A câmera contra a barbárie: Evandro Teixeira, Chile 1973
Mostra no IMS traz cerca de 160 imagens feitas pelo fotojornalista capturando as ditaduras no Chile e no Brasil, além do enterro de Pablo Neruda
“Eu sempre me arrisquei pra fazer o impossível”, conta o fotojornalista Evandro Teixeira sobre os horrores que fotografou em Santiago dias após o golpe de 11 de setembro de 1973, que instaurou a ditadura sangrenta de Augusto Pinochet, no Chile. Um dos momentos “impossíveis” em que o fotógrafo arriscou sua vida pela fotografia foi durante o enterro de Pablo Neruda, cuja morte por envenenamento foi recentemente confirmada por especialistas.
A exposição “Evandro Teixeira, Chile, 1973” no Instituto Moreira Salles Paulista lembra os 50 anos do golpe militar e da morte do poeta chileno através de fotografias tiradas por Teixeira, que chegou ao país dez dias depois do golpe, quando foi liberada a entrada da imprensa estrangeira.

Um olhar que desconstrói falsas narrativas
Naquele 22 de setembro, o regime militar chileno organizou uma visita oficial dos recém-chegados jornalistas estrangeiros ao Estádio Nacional – onde foram encarcerados e torturados milhares de presos políticos – com o intuito de criar uma falsa narrativa a respeito da situação em que eram mantidos os prisioneiros. Teixeira, que já conhecia o estádio por conta de sua cobertura da Copa do Mundo de 1962, sabia da existência de porões subterrâneos, voltando sua câmera para os homens que se espremiam entre as grades do subsolo.
É com as imagens tiradas naquele dia por Teixeira que o curador Sergio Burgi abre a exposição, explicando: “Evandro sempre foi alguém que nesse contexto de construção de artificialidade por parte do governo sempre desconstrói ela na relação formal, criando contexto. Essas imagens captam essa relação da violência de Estado contra seus próprios cidadãos e a briga entre a imprensa e o regime.”
O primeiro conjunto de imagens da exposição – que foram também as primeiras fotos de Santiago após o golpe a serem publicadas no Jornal do Brasil – evidenciam o cabo de guerra entre a censura brasileira e a imprensa nacional face aos primeiros dias da ditadura chilena. É curioso imaginar como um jornal brasileiro de grande circulação foi capaz de estampar na capa fotos relacionadas às torturas do regime de Pinochet, muito similares às que ocorriam no Brasil naquele momento. A resposta está no fato de que as imagens ali produzidas o eram com a autorização dos militares chilenos, ocupados em vigiar a imprensa internacional. Vistas como oficiais, as imagens feitas por Teixeira nos dez dias em que ficou na cidade passaram despercebidas pelo olhar da censura brasileira, desconstruindo a narrativa falsa que se tentava criar ali. “Tudo o que ele produziu aqui está pautado pela presença da imprensa internacional. É essa relação que é construída com os censores aqui no Brasil”, lembra o curador.

Uma procissão que se transforma em manifestação política
O mesmo ocorreu durante as 36 horas em que Teixeira acompanhou o corpo de Pablo Neruda da clínica de Santa María ao Cemitério Geral de Santiago. O fotógrafo conta, em entrevista ao Le Monde Diplomatique Brasil, que a chegada à clínica onde estava Neruda foi o momento em que mais sentiu medo durante sua estada em Santiago: “Eu consegui entrar, não era permitido entrar ninguém, fui escondido e descobri o corpo dele ali dentro. Eu olhava para trás pensando ‘tem só eu? não tem ninguém aqui?’ e era só eu! Se alguém me descobrisse ali eu ia morrer, mas não apareceu ninguém.”
Durante as horas do toque de recolher, Teixeira conta que ficava no hotel onde estava hospedado em Santiago, sem muito o que fazer. Foi então que conheceu uma senhora paulista, esposa de um adido militar do Chile no Brasil, que lhe contou que Neruda estava mal de saúde e seria levado para a clínica de Santa María. O fotógrafo foi até lá no dia seguinte, onde foi recebido pelo médico diretor do hospital, que prometeu ligar para ele às 22h com o boletim médico do poeta. Sem resposta, Teixeira ligou para o hospital, do qual recebeu a notícia de que Neruda havia morrido. No dia seguinte, às 6h, o fotógrafo se dirigiu à clínica, na qual entrou pela porta dos fundos e encontrou Matilde Urrutia, esposa de Neruda, que o acolheu e pediu que documentasse o caminho de Neruda até o cemitério.
Na sequência quase cinematográfica de fotografias realizadas por Teixeira nesse período de tempo, destaca-se a cena em que, chegando à residência do poeta, a vigília que carregava o caixão de Neruda se depara com um rio que cortava o caminho em frente à casa. O que antes era um riacho transformou-se em rio quando militares destruíram a represa que desembocava ali, com o intuito de dificultar a passagem do poeta, que era visto como principal inimigo do Estado naquele momento. As imagens mostram familiares e admiradores improvisando uma ponte que passa a simbolizar a resistência que aquela caminhada representava frente à ditadura. A vigília foi até a noite, transformando-se, na manhã do outro dia, em uma grande manifestação política em formato de cortejo, que ocorria no mesmo momento em que Pinochet realizava sua primeira coletiva de imprensa para jornalistas estrangeiros, que optaram por ocupar o velório de Neruda.

Sergio Burgi defende que a escolha dos jornalistas evidencia a relação entre a imprensa e a ditadura que era ali construída, e a incapacidade do regime de manter sua falsa narrativa: “Essa presença da imprensa evitou um massacre no meio de um processo bárbaro, é uma relação decisiva. Se Pinochet tivesse conseguido tirar a imprensa dali, militares seguramente teriam intervido com força no enterro, haveria repressão. A exposição fala da imprensa como mecanismo de contrapeso contra a força.”
Ao lado das fotografias de Neruda, a exposição exibe trechos do documentário Setembro Chileno, de Bruno Moet, em que chama a atenção a frase “mesmo os fascistas têm de prestar contas à opinião pública internacional, essa é uma lição para nunca esquecer”. Para Burgi, é este um dos propósitos da exposição, dar destaque para a importância da imprensa em momentos de crise do Estado democrático de direito, como foi o caso do Brasil em 8 de janeiro deste ano.
A barbárie fotografada no Brasil
Outro filme cujos trechos são exibidos na mostra é o documentário estadunidense Brasil, relato de uma tortura, de Haskell Wexler e Saul Landau, realizado em 1971. Naquele ano, 70 presos políticos brasileiros foram libertados e enviados ao Chile em troca pelo embaixador da Suíça no Brasil, Giovanni Enrico Bucher, que havia sido sequestrado no Rio de Janeiro. O filme entrevista alguns desses brasileiros no Chile, que relatam em profundidade experiências de tortura nas mãos de agentes da ditadura brasileira.
Ao lado do filme estão expostas algumas das principais fotografias feitas por Teixeira no Brasil. Uma das mais marcantes da ditadura brasileira, a primeira fotografia ao entrar na exposição mostra a caça ao estudante durante a Sexta-feira Sangrenta, tirada em junho de 1968. Teixeira conta que a foto foi publicada repetidamente pelo Jornal do Brasil, a pedido do fotógrafo, que queria encontrar o estudante que segundos depois da fotografia foi derrubado pelos policiais e bateu a cabeça no meio-fio: “Eu fiz aquela foto e quando vi estavam tentando levantar ele, mas logo partiram para cima de mim então eu me mandei. Essa foto foi publicada no jornal e ele nunca apareceu. Uns seis meses depois fizemos uma matéria na primeira página convocando ‘se você estiver vivo, eu gostaria de revê-lo, conversar’ mas ele nunca apareceu, até hoje.”

Ao expor a obra produzida por Evandro Teixeira durante as ditaduras da América Latina, realiza-se um movimento importantíssimo para a democracia: voltar-se para a história com o intuito de demarcar a linha civilizatória em relação à barbárie do Estado e à institucionalização da violência. “Não enfrentamos suficientemente as responsabilidades civilizatórias nesse sentido de violência. Isso é lamentável porque assim a sociedade permite violências na carceragem, nas práticas policiais, por exemplo”, diz o curador.
A exposição fica em cartaz no 6º andar do IMS Paulista (Avenida Paulista, 2424) até o dia 30 de julho. A entrada é gratuita e o espaço fica aberto de terça a domingo e feriados (exceto segundas), das 10h às 20h. Confira a entrevista com Evandro Teixeira na íntegra no site do Le Monde Diplomatique Brasil.
Carolina Azevedo faz parte da equipe do Le Monde Diplomatique Brasil.