um nível de financiamento climático muito abaixo do que é necessário – em todos os setores. Ao fim e ao cabo, a pergunta que está colocada na governança climática internacional é: como será garantido o financiamento para a implementação do Acordo de Paris? Os países em desenvolvimento parecem ter sua resposta, mas isto ainda não é, de forma alguma, um consenso.
Neste cenário de diálogos truncados e de possibilidade de fracasso, poucos países podem atuar de forma efetiva. O Norte Global, por mais que esteja construindo sua agenda de transição ecológica, resiste à ideia de ser o principal financiador de um modelo de transição global. Os países do Brics+, por sua vez, certamente têm posições importantes neste processo, com especial destaque à China e à Índia: enquanto a última historicamente atua junto ao Sul Global, a primeira tem tido uma voz cada vez mais ativa nas negociações sobre clima, além de se somar com frequência ao G77 – em uma estrutura comumente conhecida como G77+China, o que de cara anuncia, inclusive, o interesse político chinês de seguir se colocando enquanto país em desenvolvimento, mesmo sendo a maior economia e o maior emissor de gases de efeito estufa (GEE) do planeta. No entanto, ambas ainda têm limitações para se colocarem como lideranças no cenário atual. Além das complexidades geopolíticas das duas potências, seus perfis de emissões, com enorme peso de combustíveis fósseis, complicam o processo em um momento em que a demanda pelo phase out da utilização de petróleo e gás cresce em meio às negociações. Os demais Brics+ ou são menores na diplomacia climática, como é o caso da Argentina, ou estão entre os grandes produtores de petróleo e gás, o que também os coloca em posição mais limitada.
Por isso, o Brasil se encontra em uma posição única. Temos uma diplomacia que historicamente busca construir consensos e possui papel ativo em negociações que visam construir pontes entre o Norte e o Sul Global. Em termos de governança climática, um exemplo é a formulação do conceito de responsabilidades comuns, porém diferenciadas (do inglês, CBDR), durante a Eco-92. Tal conceito foi capaz de dar sentido político para a formulação de toda uma estrutura de governança que ali surgia. Em Paris, o Brasil também teve um papel importante na negociação do maior acordo da governança climática internacional e, na COP15, em Copenhague, o país agiu de forma parecida quando, junto aos demais países do Basic (grupo composto por Brasil, África do Sul, Índia e China), ajudou a salvar uma negociação até então frustrada. Desde o início do terceiro mandato de Lula, temos tido uma diplomacia capaz de dialogar com diferentes pólos; um exemplo é que o presidente já foi literalmente de Washington a Pequim, fazendo jus ao papel histórico do Brasil de negociador na política internacional.
COP30
Nesse contexto, o Brasil está em uma posição privilegiada em termos de espaço da governança internacional. Em dezembro de 2023, assumimos a presidência do G20, grupo que reúne as maiores economias globais e que tem, cada vez mais, um papel importante na construção do desenvolvimento sustentável. Cabe lembrar que a troika do G20, conjunto de presidências atual, anterior e posterior e com papel importante na construção da agenda do grupo, será composta por Brasil, Índia e África do Sul – uma troika do Sul Global. O Brasil já anunciou que, entre as prioridades de sua presidência à frente do G20, está o desenvolvimento sustentável e o combate às mudanças do clima. Além disso, somos um dos mais relevantes atores da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA), organização recentemente reativada que reúne os países da pan-amazônia. Ademais, em 2025 seremos a sede da COP30, a mais importante COP dos últimos tempos, já que será o momento de revisão do Acordo de Paris. Temos em mãos uma enorme responsabilidade, mas também uma grande janela de oportunidade para agir de forma a ser a ponte entre o Norte e o Sul Global em um momento em que o fracasso das negociações significa o colapso climático, ecológico e, provavelmente, civilizatório da humanidade.
A COP30, em Belém do Pará, não poderá ser um fracasso. Há muitos elementos envolvidos, que vão desde a garantia de condições de subsistência nos territórios até a própria continuidade da vida e do planeta como os conhecemos. No entanto, para que se chegue até lá, a governança climática internacional precisa resolver seus entraves. Hoje o principal deles está ligado aos meios de implementação do Acordo de Paris – ou, em outras palavras, ao financiamento para que ele seja realmente efetivo. O Sul Global, na maior parte dos temas, já estabeleceu sua agenda: o Norte deve ser o maior financiador da transição ecológica. Este, por sua vez, ainda é reticente em prover o que deve – e daí a paralisia do que deveria avançar mais rápido. Há mais de vinte anos, o Brasil teve a habilidade política de ler o espírito do tempo e entender que as responsabilidades eram coletivas, mas não iguais para todos – e dissemos isso ao mundo. Nos cabe, agora, atualizar este princípio e operacionalizá-lo. O Brasil deve agir – é questão de vida ou morte.
Marília Closs é pesquisadora da Plataforma CIPÓ, um instituto de pesquisa independente, sem fins lucrativos, liderado por mulheres e dedicado à cooperação internacional para a promoção da ação climática e do desenvolvimento sustentável, a partir de perspectivas latinoamericanas e do Sul Global.