O uso de créditos de carbono para cumprir metas de net zero
Quando empresas usam de créditos de carbono para se proclamarem “net zero” aumenta-se o risco de atrasar a descarbonização de suas respectivas cadeias de valor
Créditos de carbono são títulos que permitem que indivíduos, empresas ou governos atestem que realizarão uma compensação (em inglês, offset) de emissões de gases de efeito estufa (GEE), ao apoiar projetos que reduzem emissões. Eles podem ser adquiridos por entidades que desejem reduzir sua “pegada de carbono” em mercados voluntários (não abordaremos mercados regulados aqui).

A demanda por offsets – termo que, para simplificar, trataremos como sinônimo de crédito de carbono – aumentou consideravelmente após a COP 26 do Clima, em Glasgow (2021), quando diversas empresas assumiram compromissos de zerar suas emissões líquidas nas próximas décadas; algumas dessas firmas pretendem utilizar créditos de carbono para atingir esses objetivos.
O tema tem suscitado acusações de greenwashing e, com recentes investigações e pesquisas trazendo repercussões negativas, os preços dos mercados voluntários caíram, gerando o temor da repetição do crash de 2012 envolvendo o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo do Protocolo de Quioto – que, segundo pesquisas citadas no Assessment Report VI do IPCC, teve impacto negativo.
Vide o exemplo das instituições financeiras que integram a Glasgow Financial Alliance for Net Zero (GFANZ), formada durante a COP 26. Dada a representatividade de seus membros sobre a economia mundial, a criação dessa aliança foi vista de forma positiva. Apenas a Net Zero Banking Alliance (NZBA), um dos grupos que compõem a GFANZ, conta com 129 bancos, que gerenciam cerca de US$ 74 trilhões em ativos (41% do total de ativos globais). Em outubro de 2022, alguns membros ameaçaram deixar a GFANZ, pois seriam obrigados a aderir à Agenda Race to Zero das Nações Unidas, que restringe a utilização de offsets em compromissos de net zero. Porém, a GFANZ voltou atrás, declarando que seus integrantes não seriam mais obrigados a subscrever integralmente essa agenda.
A fim de responder a acusações de greenwashing, pessoas e entidades ligadas à GFANZ (como Mark Carney, um de seus diretores) têm enfatizado que é importante regular mercados voluntários, para assegurar sua confiabilidade. Elas também têm lembrado que é preferível que uma empresa reduza emissões dentro de sua cadeia de valor, ao invés de compensá-las por meio de offsets – e que, se ela os adquirir com esse fim, isso deve ser divulgado em separado e de forma clara.
Há duas questões nesse tipo de utilização de offsets: primeiro, o risco de integridade – ou seja, de que os créditos correspondentes não representem redução efetiva de emissões, e assim não mitiguem o impacto da entidade que os adquire. Segundo, o risco de atraso ou substituição: já que tais créditos têm preços baixos, as entidades têm incentivos para adquiri-los a fim de relatar o cumprimento de suas metas, ao invés de descarbonizarem suas cadeias de valor.
Afinal, esses créditos de fato demonstram que uma quantidade específica de GEE foi evitada de forma permanente e por causa do projeto financiado? E pode-se confiar que eles não estão substituindo os esforços que a empresa deveria adotar para reduzir emissões, atrasando assim a transição energética? É difícil responder a essas questões de forma positiva.
Risco de atraso
O relatório Integrity Matters: Net Zero Commitments by Business, Financial Institutions, Cities and Regions, lançado na COP27 do Clima, no Egito, destaca que mesmo créditos de carbono de alta integridade não devem contar para o atingimento das metas de net zero de uma companhia. Esse requisito é necessário para cumprir o compromisso da campanha Race to zero, como explicado pelo Expert Peer Review Group (EPRG) no Interpretation Guide: Race to Zero (p. 10-11).
Mais enfática, a Science Based Targets Initiative critica a forma como empresas usam a expressão “net zero” de forma vaga para melhorar suas reputações, afirmando que créditos de carbono só seriam admissíveis para compensar emissões estritamente residuais. Ainda, o Oxford Offsetting Principles considera improvável que créditos de carbono possam entregar a efetiva compensação necessária para zerar emissões líquidas. A preocupação geral é que, mesmo que se alcance alta confiança na integridade dos offsets, as empresas não deveriam usá-los como um substituto dos esforços de transição para uma economia de baixo carbono.
Risco de integridade: adicionalidade e permanência
Conforme o relatório da ONU Integrity Matters, os dois principais requisitos de integridade dos créditos de carbono são a permanência (a garantia de que o carbono “compensado” não retornará à atmosfera) e a adicionalidade (a ideia de que o projeto de fato causa a captura relatada, ou seja, de que, se não fosse pelo projeto, o efeito não teria ocorrido).
É simples entender como esses requisitos são satisfeitos em projetos que capturam carbono diretamente da atmosfera e o guardam em local seguro. Contudo, projetos assim são caros e têm baixa escala. Hoje o principal tipo de crédito de carbono é o de projetos baseados na natureza de emissões evitadas – como projetos de preservação florestal. Aqui, o risco à permanência do impacto advém da possibilidade de reversão do desmatamento; embutir esse risco no projeto, segundo a metodologia da CarbonPlan permanence calculator, multiplica seus custos drasticamente.
Ações do governo para diminuir o desmatamento tendem a diminuir esse custo. O problema é que elas podem afetar indiretamente a adicionalidade, pois esta depende da definição de uma linha de base – a estimativa do desmatamento esperado ao longo do período do projeto.
Apenas um exemplo: em janeiro de 2023, o The Guardian publicou uma investigação destacando que a maioria dos projetos analisados não tinha impacto comprovado, e que alguns deles estavam envolvidos em violações de direitos. Segundo estudo de West et al. (2020), a linha de base nesses casos se baseava em projeções a partir do desmatamento observado até 2005. Contudo, de 2005 a 2015, tivemos o período de maior redução do desmatamento na Amazônia (graças à atuação de órgãos públicos brasileiros) o que resultou em impacto superestimado dos projetos.
Claro, nada disso implica que financiar a preservação seja ruim – pelo contrário, é uma peça importante dos esforços globais de mitigação. Mas, dada a incerteza envolvida, quando empresas o fazem para se proclamarem “net zero” aumenta-se o risco de atrasar a descarbonização de suas respectivas cadeias de valor – principalmente em setores como o financeiro, cujas ações produzem efeitos que se propagam pela economia.
Ramiro Peres é Pós-Doutor pela Universidade Nova de Lisboa e associado fundador da associação Soluções Inclusivas Sustentáveis (SIS)