Projeto que revela crimes da ditadura ganha exposição no Memorial da Resistência
Quando dois advogados de presos políticos decidiram preservar e divulgar mais de 700 processos do Superior Tribunal Militar
O ano era 1979. O presidente do momento era o general Ernesto Geisel, e o Brasil enfrentaria ainda dez anos até a redemocratização. Foi aí que lideranças da sociedade civil à época decidiram levar à frente um projeto sigiloso que desvelaria as práticas de tortura empregadas contra presos políticos durante a ditadura. A iniciativa dá nome à exposição Uma Vertigem Visionária — Brasil: Nunca Mais, que estreou no último sábado, dia 7 de setembro, no Memorial da Resistência, em São Paulo.
Segundo conta a diretora técnica do memorial, a pesquisadora Ana Pato, trata-se de um projeto de caráter quase “cinematográfico”, que só foi possível graças à Lei da Anistia, implementada naquele mesmo ano. Ela explica que “era permitido aos advogados dos presos políticos ir ao Supremo Tribunal Militar, em Brasília, para retirar os processos dos seus clientes e estudá-los durante 24 horas para montar a defesa”. Eny Raimundo Moreira e Luiz Eduardo Rodrigues Greenhalgh, dois jovens advogados na época perceberam a importância de preservar essa documentação. “Existia muito receio que acontecesse o que aconteceu na ditadura Vargas, quando todos os arquivos produzidos pela repressão pegaram fogo criminosamente”, diz Ana.
Foi então articulada uma rede de cerca de 35 envolvidos para fotocopiar e organizar a maior quantidade possível de processos. Nas palavras de Ana, “a primeira ação deles foi montar um escritório que era, na verdade, uma copiadora. Se você batesse lá, parecia não haver nada de errado. Eles retiravam o processo de manhã, copiavam nessas 24 horas e devolviam no dia seguinte”. Foram mais de 700 processos preservados dessa forma em seis anos de trabalho, que também contaram com uma articulação internacional através do Conselho Mundial de Igrejas, na figura do frade franciscano Paulo Evaristo Arns. Assim, os documentos reunidos pelo grupo eram enviados para fora do Brasil para serem preservados.
O extenso material obtido pelo Brasil: Nunca Mais deu origem a um livro homônimo publicado em 1985 pela editora Vozes. Para Ana, a força dos documentos obtidos e preservados pela iniciativa reside justamente no fato de serem provas oficiais produzidas pelos próprios militares sobre a tortura que foi empregada durante a ditadura.
Um dos principais desafios da exposição, segundo o curador da exposição Diego Matos é transpor a linguagem jurídica dos documentos para uma expografia atrativa ao mesmo tempo que pedagógica. “Se você lê, por exemplo, uma lista dos tipos de tortura, que está no livro, você fica assustado, porque aquilo de fato é muito pesado. Mas se você vê isso em escala, esquematizado em um corpo na parede, você já tem uma impressão diferente daquela ao ler um documento escrito”, ele diz lembrando um dos elementos gráficos presentes na exposição.
A exposição Uma Vertigem Visionária — Brasil: Nunca Mais ocorre simultaneamente a uma mostra itinerante do Museu Sítio de Memória ESMA – ex-centro clandestino de detenção, tortura e extermínio de Buenos Aires –, intitulada Memória argentina para o mundo. A Escuela Superior de Mecánica de la Armada (Escola Superior de Mecânica da Armada) foi um dos mais de 800 centros clandestinos da repressão argentina espalhados pelo país. Hoje, o prédio na zona norte de Buenos Aires, assim como o Memorial da Resistência, no centro de São Paulo, se tornou um espaço de acolhimento e preservação da memória das vítimas da ditadura no país.
A intenção de receber as duas exposições simultaneamente é clara: contrapor os processos de resistência e recuperação da memória nos dois países latino-americanos. “Quando decidimos colocar em diálogo as duas ditaduras, brasileira e argentina, a ideia era poder refletir como aconteceram esses dois processos tanto de repressão como de resistência”, diz Ana. As duas exposições trabalham com documentos produzidos nos contextos de encerramento das ditaduras. “No caso argentino, acaba a ditadura e, no ano seguinte, já no governo democrático do (Raúl) Alfonsín, a primeira coisa que é feita é justamente tornar público o terrorismo de Estado.” O relatório produzido nesse contexto, intitulado Nunca Más, trata-se de uma iniciativa do Estado argentino, em contraposição ao documento brasileiro, produzido na clandestinidade pela sociedade civil com apoio de lideranças religiosas.
A data escolhida para a abertura das exposições também não foi por acaso. O 7 de setembro, data que marca a independência do Brasil, proclamada em 1822, vem sendo sequestrada nos últimos anos pela extrema direita. Entretanto, o Curador Diego Matos explica que a exposição busca explorar a data para além do 7 de setembro como tem sido lembrado atualmente, “um marco da audácia golpista bolsonarista”, mas como um lembrete de que “a história do Brasil é percorrida pela hegemonia e pelo protagonismo dos militares. O 7 de setembro (de 1822) só ocorreu porque teve o apoio de uma guarda que se tornou o exército brasileiro posteriormente. Todos os eventos históricos do Brasil e disputas de poder envolvem a presença militar. A proclamação da república foi feita por um militar. É uma coisa que já começou errado e segue errada”.
Victor Kutz é jornalista.