Covid-19 e a emergência climática: conexões e desafios
As consequências e os prognósticos noticiados acerca da pandemia de Covid-19 podem ser relacionadas com o debate sobre as mudanças ambientais provocadas pelos seres humanos no planeta no último século.
As recentes cenas de aviões lotando as pistas de decolagem em todo o mundo, dos canais de Veneza mais limpos e de vias movimentadas sem o habitual trânsito de veículos, todas efeitos temporários da pandemia do novo coronavírus, remetem-nos a outro desafio enfrentado pela humanidade: as mudanças climáticas. As consequências e os prognósticos noticiados acerca da pandemia de Covid-19 podem ser relacionadas com o debate sobre as mudanças ambientais provocadas pelos seres humanos no planeta no último século. Nosso objetivo, com esse breve ensaio, é traçar algumas relações entre as reflexões surgidas com a pandemia e o debate científico e político internacional sobre as mudanças climáticas, bem como compartilhar questionamentos.
A pandemia da Covid-19 deve ser compreendida no contexto do Antropoceno, era geológica que se inicia com a industrialização e se intensifica com a sua “quimicalização”, caracterizada pela capacidade humana de interferir nos sistemas ecológicos, sendo as mudanças climáticas uma das suas principais consequências. No Antropoceno, pandemias serão mais frequentes devido à forma como lidamos com a natureza e interferimos no sistema terrestre. Nos últimos anos, as crises associadas ao Ebola, à Sars, à Mers e à própria Covid-19 são exemplos da interrelação entre a degradação ambiental e o surgimento das epidemias.
As reações iniciais à pandemia assemelham-se às narrativas negacionistas sobre as mudanças climáticas: postura anticientífica de parte dos atores políticos, irresponsabilidade e individualismo de determinados grupos sociais. Em ambos os casos há dificuldade de se lidar com o prazo para a tomada de ação. Há extrema resistência em se romper o processo de inação social decorrente da intangibilidade da ameaça: os diversos grupos sociais apenas aceitam lidar com o tema quando esse se apresenta como catástrofe iminente. No entanto, as duas situações lidam com consequências exponenciais, isso é, o agravamento dos efeitos não se dá de maneira linear, tal qual estamos habituados a responder social e politicamente.
Quando se trata da Covid-19, a demora nas ações resulta no colapso dos sistemas de saúde devido à incapacidade da rede hospitalar de atender à alta demanda concentrada em um curto período de tempo. Já no caso das mudanças climáticas, consequências como, por exemplo, o aumento da temperatura dos oceanos resulta em efeitos diversos, da perda de biodiversidade oceânica à alteração dos regimes de chuvas, causando, por exemplo, enchentes em áreas litorâneas e secas em regiões vulneráveis. Em alguns desses casos, a humanidade se encaminha para pontos de não-retorno, quando as intervenções já não conseguem mais frear os piores impactos provocados pelas alterações no clima.

Respostas adequadas
O debate público sobre o novo coronavírus tem acionado o imperativo moral de salvar vidas, cobrando das lógicas econômica e política respostas adequadas. Essa lição é fundamental para enfrentarmos as consequências das mudanças climáticas. Diante da pandemia, medidas que buscam sacrificar vidas pelo bem da economia ou que reduzem a importância de povos marginalizados em prol do desenvolvimento da ciência têm sido justamente criticadas por desrespeitarem a dignidade humana. A recente (e infame) sugestão de uma autoridade médica francesa de utilizar a África como laboratório para vacinas foi imediatamente repudiada por figuras públicas como o Diretor-Geral da OMS. Igualmente, diante dos efeitos das mudanças climáticas, sejam eles desastres ou pequenas degradações nos ecossistemas, é necessário compreender que os impactos sobre comunidades que perdem seus meios de subsistência, e muitas vezes são forçadas a se deslocar, apresentam fundamentalmente o mesmo problema ético.
A justiça ambiental — isto é, o reconhecimento de que todos possuem o direito a um meio ambiente saudável, porém que o acesso ao mesmo acompanha desigualdades sociais — pode ser uma boa lente para entender essa distribuição desigual e, especialmente, a responsabilidade de determinados atores. Os impactos do coronavírus e das mudanças climáticas são distribuídos de maneira absolutamente desigual, embora afetem, de alguma forma, todo mundo. Estados com poucos recursos para se adaptar às mudanças climáticas ou para realizar de forma segura as medidas de isolamento contra a pandemia acabam por deixar uma parcela da sua população em uma situação de vulnerabilidade.
Países africanos e latino-americanos, por exemplo, têm um enorme contingente de trabalhadores informais, que não tem condições de ficar em isolamento. Esses mesmos Estados são os mais afetados pela emergência climática, embora possuam pouca ou nenhuma responsabilidade pela crise planetária. O dilema colocado entre “salvar a economia” ou atacar mais prontamente a pandemia também se dá em discussões climáticas, nas quais “salvar a economia” significa manter as crescentes emissões de carbono dos países industrializados e o “business as usual”, em contraposição à cooperação internacional para evitar cenários de aquecimento global. Quem mais sofre, tanto no caso da Covid-19 quanto das mudanças climáticas, são as populações mais vulneráveis e marginalizadas. Neste momento, o vírus está se disseminando nos Estados mais pobres e, embora não haja números porque não há testagem suficiente nesses países, é possível afirmar que a situação é mais grave do que os números oficiais indicam.
O caso do Equador é emblemático nesse sentido. Os números oficiais não dão conta de explicar o que vem acontecendo no país, especialmente na província de Guayas, onde fica Guayaquil. As notícias veiculadas na imprensa internacional e os relatos em redes sociais indicam que o número de mortos é bem maior. A província não tem conseguido recolher e enterrar seus mortos. Há corpos que ficam dias nas casas esperando para serem recolhidos e de outros que são abandonados pelas ruas.
Embora a situação no Brasil ainda não seja tão desesperadora, já há casos de quebra nos sistemas de saúde devido à superlotação. O Amazonas deve ser o primeiro Estado a enfrentar o colapso na rede hospitalar. Além disso, já há casos confirmados de Covid-19 em indígenas, o que causa ainda mais preocupação devido à vulnerabilidade dessa população.
Governança global
Ambas as questões apresentam desafios transfronteiriços que demandam algum tipo de governança global – ou seja, que atores estatais e não estatais convirjam em princípios básicos comuns e ações concertadas nas diferentes escalas de ação (do âmbito internacional ao regional, passando pelo nacional e subnacional). Da mesma forma que agentes epidêmicos não respeitam as fronteiras nacionais, exigindo que todos atuem para que se enfrente a epidemia, também as mudanças climáticas possuem causas e efeitos que vão além da soberania nacional, demandando ação multilateral. As respostas para a Covid-19 dão indícios de que os atuais governos populistas e críticos ao multilateralismo, como no caso dos Estados Unidos e do Brasil, apresentaram baixa capacidade de reação inicial e baixo interesse em compor esforços multilaterais de reação internacional. Nas plataformas desses governos, também estava o negacionismo climático. Isso não deveria soar um alarme? No caso da União Europeia, por outro lado, trata-se de um ator interessado na construção da governança climática, porém, até o momento, incapaz de construir respostas regionais para a pandemia. Por que a União Europeia não reagiu ao apelo italiano por ajuda regional?
Por fim, pensemos na China. Ela pode exercer liderança na governança global em relação à pandemia? Se sim, tem interesse em ser líder? No caso do regime do clima, a China, embora essencial para qualquer tipo de acordo internacional relacionado às mudanças climáticas, não exerce liderança capaz de impulsionar medidas efetivas de redução de emissão. Será a postura chinesa diferente em relação à pandemia? A resposta multilateral construída historicamente em relação ao clima (regime climático e Conferências das Partes – COPs) é um modelo viável para a governança global em relação ao coronavírus?
O que pareceria inimaginável há alguns meses ocorreu: o mundo foi obrigado a desacelerar, a um custo altíssimo econômico e humanitário. As medições de emissões de gases do efeito estufa provavelmente indicarão uma redução expressiva das emissões. Quando isso terminar, vamos tentar retomar uma lógica de produção que vai provocar, em mais ou menos anos, outras catástrofes?
Sabíamos que era preciso reduzir as emissões para lidar com as mudanças climáticas. A Covid-19 e a desaceleração da economia nos forçaram a diminuir temporariamente as emissões. Mas quais serão os impactos no longo prazo? Após o fim do distanciamento social, retornaremos às emissões dos últimos anos, que estavam muito além dos limites saudáveis para o planeta? Cabe lembrar o exemplo da Gripe Espanhola quando, após o controle da pandemia, aumentou-se as emissões devido a uma retomada da produção e do “tempo perdido“. A crise atual produziu um “choque máximo” que permite aos grandes emissores – como a indústria aérea, a automobilística e a de petróleo e gás – beneficiarem-se da destinação de recursos para minorar seus impactos econômicos – aprofundando ainda mais a degradação ambiental.
Tem-se questionado se o mundo será o mesmo a partir desta pandemia. Análises defendem que a forma que nos relacionamos com os outros e com o espaço público serão radicalmente modificadas. O que isso significa, do ponto de vista ambiental? Serão tiradas lições a partir da Covid-19, alterando a forma como a humanidade se relaciona com os recursos naturais ou retornaremos a degradar o meio ambiente além dos limites sustentáveis para o planeta? Se a pandemia pode modificar a maneira como vivemos, o que pode ser dito das mudanças climáticas, que ameaçam a sobrevivência de diversas comunidades e que gera impactos não só para a nossa sociedade, mas também para aquelas que ainda virão?
Grupo de Pesquisa em Relações Internacionais e Meio Ambiente é coordenado pela professora Veronica Korber Gonçalves (FCE-UFRGS), reunindo estudantes de graduação e pós-graduação que estudam os processos políticos globais e internacionais relacionados às mudanças climáticas. Pesquisadores: Veridiana Dalla Vecchia, Lisboa Augusto Machavane, Camila Schlatter Fernandes, Rodrigo Führ, Marina Godward e Thales Jéferson Rodrigues Schimitt.