Cozinhas Populares apontam caminhos para a soberania alimentar
A solidariedade ativa e popular tem como ponto de partida a autonomia do povo de decidir sobre as suas vidas e lutar pelos seus direitos, tem início na relação dialógica entre os atores sociais a fim de tornar as realidades e condições de vida mais condizentes com as necessidades pós-pandêmicas de brasileiras e brasileiros que sustentam esse país.
Precarização da vida e do trabalho, aprovação da PEC do Teto de Gastos e reformas trabalhista e da previdência. Foi nesse contexto que a pandemia de Covid-19 chegou ao Brasil, escancarando as diversas faces das crises política, social e econômica que o país enfrenta desde o golpe contra a presidenta Dilma Rousseff, em 2016.
De fato, não há possibilidade de existir um momento propício para a chegada de uma pandemia, mas ela veio justamente em um dos períodos históricos mais difíceis para o povo brasileiro, que sente os impactos diretos do avanço global do neofascismo nos últimos anos, além de um projeto político neoliberal e de subalternidade do país ao imperialismo. Projeto representado em terras brasileiras por boa parte do agronegócio.
Quando o ainda “novo coronavírus” chegou nas casas das pessoas, não tardou muito para que a fome se fizesse presente na vida de quem já pelejava por dignidade nas filas do desemprego ou na precariedade do trabalho informal. Era março de 2020 e o povo ainda não sabia ou não tinha condições viáveis de lidar com a prevenção ao vírus, mas a necessidade de ter que trabalhar para colocar comida na mesa fazia com que o #FiqueEmCasa se tornasse um privilégio de poucos. Logo ali, de mãos dadas com essa realidade, outro desafio estava posto. Desta vez, para os movimentos e organizações sociais. Sendo o estar com o povo uma premissa para as lutas sociais e o aglomerar-se uma das formas mais genuínas de organização popular e reivindicação de direitos, como seguir construindo a luta no contexto de isolamento social?
A necessidade de uma política de solidariedade se anunciava e, ao mesmo tempo, se apresentava como uma possibilidade de estreitamento de laços com as pessoas. Começou com a distribuição de “marmitas solidárias” para a população em situação de rua e comunidades em situação de vulnerabilidade social, com a criação da campanha nacional Periferia Viva, composta por movimentos como o MST, o MTD, o Levante Popular da Juventude, a Marcha Mundial das Mulheres e o setor sindical, como a CUT, assim como outros setores da igreja e diversas organizações sociais e universidades em vários estados do Brasil.
À medida que os primeiros meses da pandemia se passaram, se confirmava a constatação de que a classe trabalhadora e, principalmente, de baixa renda, não tinha condições de seguir as orientações de cuidado com a saúde. Isso quando conseguia ter acesso à informação e aos materiais de proteção, como máscaras de uso individual e álcool em gel, o que não era recorrente. Foi no diálogo com o povo, por meio da entrega de marmitas solidárias e, posteriormente, de cestas básicas da Reforma Agrária, que surgiu a primeira experiência de formação de agentes populares de saúde na cidade do Recife, em Pernambuco.
O curso trazia informação e orientação sobre os cuidados individuais e coletivos para uma atuação comunitária em relação à prevenção da contaminação pela Covid-19, e capacitava as pessoas das comunidades acompanhadas pela campanha, que no estado pernambucano tem a identidade de Mãos Solidárias, a promover o cuidado mútuo com perspectivas da saúde popular. Plantava a semente da defesa do Sistema Único de Saúde (SUS) e da reivindicação de melhorias para esse sistema.
Dentre essas experiências, surgiram outras, como a das Máscaras Solidárias, que visava a geração de renda para mulheres costureiras na produção de máscaras destinadas à periferia; os Agentes Populares de Direitos e de Educação, que auxiliavam a população no acesso às políticas públicas emergenciais surgidas no período pandêmico; assim como a classe estudantil, a encontrar mecanismos para dar continuidade à educação na pandemia; além de tantas outras iniciativas, como a criação de Bibliotecas Populares Comunitárias.
Neste processo e no mesmo passo, sempre com uma perspectiva de solidariedade ativa e não caritativa, de inspiração no olhar de Paulo Freire, que já fazia parte dos princípios desses movimentos populares da cidade e do campo, a entrega de refeições e cestas foi trilhando um caminho que culminou na criação de Bancos Populares de Alimentos, Roçados Solidários e Cozinhas Populares.
Em meio ao atraso na liberação das vacinas contra a Covid-19, da burocracia do auxílio emergencial e das diversas piadas em relação aos cuidados com a saúde e às mortes da pandemia, além da falta de orçamento para a agricultura familiar, o povo resistiu, se organizou e criou mecanismos para lidar com o desemprego, a fome e a pobreza que hoje podem e devem subsidiar a criação de políticas públicas para a reconstrução do país como uma nação de todas e todos, um país soberano.
A solidariedade ativa e popular tem como ponto de partida a autonomia do povo de decidir sobre as suas vidas e lutar pelos seus direitos, tem início na relação dialógica entre os atores sociais a fim de tornar as realidades e condições de vida mais condizentes com as necessidades pós-pandêmicas de brasileiras e brasileiros que sustentam esse país. Traça o caminho da entrega da refeição que coloca na mesa também os questionamentos sobre a proveniência dos alimentos que chegam nas cidades, como está a situação dessas e desses trabalhadores que produzem os alimentos e quais são as saídas para tirar o Brasil do mapa da fome da Organização das Nações Unidas (ONU).
Nesse sentido, foi necessário olhar para a metodologia dos agentes populares como uma ferramenta permanente de organização popular e, diante do cenário de fome e pobreza, nada mais acertado do que centralizar esforços na luta por soberania alimentar, fortalecendo os bancos, roçados e cozinhas, mas também iniciando processos de formação de agentes populares de alimentação, que estão acontecendo em alguns estados onde há atuação da Periferia Viva.
No contexto de ano eleitoral como o de 2022, as formações também se somaram às iniciativas dos Comitês Populares de Luta e à campanha Eu Voto Contra a Fome e a Sede, da Frente Nacional Contra a Fome e a Sede, levando a pauta do combate à fome para os diálogos sobre o voto consciente e as prioridades dos projetos de país que estão em disputa.
No enfrentamento da fome e na construção de um Brasil do esperançar
Fruto da solidariedade ativa e das lutas sociais durante a pandemia, as Cozinhas Populares da Campanha Periferia Viva se tornaram também, para além da produção de refeições coletivas, espaços de defesa dos direitos do povo, mostrando que a população é capaz de trazer soluções para os problemas que impactam as suas vidas. Uma possibilidade dos movimentos e organizações sociais construírem uma relação de diálogo e confiança por meio de suas pautas e de uma situação concreta que é o combate à fome.
As Cozinhas Populares estão localizadas em comunidades de diversos estados brasileiros. Produzem refeições gratuitas, feitas pelas e para as comunidades onde estão sendo organizadas. E já se observa o apoio na redução da sobrecarga de trabalho doméstico das mulheres desses locais, já que alimentar a família – cuidado muito atribuído às mulheres por causa da divisão sexual do trabalho – se torna uma função compartilhada comunitariamente.
Se anuncia também para passos futuros, diante da troca de saberes e inquietações das comunidades, a possibilidade de transformar essas iniciativas em pontos populares de trabalho, viabilizando a geração de renda para as famílias envolvidas. Percebe-se que as experiências das cozinhas perpassam muitas outras áreas para além da alimentação, o que as colocam ainda mais à disposição para a construção de um olhar mais popular para a criação de políticas.
Pilares que estruturam a atuação das Cozinhas Populares:
Autonomia e organicidade da produção: a comunidade produz as refeições para si e também busca formas de garantir os insumos para a produção por meio de outras iniciativas, como Bancos Populares de Alimentos e Hortas Populares Comunitárias, por exemplo, colocando em prática a concepção da autonomia do povo diante da tarefa de transformação da realidade;
Política de solidariedade: objetiva garantir e fortalecer o acesso às refeições e à atuação da cozinha como um todo ao máximo de pessoas possíveis com gratuidade.
Feminismo popular e antirracismo: assim como as mulheres foram maioria na linha de frente do combate à Covid-19 e também as principais impactadas em vários setores da vida, é perceptível a sua participação mais expressiva no trabalho solidário. São elas, muitas vezes, as responsáveis por colocar comida em casa e prepará-la para chegar à mesa das suas famílias. Por essas e outras responsabilidades atribuídas social e estruturalmente a elas, são também as mulheres que melhor conhecem a realidade de suas comunidades. Muitas delas, concentradas nas periferias das cidades e também na agricultura familiar, são negras. É preciso atentar aos atravessamentos de gênero e raça no contexto de fome e seu combate.
Incidência: por meio do debate eleitoral e sobre o projeto de país que o povo deseja, as sujeitas e os sujeitos políticos participantes podem se fortalecer no lugar de proposição de soluções para reivindicar ao Estado. É necessário sistematizar experiências, abrir portas de diálogo e projetar coletivamente a luta por soberania alimentar.
Leia os outros artigos do especial “O agro não produz comida, produz fome”
Este especial é uma parceria Le Monde Diplomatique Brasil e Radar Saúde Favela – Fiocruz, cuja equipe é composta por Fábio Araújo, Marina Ribeiro, Fábio Mallart, Larissa França, Raimundo Carrapa, Emerson Baré, Mariane Martins, Luciene Silva e Paulo Roberto Ribeiro.