Coronavírus: rastro e fruto de uma poeira pandêmica
Das nove grandes “epidemias maciças” de origem viral1 que assolaram o começo do século XXI, refiro-me às poeiras que fortemente atingiram grandes continentes e deixaram rastros pandêmicos, três delas (33.3%) envolveram coronavírus: Sars-Cov ( Cov = Coronavírus e Sars = Síndrome Respiratória Aguda Grave), inaugurando o século em 2002-2003 na Ásia; Mers-Cov (Síndrome Respiratória do Oriente Médio) em 2012 no Oriente Médio; e o Sars-Cov-2 que, atualmente, derroca a estrutura da Saúde Pública no mundo inteiro. Os primeiros acontecimentos se deram em um intervalo de dez anos com a presença do Sars-Cov-2 (causador do Covid-19) oito anos após.
Com os primeiros casos do Covid-19 registrados no mercado de frutos do mar na cidade de Wuhan, capital da província Hubei, na China, onde os animais silvestres são comercializados livremente, à época, a nova epidemia já apresentara algo digno de nota: estima-se que 60% das doenças infecciosas conhecidas e até 75% das doenças infecciosas novas ou (re)emergentes são (serão) de origem zoonótica2, ou seja, de origem animal.
Todos estes coronavírus que ameaçam a saúde pública são de origem animal: Sars-Cov tem o morcego como o hospedeiro mais provável, em seguida, disseminado para outros animais, popularmente conhecidos como “gato civeta”; Mers-Cov: camelos dromedários; e Sars-Cov-2 (Covid-19): morcego ou pangolim (frequentemente chamado de tamanduá escamoso) como possíveis hospedeiros. Ainda existem debates sobre sua provável origem, em paralelo, assim como outros agentes, tais como o vírus Ebola (fonte mais provável de origem são os morcegos ou “primatas não-humanos”, termo bastante utilizado em pesquisas biomédicas), Influenza pandêmica H1N1 com origem suína, dentre outros.
Mutações
Recentes estudos têm mostrado que o agente causador do Covid-19 acumula em torno de uma a duas mutações por mês. No entanto, é possível que estes dados sofram modificações à medida que novas informações do Sars-Cov-2 tornem-se publicamente disponíveis. Neste contexto, vale afirmar que o vírus naturalmente sofre mutações ao longo tempo. Entretanto, muitas destas mutações não alteram a “personalidade” deste agente.
É como um veículo que tem a pressão dos pneus diminuída à medida que vai sendo utilizado, por exemplo. A jusante, os pneus naturalmente esvaziam-se e o condutoro retoma-o à índices de pressão normais na oficina, assim sendo, vamos aqui designá-lo como um exemplo de mutação “sinônima”, algo análogo à “semântica dos pesos” exercido pelo sistema imunológico sobre o vírus (figura abaixo).
Abaixo, partindo da licença poética, observa-se, – através da sinalização semafórica (representando o vírus) – em analogia lúdica, o esquema e o efeito de mutações em um determinado sistema biológico em particular, mostrando a influência da pressão do sistema imune (representado pelo peso em quilogramas [KG]).
Todavia, seria diferente se o motor do veículo fosse trocado por outro inferior ou, eventualmente, mais potente, correto? O impacto destas outras mutações, que tecnicamente designamos de “não sinônimas”, exemplificada pela troca do motor do veículo, em linhas gerais, promoveria “alterações de características notáveis” no código genético e se constituiria como principal coeficiente (do ponto de vista do vírus) para o ganho de habilidades para infectar outros hospedeiros (neste caso, humanos) e a sua posterior disseminação.
Caótico
O panorama atual do Covid-19 é caótico. Um recente estudo publicado na Science estimou que cerca de 86% das infecções que ocorreram antes das restrições de viagem impostas em 23 de janeiro não foram documentadas (subnotificações). Neste mesmo contexto, por pessoa, a taxa de transmissão de infecções não documentadas correspondeu a 55% das infecções documentadas. Ainda, devido ao seu maior número, infecções não documentadas foram a fonte de infecção para 79% dos casos documentados. À vista disto, vamos aos dados abaixo.
Até a finalização deste artigo, o cenário atual mostra que, segundo informações coletadas no site da Organização Mundial da Saúde, o vírus já atingiu 387.382 indivíduos (ou seja, casos confirmados) e levou a óbito 16.767 pessoas. Na Europa, particularmente, duas interessantes “idiossincrasias” merecem destaque: Itália, epicentro do Sars-Cov-2, país com a segunda população mais idosa do mundo, e a Espanha, nestas duas nações, o número de mortos cresce bem mais rapidamente do que na China, considerando a mesma equivalência temporal dos picos epidêmicos.
Até 24 de março (os dados sofrerão modificações ao longo do tempo), registraram-se 6.077 mortes na Itália. Segundo relatos, o vírus dizima um indivíduo a cada 3,3 minutos -, ultrapassando o número de mortos ocorridos na China, que possui uma população 23 vezes maior. Estes dados correspondem a 36.24% do total de mortes computadas em todo o planeta terra, sendo a grande maioria dos óbitos, cerca de 87%, envolvendo septuagenários ou acima.
Por outro lado, a Espanha, circundada por um índice populacional mais jovem, catalogou 2.318 mortes até 24 de março. Ambos os países (8.395 padecentes do Covid-19 – 50.06% do total absoluto de mortes), vítimas também de uma carência intercomunicativa por parte de diversos setores que ligeiramente encurralaram a quarentena pelos becos. Aliás, palavra de origem italiana – quaranta giorni – foi inicialmente introduzida no começo do século XIV como um esforço para proteger a população da epidemia da peste bubônica, onde os navios que chegavam aos portos de Veneza eram obrigados a permanecer ancorados por 40 dias antes do desembarque.
América do Sul empoeirada
Começo este tópico parafraseando o princípio de Anna Karenina. O nome do princípio é derivado de um famoso romance do escritor russo Liev Tolstói. Anna Karenina que, em linhas gerais, diz que uma única deficiência em qualquer um dos fatores (seja ele X, Y etc) leva todo o esforço ao fracasso. Parece-me razoável pensar que, mesmo hipoteticamente, precisaríamos entrelaçar fios de diferentes cores para chegar ao sucesso elétrico: o acender da lâmpada. Então qual seriam os fatores que levariam ao sucesso no combate à pandemia?
Na América do Sul, a grande maioria dos países já tem pessoas infectadas com o Sars-Cov-2. As três nações mais afetadas, atrás somente do Brasil, são Chile, Peru e Bolívia. No Brasil, país com mais de 28 milhões de idosos, até 24 de março, foram registrados 1.960 casos do Covid-19 e 34 mortes. Uma situação em particular nos chama atenção. Uma recente matéria, considerando as devidas proporções entre os países, tem mostrado que a velocidade de propagação do vírus no Brasil, curiosamente, repete o padrão dos países que foram mais afetados pela pandemia.
Fora da província de Hubei, a transmissão local do Sars-Cov-2 caiu a zero. Mas, qual seria o segredo por trás do sucesso? Esforço coletivamente combinado e conscientemente organizado em prol de medidas como quarentena, distanciamento e isolamento social, mais as medidas divulgadas nos protocolos padronizados, têm sido as iniciativas mais eficazes para evitar a propagação do vírus. Voltando ao princípio de Anna Karenina, o que acontece se um destes fatores não for seguido? Por outro lado, neste contexto, é notório que a melhor forma de prevenção seria a vacina. No momento, não há vacina disponível e, por questões razoáveis envolvendo o fator tempo, é muito provável que a mesma não seja utilizada contra esta “intempérie viral”.
Por fim, benemerente, destaco o programa financiado pela Agência Americana para o Desenvolvimento Internacional (USAID) chamado de “Emerging Pandemic Threats” (EPT – Ameaças Pandêmicas Emergentes). Dentro deste grande programa, existe o projeto Predict (predição, na tradução literal). O projeto em colaboração com diversos países, que visa fortalecer a capacidade global de detectar e descobrir vírus zoonóticos com potencial pandêmico, identificou em torno – números aproximados – de mil vírus, inclusive uma nova variedade do ebola, através de amostras de animais, como o morcego.
1 SARS, Caxumba, Influenza H1N1, MERS, Ebola, Chikungunya, Zika, Febre Amarela e SARS-CoV-2 (COVID-19)
2 Salyer, S.J. et al. (2017). Prioritizing Zoonoses for Global Health Capacity Building—Themes from One Health Zoonotic Disease Workshops in 7 Countries, 2014–2016. Emerging Infectious Disease S55–S64.
Ricardo Durães de Carvalho é Ph.D, cientista, especialista em evolução de vírus, é Pesquisador Colaborador na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Contato eletrônico: [email protected] / twitter @rduraescarvalho