Criar e transformar no limite do impossível
O Fórum Social Mundial 2018 contribuiu para aproximar as lutas de movimentos em resistência, estabelecendo relações anticapitalistas, antirracistas, antissexistas e anticoloniais. A prática mostrou que essa demolição e reconstrução de relações começa dentro da própria dinâmica do FSM e da articulação entre os movimentos
Surpreendeu! O Fórum Social Mundial 2018, realizado em Salvador de 13 a 17 de março, mexeu com as emoções e as convicções de muita gente, desde estrangeiros e brasileiros até os próprios baianos e membros do Grupo Facilitador, que conduziram sua construção. De forma geral, o FSM 2018 agradou e empolgou. Na reunião do Conselho Internacional, que ocorreu no final do evento, nos dias 17 e 18 de março, as intervenções das pessoas presentes não dispensaram elogios, ressaltando a vivacidade do evento, a mobilização muito expressiva dos mais diversos grupos e organizações, o estímulo ao movimento altermundialista e a hospitalidade e a disposição do povo baiano. As fragilidades apontadas na organização do evento, relacionadas com o site, a programação virtual que não chegou a ser impressa ou ainda as dificuldades para localizar tendas e salas para algumas atividades, nos primeiros dias, não afetaram a relevância do encontro. Para a maioria, o FSM saiu revigorado, e as dúvidas sobre a possibilidade do evento em Salvador ser o último do gênero foram afastadas: o FSM renasceu.
O FSM 2018 superou as expectativas: em vez das 50 mil pessoas esperadas, reuniu cerca de 80 mil participantes – mais que o dobro do FSM 2016, em Montreal, no Canadá –, sendo o público majoritariamente formado por negras e negros, mulheres, povos tradicionais de matriz africana, juventudes de periferias e indígenas. Todas e todos juntos e misturados. A cultura popular sempre ocupou o ponto alto dos vários acontecimentos do FSM, desde a Marcha de Abertura, com a participação de 60 mil pessoas, passando por todos os demais momentos e encerrando com o Cortejo Cultural.
O FSM teve como espaço central o campus da Ondina, da Universidade Federal da Bahia (UFBA), mas seu território se estendeu por toda a cidade e região metropolitana, com um total de setenta lugares onde foram desenvolvidas atividades. O campus da Universidade do Estado da Bahia (Uneb), no bairro do Cabula, abrigou o encontro de lideranças de religiões de matriz africana, com mais de quatrocentos representantes presentes. O Território de Itapuã, na Lagoa do Abaeté, teve uma programação própria (política e cultural) e finalizou com uma virada cultural na noite de 17 de março. O Acampamento Intercontinental da Juventude, no Parque de Exposições, onde 2 mil pessoas acamparam, também abrigou atividades, incluindo uma assembleia mundial das juventudes e um grande show.
No Estádio de Pituaçu, ocorreu no dia 15 de março uma assembleia mundial em defesa da democracia, com a presença de diversas lideranças de movimentos sociais brasileiros e internacionais, assim como de políticos de destaque, que resistem aos retrocessos nas instituições democráticas nacionais, a exemplo dos ex-presidentes Manuel Zelaya, de Honduras, e Luiz Inácio Lula da Silva. No dia seguinte, a Assembleia Mundial das Mulheres reuniu 8 mil mulheres, no Terreiro de Jesus, em pleno centro histórico. O assassinato de Marielle Franco no dia 14, que estava prevista para intervir em uma atividade do FSM dois dias depois, marcou profundamente o evento, com marcha, atos e inúmeras declarações. A democracia estava sangrando, porém resistindo.
A Bahia estava muito bem representada, a exemplo da participação marcante de vinte dos 22 povos indígenas existentes no estado, acampados em frente à Assembleia Legislativa da Bahia. O Brasil também se fez presente com movimentos de todo o país, muitos deles vindos em caravanas de ônibus organizados por comitês estaduais do FSM 2018. Foi um fórum social realmente mundial, que contou com mais de 6 mil participantes internacionais, tendo a presença latino-americana e africana entre as maiores delegações estrangeiras. Destaque para as representações do Marrocos, Alemanha, Itália e Canadá (Quebec).
O grande número de participantes resultou na realização de 2 mil atividades, todas organizadas de forma autogestionada. Do ponto de vista dos conteúdos, o FSM 2018 proporcionou importantes acúmulos das agendas que circularam os eixos do desenvolvimento, justiça social e ambiental, dos direitos humanos, das mulheres e dos temas da luta contra o racismo e a xenofobia, em que houve maior número de atividades inscritas. Ecoaram as vozes das juventudes, do segmento LGBTQI, das mulheres negras, curdas e saarauis, do povo palestino, dos pescadores tradicionais, das pessoas com deficiência, das lutas urbanas, da saúde mental, entre outros. Os resultados das atividades autogestionadas e principalmente das diversas convergências temáticas realizadas foram expostos na manhã do último dia, 17 de março, na Ágora dos Futuros, na Praça das Artes, no campus da UFBA.
Para além da denúncia do sistema, muitas foram as atividades de troca de experiências entre movimentos e organizações sociais que já praticam, em suas comunidades e grupos, os valores de um outro mundo possível. Por isso, o lema “Resistir é criar, resistir é transformar” foi tão atual e concreto, muito mais vivido do que teorizado. A atuação da economia solidária foi particularmente significativa nesse sentido.
Talvez por isso aquelas pessoas acostumadas demais com os fóruns sociais eurocêntricos, de pele branca e atividades formais de debates teóricos sobre o futuro da esquerda no mundo, tenham estranhado a vitalidade e a inovação do FSM de Salvador. O FSM 2018 foi realizado em um tempo recorde e enfrentou condições adversas, do ponto de vista tanto político quanto financeiro. Resultado de uma iniciativa do Coletivo Baiano do FSM, que apresentou a proposta de um evento de caráter mundial no Fórum Social das Resistências, em janeiro de 2017, em Porto Alegre, o FSM 2018 não conseguiu conquistar algumas lideranças de movimentos sociais, notadamente da região Sudeste, mas seu processo de construção foi altamente participativo e levou à mobilização e ao envolvimento os mais diversos movimentos, povos e territórios em resistência, resultando na criação de um amplo Coletivo Brasileiro, de um Grupo Facilitador formado por 25 organizações representativas dessa pluralidade e de múltiplos grupos de trabalho que prepararam o evento de forma autogestionada. Os principais apoios financeiros vieram do governo do estado da Bahia e da organização alemã Pão para o Mundo (PPM).
O FSM 2018 contribuiu para aproximar as lutas de movimentos em resistência, estabelecendo relações anticapitalistas, antirracistas, antissexistas e anticoloniais. A prática mostrou que essa demolição e reconstrução de relações começa dentro da própria dinâmica do FSM e da articulação entre os movimentos.
Resta o desafio de o FSM romper com a invisibilidade imposta pelo sistema capitalista por meio do monopólio e oligopólio dos grandes grupos de comunicação, para alcançar uma maior incidência no imaginário coletivo e na sociedade em geral. A humanidade está em uma fase de transição, e o FSM deve continuar seu caminho de espaço autogestionado, antineoliberal, profundamente crítico ao sistema e propositivo de alternativas. Um outro mundo segue sendo possível e necessário. E a nós cabe prosseguir lutando para construí-lo.
*Damien Hazard é coordenador da Vida Brasil, diretor da Associação Brasileira de ONGs (Abong) na Bahia, membro do Grupo Facilitador do Fórum Social Mundial 2018 e do Conselho Internacional do FSM; Mauri Cruz é membro do Camp, diretor executivo da Abong, membro do Grupo Facilitador do FSM 2018 e do Conselho Internacional do FSM.