Cordialidade e fascismo: como o Brasil é possível?
A direita autoritária cabe perfeitamente no figurino da cordialidade. Ela revela e exacerba os desejos antidemocráticos, aquilo que os brasileiros podem ter de pior e que denota a única ferramenta de que dispõem para existir em sociedade: a distinção
O termo cordialidade vem da palavra latina “cor”, que significa coração. Portanto, ainda que o uso do vocábulo, hoje em dia, diga respeito à polidez e à ocultação das emoções, etimologicamente significa o oposto: o momento em que a pessoa renuncia às convenções sociais para mostrar o que sente. No Brasil, já se verteu muita tinta sobre o tema da cordialidade brasileira. Sim, o brasileiro seria, por um lado, hospitaleiro, amigável, festivo e, por outro, um indivíduo que irrompe em ira, desavença e confrontos causados por razões emotivas.
De qualquer forma, a imagem que os brasileiros têm no exterior (excetuando os estereótipos sexuais) diz respeito a essa cordialidade positiva: o povo do carnaval, do samba, da alegria, da enorme hospitalidade. E pode-se dizer que não é uma imagem mentirosa. Os brasileiros são isso mesmo. Também. Por outro lado, como foi possível que tenha sido eleito, em 2018, o candidato mais próximo ao fascismo? Como é possível que Jair Bolsonaro chegue ao poder e, agora, com a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores, tenham se erguido barricadas nas quais os manifestantes pretendiam acabar com o processo democrático e recomeçar um governo militar, ao estilo dos que já houve por toda a América Latina? Bem, talvez a explicação não seja tão difícil, porque cordialidade e fascismo não são excludentes na experiência brasileira.
Assim como os Estados Unidos, o Brasil se sustentou economicamente desde a sua descoberta até o século XIX com a escravidão. A sua abolição, aliás, é extremamente tardia: 1888. Pelas imensas distâncias geográficas, até o século XIX, cada família se organizava como um pequeno feudo. Ou talvez como um pequeno Estado. As diferenças e hierarquias no ambiente doméstico se tornaram as mantenedoras da ordem social. E o mais importante era estar o mais distante possível da posição de escravo. Roberto Schwarz, por exemplo, entende que a sociabilidade do século XIX se pautou, em grande medida, na tranquilidade que as elites forneciam às classes médias por meio de privilégios, pois com esses privilégios, estaria assegurado o seu lugar social de não subserviência. Ou seja: a hierarquia fundamenta todo o mundo simbólico do brasileiro. Existir socialmente é existir acima de alguém.
Roberto DaMatta, no seu clássico Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro, escreve sobre a muito usada e bastante sintomática expressão “você sabe com quem está falando?” A expressão pressupõe que, a depender de com quem se está tratando, as regras e as leis devem e podem ser usadas ou não. Ou seja: elas não são universais, elas podem ser invocadas ou omitidas conforme o status social da pessoa com quem se está lidando. E a hierarquia social funciona em todos os níveis: seja o magistrado que não quer ser multado e não o é pela sua posição, seja pela sua empregada que diz “você sabe com quem você está falando? Eu sou empregada do magistrado!” Ou seja: a organização do mundo é feita integralmente com base na compreensão de quem está acima e quem está abaixo. Assim, um militar brasileiro estranharia muito a formação de uma fila nos Estados Unidos em que o coronel se aquieta atrás do sargento, por ter chegado depois dele. No Brasil, é a hierarquia que determina, não a ideia de igualdade perante a lei – que na prática inexiste. O contraponto do autoritário e bastante brasileiro “você sabe com quem você está falando?” seria o “Who do you think you are?” norte-americano, que é um chamamento para a igualdade.
No Brasil, é a pessoa o que importa, não o indivíduo. O indivíduo é a noção de impessoalidade que homogeneíza todos diante das leis e procedimentos universais da democracia e da burocracia. A pessoa é o oposto disso: trata-se da valorização da rede de relacionamentos, do status social oferecido pela profissão e, especialmente, das relações de parentesco. No Brasil, um fiscal de trânsito pode perguntar a um infrator: “Mas por que você não disse antes que era filho de policial? Se tivesse dito, o tratamento teria sido totalmente diferente”.
Ao preencher todos esses requisitos, o Brasil nunca te infligirá sanções rigorosas, independentemente do delito cometido. Já foi dito, inclusive, que o fato de a pessoalidade hierárquica ser o elemento que mais confere sentido à existência brasileira é o que impossibilita a execução de uma ordem democrática, legal e justa: as relações, no Brasil, não teriam como ser impessoais e racionais de acordo com as normas da lei e a justiça não teria como ser cega. Se for cega, a sociabilidade brasileira entra em colapso. É preciso ver quem é a pessoa. De quem se trata.
Por isso, há uma enorme resistência com relação às políticas democratizantes no Brasil. Fazer do diferente e inferior um igual é perder todo o sentido da organização social. Há alguns anos, uma socialite brasileira escreveu que ir a Nova Iorque havia perdido a graça porque até o porteiro do prédio poderia ir. Se o porteiro do prédio podia ir, não haveria mais exclusividade e, portanto, graça. A graça oferecida pela consciência de que há exclusividade, que só você e o seu igual podem usufruir, mas a ralé não. Se não existe uma ralé à distância, não existe ordem.
Sérgio Buarque de Holanda escreveu Raízes do Brasil em 1936 e praticamente o reescreveu para ser reeditado e lançado em 1948. Ele talvez tenha sido o primeiro a falar da “cordialidade” brasileira. Em 1948, havia acabado a Segunda Guerra Mundial e o Estado autoritário de Getúlio Vargas também. O mundo e o Brasil viviam ares democráticos. Sérgio Buarque aparecia como um fervoroso defensor da democracia na segunda edição. E o que ele dizia nessa edição? Que enquanto fôssemos cordiais, ou seja, incapazes de relações impessoais, não seríamos capazes de exercer uma genuína democracia. Contudo, a versão de 1936 que o autor tentou esconder dizia outra coisa. Dizia que éramos cordiais, agíamos com o coração e, portanto, o modelo político apropriado era… o caudilhismo. O que, tecnicamente, faz sentido. Se somos o povo que age e se move pelo coração, logo, que a política seja também a da pessoalidade, do favorecimento, da separação entre os queridos e os malquistos pelo líder carismático. Dizer isso em 1936, com a democracia liberal sendo posta em xeque, era uma coisa. Outra coisa totalmente diferente era dizer isso em 1948. Em 48, já não se podia. O autor então mudou a compreensão e as sugestões.
Contudo o que fica de ambas as edições é que os “militantes da política do coração” são também os afeitos à política da violência. A hierarquia brasileira, pautada na escravidão, é uma interação hostil, que pressupõe violências físicas e simbólicas. Ela necessita de imobilidades sociais sufocantes para que sejam produzidos os sentidos hierárquicos familiares. O pobre não deve subir. O negro não pode ascender.
No mundo pandêmico, foi bastante sintomática a reação de uma moça, que estava acompanhada por alguém, e que, ao serem abordados por um fiscal da vigilância sanitária, o fiscal se referiu a ele como “cidadão”. Ela retrucou: “Cidadão, não! Engenheiro formado. Muito melhor que você!”. A moça procurava trazer à baila a hierarquia social para mostrar ao agente que ele não poderia multá-los, prendê-los, repreendê-los: supõe-se que o fiscal não tem formação superior, logo, como um inferior pode exigir o que quer que seja do estrato superior? As imagens foram destaque na mídia nacional e a moça perdeu algumas coisas, entre elas, o próprio emprego. Contudo, isso não significa que o Brasil se empenhe em acabar com a política da carteirada (ou seja, mostrar as credenciais do mundo para obter privilégios), mas apenas que, em alguns momentos, quando essa característica aparece de forma muito caricatural e é registrada, iremos todos nos fazer de inconformados pelos comportamentos que reproduziremos na hora seguinte.
Essa valorização da pessoa em detrimento do indivíduo, que é resultado da supervalorização da hierarquia social, não é antagônica a políticas autoritárias, por duas razões: elas são personalistas e tornam mais rígidas as estruturas sociais, garantindo a ordem simbólica necessária àqueles que demandam desigualdades sociais. Ser hospitaleiro, portanto, pode ser a característica individual de pessoas que, no plano político, podem ser afeitas ao caudilhismo, ao coronelismo ou ao fascismo.
Seja à direita, seja à esquerda, o Brasil contou com inúmeros líderes carismáticos. A Getúlio Vargas foi dado o título de “pai dos pobres”. Note-se que não há descontinuidade nem oposição entre família e Estado. O que se pretende é exatamente borrar essa divisão. Lula, presidente eleito, também afirmou querer cuidar de todos “com carinho”. Lula também é conhecido como “pai” em algumas regiões do país. Contudo, se por um lado as políticas de esquerda reforçam os pessoalismos, por outro, acabam reduzindo as distâncias sociais em alguma medida. Ou seja, a hierarquia, tão importante no funcionamento psicológico dos brasileiros, pode acabar comprometida.
Por essa razão, as políticas de direita, que enfatizam o armamento, a diminuição da maioridade penal, enaltecem o regime militar autoritário brasileiro, a tortura, acabam sendo aquelas que coincidem com o jeito informalizado do brasileiro e não comprometem as acachapantes injustiças sociais do país, necessárias como suporte da sua sociabilidade hospitaleira e autoritária.
Ter um presidente de patente militar, que enfatizava o tempo todo o respeito à hierarquia, que chegou a dizer que igualdade é comunismo, acabou preenchendo todas as lacunas da direita brasileira, sempre temerária de um levante popular que nunca ocorre. Bolsonaro se comprometeu a não demarcar terras indígenas, combater as políticas de gênero, reafirmar os valores da família. Governos de centro-esquerda anteriores tinham como bandeira o combate à fome e à miséria. No caso do governo Bolsonaro, o combate era ao fantasma do comunismo que, para ele, aparecia no Partido dos Trabalhadores e nos movimentos sociais. Ou seja, no final das contas, se tratou do combate à igualdade. Que ele mesmo afirmou entender como “comunismo”.
Portanto, a direita autoritária cabe perfeitamente no figurino da cordialidade. Ela revela e exacerba os desejos antidemocráticos, aquilo que os brasileiros podem ter de pior e que denota a única ferramenta de que dispõem para existir em sociedade: a distinção. E distinguir-se é saber com quem se está falando. Com relação a Bolsonaro, ele fez questão até de tentar puxar um coro em homenagem ao próprio pênis, ao lado da esposa. Trata-se de amá-lo ou odiá-lo. E o amor que se tem a ele é a tranquilidade de saber que a insuportável igualdade não será mais uma assombração. Capitão que é capitão honra o pênis e também chama a atenção para a importância da obediência às hierarquias.
Rafael Mantovani é professor do Departamento de Sociologia e Ciência Política da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Autor do livro Modernizar a ordem em nome da saúde: a São Paulo de militares, pobres e escravos (1805-1840) (Fiocruz).